Fêmea: Queda Livre

“Andei contra procissões. Me vesti de mendiga, pedi dinheiro na rua, me entreguei aos miseráveis. Abri caminho para emoções comoventes”

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Por Fabiane Borges | Imagem Egon Schiele

Toda celulite, mole, cabeça não funciona, cheia de fumaça. Não consigo ouvir mais nada, aprender mais nada, não tenho memória, não lembro histórias, ando com dor no joelho, no cotovelo, na virilha, tem um buraco na minha bunda de tanto ficar sentada, meus pulmões estão cinzas de fumaça com filtro vermelho. Cresceram manchas na minha cara, minhas pálpebras caíram, meus dentes amarelaram, alguns perdi. Não entra nada na minha cabeça. Tenho sido uma pessoa má, indisciplinada, alcoolizada. Andei cometendo excessos, fazendo extravagâncias baratas, brigando com quem não devia, fazendo fiascos, traindo pessoas, atraindo outras desnecessariamente.

Andei pisando na bola, fazendo gol contra, sofrendo nos pênaltis, entregando o jogo, saindo mal na foto, queimando meu filme. Não tive paciência para a maioria das conversas, não ouvi o que me disseram, estava surda das duas pernas. Não lembrei de datas, esqueci as promessas, forcei a barra, andei mal acompanhada, me juntei com a malandragem, me fiz pobre, desatenta, perdidaça!

Vivo com o dedo no nariz, o outro no clitóris, massageio-os o dia inteiro, como pontos de prazer, meu joanete não para de crescer, tenho câimbra nos dedões, tenho falta de ar, ando enxergando pouco, sou mal-educada. Falo palavrão. Sou violenta, julgo as pessoas, sou fraca de caráter, gosto de festa, sou prima da pomba-gira, minha saúde se vai junto com os goles de esperança que desperdiço no bar, preciso de sexo cada vez mais, sou dependente crônica de testosterona, preconceituosa, tenho dores de barriga, cago molengo, com cheiro ruim, estou com o estômago doído.

Não aguento mestres, não suporto teses, desconstruo qualquer hipótese por pura resistência. Resistência é um caminho que se escolhe pra passear no mundo. Resistindo a tudo você vai indo, invadindo, ocupando, despejando, desapegando, não cria nicho, não forma escola, não se enrola, vai saindo, escapando. Resisti a quase tudo, formei legiões de inimigos, destruí listas de emails com um só botão, pum e a rede acaba. Sufoquei devires. Desestruturei famílias, implantei desejos lascivos nos casais mais moderados. Vivi com os maiores gênios do meu tempo. Os melhores músicos, os melhores poetas, os melhores hackers, as mulheres mais brilhantes, as discussões mais interessantes, as redes mais estimulantes. Sou sortuda e ingrata. Derrubei mesas, atirei cervejas nas caras das pessoas, em suas roupas alinhadas, discuti politica aos gritos bêbada, destruí argumentos tristes com tristezas maiores ainda. Liberei senhas, roubei dinheiro, atravessei o país inteiro com carro alheio, acumulei multas e não paguei nada.

Sou preguiçosa, odeio trabalho, perco tempo todo tempo, faço sempre as escolhas erradas, sou sempre a mais insensata, a mais deslumbrada, a que mais grita, mais expressa, mais atrapalha. Tenho problemas com grupos, sou fascista, intransigente, perco amigos numa rodada pra não perder a piada, nem a ironia. Fui ouvido pra muita gente, fui penico pras mais diversas frequências. Criei realidades novas, inventei futuro, instaurei ruídos onde queriam detalhes. Sofri de ansiedades crônicas, tive pânicos, saí da realidade, fui internada. Sofri desprezos, não engoli fácil. Fui rica, viajei o mundo, tive amantes exagerados, fui devota, adorei vacas, elefantes gananciosos, botei dinheiro nos seus narizes gigantes pra sustentar templos idólatras.

Fui expulsa de galerias de arte. De universidades. Um desastre ambulante. Encarei lideranças com raiva incontida. Joguei torta nas suas caras. Andei contra passeatas, procissões. Me vesti de mendiga, pedi dinheiro na rua, comi comida estragada, vomitei nas calcadas, fui hospitalizada. Quebrei costelas dançando em boates, virei barcos, quase morri afogada. Viajei sozinha, atravessei rios inteiros em barcos barulhentos, cheio de povo sem dente, cheio de garimpeiros. Construí sonhos loucos, estimulei rebeliões, organizei mutirões, invadi casas vazias, me entreguei aos miseráveis. Não cumpri a metade, deixei crianças sofrendo minha falta, sumi.

Boicotei empresas. Fiz espionagens, criei um mito sobre minha própria vida. Fui admirada, temida, me fizeram homenagens. Fiz livros, lançamentos, filmes, revistas, programas de rádio, dei depoimentos, virei foco de muita conversa. Fui estudada. Sofri mal de amores, corroí o figado, a garganta, mudei de assunto na hora errada. Fui manipuladora, dissimulada, sufoquei ladainhas, roubei ideias nascendo, usei intuição contra bombardeios. Destruí amizades bonitas, com fofocas entrecortadas, cocei o buraco na frente de famílias ordenadas. Invejei casas alheias, lhes roubei só com fofoca, com vitimização, me fazendo de zonza, João sem Braço.

Escrevi poesias lascivas, exagerei sentimentos, joguei excrementos em florzinhas nascendo, as matei de sufocamento. Não engoli nada. Não deixei passar nada. Nunca fui filtro, nem corpo base, que sustenta desespero, fui o vetor, a granada. Abri caminho para as emoções mais comoventes saltarem, e não fiquei lá pra consolar, vi as emoções vomitadas e pisei em cima. Gargalhadas. Era quando via a vida surgindo e se esvaindo, como deve ser. Surgir e morrer, sem piedade, sem contenção.

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