"Estamos usando o crack"

[Janeiro] Para segregar metrópoles, abrindo espaço à especulação ou megaeventos, usa-se pretexto da droga e condena-se usuários à repressão primitiva

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Para segregar metrópoles, abrindo espaço à especulação ou megaeventos, usa-se o pretexto da droga — e condena-se usuários a políticas primitivas

Por Edmar Oliveira*

Estamos assistindo ao desmonte de um conjunto de políticas modernas e revolucionárias na área da Saúde Mental e a reimplantação de um modelo cruel e historicamente falido. Vamos olhar a questão por uma lente grande angular: setores hipócritas da sociedade, uma mídia alarmista e políticas públicas equivocadas (quando não intencionais) estão usando o crack para criminalizar a pobreza e atacar os bolsões de populações em situação de vulnerabilidade com o eufemismo do “acolhimento involuntário”. Construção inconciliável, que nós, os que trabalhamos no campo da Saúde Mental, sabemos ser falsa: ou bem o acolhimento é voluntário ou, se involuntário, aí não é mais acolhimento, e sim recolhimento.

Primeiro veio o ataque às “cracolândias” de São Paulo, depois adotado na Cidade Maravilhosa que precisa ser “higienizada” para os eventos do calendário esportivo mundial. E por imitação, começa a acontecer em outras metrópoles. A situação complexa dos bolsões de pobreza, com pessoas em situação de vulnerabilidade, não pode ser entendida de forma simplificada e menos ainda ser resolvida por atitudes apressadas. Para enfrentar a disseminação do uso de crack e outras drogas (o álcool, droga lícita permitida, e os solventes, vendidos para outros fins, estão associados ao crack, que quase nunca é consumido isoladamente), o Ministério da Saúde, através da sua Área Técnica em Saúde Mental, vinha adotando uma Política Nacional de Enfrentamento ao Álcool e outras drogas (PEAD) que previa uma complexidade de equipamentos comunitários, móveis e hospitalares.

São os Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e outras drogas (CAPS ad como centro de acolhimento diurno ou com leitos funcionando 24 horas); aproximação aos Programas de Saúde da Família através dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (os NASFs); Casas de Acolhimento Transitório (as CATs) para pessoas em situação de vulnerabilidade territorial; Consultórios de Rua, móveis, para o acolhimento e atenção dessas pessoas; Leitos Hospitalares de Referência nos Hospitais Gerais (sim, porque só neles podem ser tratados os agravos clínicos consequentes ao uso de drogas lícitas e ilícitas); além dos hospitais especializados.

Ou seja: a situação complexa do usuário deve ser atendida de forma também complexa, com um conjunto de dispositivos adequados a cada momento às necessidades do usuário. O leito comunitário do CAPS ad e o da Casa de Acolhimento Transitório não é o mesmo do Hospital Geral ou o do Hospital Especializado. Eles não competem entre si, mas são complementares, segundo a necessidade real psicológica e física do usuário a cada momento.

A política do recolhimento involuntário oferece apenas um dispositivo, a antiga e inadequada internação psiquiátrica, que a mesma política de Saúde Mental vinha combatendo por seu caráter repressivo e violador dos direitos humanos. Esta forma não pode ser encarada como um tratamento adequado e resolutivo na nossa modernidade, mas apenas um retorno ao “tratamento moral” do começo da psiquiatria no século XVIII.

Assistir ao desmantelamento das políticas complexas, que ainda estavam em ritmo de implantação, para a recuperação de um modelo já condenado no século passado é um martírio que os militantes da construção da Reforma Psiquiátrica estão vivendo. A Reforma Psiquiátrica é um movimento que implantou dispositivos comunitários de Saúde Mental, reduzindo consideravelmente o uso do hospital psiquiátrico especializado. E pior é saber que o modelo da internação (na contramão da Reforma), proposto atualmente, condena à exclusão intencional, em nome do tratamento, populações vulneráveis que sofrem da epidemia de abandono social. E para as quais haveriam de ser implantadas políticas públicas sociais, educacionais, habitacionais e de emprego propondo a inclusão dessas pessoas que ficaram para trás no apressamento competitivo dessa sociedade.

Pois não é o crack a epidemia a ser enfrentada, mas o abandono de populações marginalizadas que não encontram lugar nessa sociedade do individualismo. Talvez por isso eles se juntam nos guetos, onde ainda encontram a solidariedade dos iguais, já que a sociedade não tem lugar para esta gente que não soube encontrar seu lugar. É a partir dos guetos, lugares que geralmente são depósitos de lixo, que os abandonados gritam à sociedade que são o lixo humano sobrante dessa sociedade egoísta. Um observador estrangeiro chamou esses lugares de “manicômios a céu aberto”. Correta observação. Eles estão presos à impossibilidade de pertencimento à sociedade moderna.

Voltando a olhar pela lente grande angular: não é pelo uso do crack que eles se encontram nestes lugares marginalizados a que chamam de “cracolândia”, mas por estarem nestes lugares em situação de vulnerabilidade e abandono é que – também – fazem uso do crack. Todos nós estamos “usando” o crack para esconder nossa sujeira debaixo do tapete.

Sobre o mesmo tema:

> Drogas: muito além da hipocrisia

Como políticas oficiais proíbem algumas substâncias, mas estimulam consumo irresponsável de centenas. Por que é preciso fazer exatamente o contrário. Por Henrique Carneiro

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*O psiquiatra Edmar Oliveira foi diretor do Instituto Nise da Silveira (RJ). É autor dos livros Ouvindo Vozes Vieira & Lent, 2009, RJ; e von Meduna, Oficina da Palavra, 2011, Pi, ambos sobre práticas em Saúde Mental. Este texto foi originalmente publicado em novembro de 2010, no blog de Flávio Campos

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9 comentários para ""Estamos usando o crack""

  1. Mario Alberto Dantas disse:

    Li com a devida atenção o texto do Dr. Edmar Oliveira. No seu artigo, o Dr. Edmar expõe com clareza a sua defesa dos direitos humanos, em total concordância com a nossa Constituição Federal. Concordo totalmente com as suas argumentações nele apresentadas. Lembro ainda que vigora a Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001 (Lei Paulo Delgado), além do recente Decreto nº 7.612, de 17 de novembro de 2011. Parabéns, Dr. Edmar!

  2. Anônimo disse:

    Quero muito saber o que de fato será feito com estes usuários. O Datena não vai investigar isso, não é?
    Por quanto tempo ficarão internados?
    E depois da internação serão marginalizados novamente?
    A ação da polícia pode ser apenas uma “limpeza” momentânea que gerará outras cracolândias?

  3. Arnaldo Azevedo Marques disse:

    Edmar.
    O que aconteceu com o Ministerio da Saúde? O PEAD vinha sendo adotado? Independente do conceito de “voluntario” e “involuntário” o mais importante é implementar políticas públicas com total eficácia. Onde encontrar condições de gestão eficaz em governos “aparelhados” pela absurda incompetência. O problema das drogas é abrangente. Vai da produção pelos nossos “hermanos” extra fronteiras, ao trafico e consumo. Diplomacia, segurança, saúde, erradicação da pobreza. É mobilização de guerra. Mas…sempre há um mas: a COPA é muito mais importante.
    “Ao povo pão e circo”, imperador Nero. Aqui, onde está o pão?
    Arnaldo Azevedo Marques – São Paulo
    [email protected]

  4. Washington Luis Leite disse:

    Estou de acordo com vc Paulo Rigato. Trabalhar em Serv. de Saúde Mental Público (precários) com dependentes químicos e infratores de toda ordem, pois o judiciário não sabe para onde mandá-los e os encaminha aos serviços de Saúde Mental, tem sido algo frustrante e desanimador. E ainda tendo de conviver com essas balelas ideológicas!? Por favor, me poupe Edmer.

  5. Paulo Alberto Rigato disse:

    Para aqueles que pensam ser cruel esta iniciativa do Poder Público, leve para casa alguns depentendes químicos e fique responsável por eles.

  6. Douglas Berteloni disse:

    Concordo, porém é necessário lembrar que o Estado é incopetênte pois não implementa políticas públicas como a de saneamento básico já que nem todas as residências neste Brasil tem o mínimo para se ter saúde, e a repressão nem começou pois ainda tem tempo para mais corrupção em 2013 e o sucateamento do estudo.

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