Espanha: novas micro-utopias dos Indignados

Assembleias virtuais, guerrilha (inclusive judicial) contra bancos, não-violência ativa, pós-sindicalismo, ativismo de idosos: há mais que “austeridade” no cenário europeu

Imagem: Voces con Futura

Imagem: Voces con Futura

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Por Bernardo Gutierrez | Tradução: Gabriela Leite

[Este texto é continuação de “Muito mais que Indignados”, do mesmo autor, que pode ser lido aqui.]

“O 15M — seja ele um diagnóstico, um movimento, um estado de ânimo ou um conjunto de vínculos humanos — construiu protótipos. E muitos. Jurídicos, urbanos, culturais, econômicos, tecnológicos, comunicativos, políticos, afetivos.” Na primeira parte deste texto, intitulada “Muito mais que Indignados”, comecei este inventário pessoal: processos/ações inovadoras que já estão funcionando, realizações coletivas, histórias minúsculas com um forte impacto, invisíveis para uma grande maioria. Falei da microutopia do método, da microutopia urbana, da microutopia comunicativa, da microutopia da cultura coletiva e da microutopia no feminino, surgidas no calor do 15M.

Em seguida, outros nove protótipos foram cozinhados coletivamente no entorno do 15M. Poderiam ser mais. Muito mais. Mas este texto não pretende ser uma lista nem um décimo nono inventário. Este texto está em construção. Este texto sonha com ser lanterna, luz de vela. Um feixe de luz tênue que deslize pelas rachaduras do sistema e ilumine pouco a pouco a matéria de um mundo novo. Pode haver tantos protótipos quanto pessoas. Apenas há que ter atitude para pegar a lanterna, apontar para um canto e tentar ver a mudança.

 

PROTÓTIPO 6/MICROUTOPIA DA PARTICIPAÇÃO

As assembleias realizadas nas praças supuseram uma quase inédita politização do espaço público. Apesar de os mecanismos de consenso não acabarem influindo diretamente no funcionamento da democracia, a criação de novos espaços de diálogo político deixou bastante de fora do jogo as instituições. O projeto/processo Parlamento a la Calle [Parlamento na rua], por exemplo, é um verdadeiro cheque à democracia estática, que só dialoga nas câmaras legislativas. Além disso, as assembleias nas praças consolidaram alguns mecanismos concretos.

O desejo de participar é a essência da ferramenta Propongo [Proponho], uma plataforma que coleta ideias políticas e habilita a votação coletiva, o que inspirou o Gabinete Digital do Governo do Rio Grande do Sul (Brasil). Já a Assemblea Virtual [Assembleia Virtual] foi um verdadeiro laboratório de participação tecno-política. Outras inciativas como Ahora tu decides [Agora você decide] (que incentivam referendos digitais sem mediação do Estado), as Urnas indignadas, colocadas nas ruas em novembro passado, ou as mesas de consulta sobre a saúde da Marea Blanca têm um impacto simbólico poderoso, que podem forçar mudanças nos mecanismos participativos do sistema. Inclusive a iniciativa Graba tu pleno [Grave seu encontro], que anima os cidadãos a gravar os encontros políticos para garantir a transparência, poderia considerar-se também um influente protótipo do 15M.

Mas talvez seja a Demo4Punto0 [Demo4ponto0], uma iniciativa híbrida de participação, a mais inovadora. É um mecanismo que permite que todos os cidadãos possam participar digitalmente da votação de qualquer lei. Calculando a presença de cada partido no parlamento, o mecanismo atribui proporcionalmente uma cadeira para cada 150 mil pessoas que participem. Não é coincidência que a Junta de Andaluzia tenha encomendado o inovador Informe da Democracia Digital da Andaluzia a alguns dos fundadores do Demo4Punto0.

 

PROTÓTIPO 7/MICROUTOPIA DO ATIVISMO LÚDICO

A não-violência inspirou o 15M. Ele ressuscitou a resistência pacífica e a adaptou à era da rede. Renegando as armas, a guerrilha urbana clássica, o 15M converteu o ludismo em sua wikibandeira. As emoções em rede, a viralidade das ações, multiplicavam o efeito e mutações das mesmas. O culture jamming — remesclagem de logos e símbolos da revista canadense Adbuster, que incentivou Occupy Wall Street — sofreu uma mutação. E os jammers do 15M se transformaram em DJs de emoções e memes. Vemos como as dançarinas de flamengo do flash mob Flo6x8 invadiam um banco; vimos como uma multidão montava uma festa em uma sucursal do Bankia (vídeo acima) para promover a campanha #CierraBankia [#FechaBankia]; nos surpreendemos com a paródia Cajero Electoral [Caixa Eleitoral]. Se os bancos são, no fim, os que não governam, não deveríamos votar diretamente nos bancos? O Jiu Jitsu político que usa a força do inimigo para tombá-lo é a arma da campanha Metro de Lujo [Metrô de Luxo] de gente engravatada contra o aumento de tarifas, do espalhafatoso Cobrador del Chandal, que perseguia políticos, ou daquela vingança fétida de levar #TubasuraalBanco [#Seu lixo ao banco]. Campanha que certamente importou para Portugal (#OLixoAosBancos).

A #ManiFicció [Manificção] que fez a polícia [Mossos D’Esquadra] e meios de comunicação da Catalunha passarem por um papel de ridículos (convocou-se uma manifestação falsa como forma de guerrilha) é outro grande exemplo.

O 15M misturou com imaginação o Manual de la guerilla de la comunicación [O manual da guerrilha da comunicação] e o Tratado para radicales [Tratado para radicais], de Saul Alinsky, entre outros clássicos da ação. Além disso, construiu uma autêntica guerrilha de trolls ativistas no Twitter. Los perfis @barbijaputa ou o coletivo @jkastrolla são bons exemplos.

 

PROTÓTIPO 8/MICROUTOPIA DA RESILÊNCIA

Diante do aumento das tarifas do transporte público, a resistência clássica inventaria barricadas, manifestações, fogueiras urbanas. A resilência — adaptação, microataque, hackeamento — busca as brechas, o alegal. YoMeMetro, TúTeMetras… não pague o bilhete. Se o fiscal te dá uma multa, existe uma cooperativa que repõe os gastos: é mais barato pagar uma mensalidade à cooperativa MeMetro que pagar a tarifa do transporte mensal. O movimento YoNoPago [Eu não pago], nascido na Grécia, que luta contra os pedágios de estradas ou o aumento da passagem do metrô, também é uma prova de resilência. Quando o IVA [equivalente ao Imposto Sobre Serviços brasileiro] cobra sobre trabalho autônomo foi elevado a 21%, também houve uma organização bacteriana, um movimento cozinhado na rede chamado #HuelgaAutónomos [Greve de autônomos], para compartilhar entre várias pessoas uma mesma quota tributária ou descadastrar-se do sistema durante alguns meses.

 

PROTÓTIPO 9/MICROUTOPIA DO PÓS-SINDICALISMO EM REDE

Imagen: Marea Verde, por Andrés Arriaga

O fenômeno das Marés ciudadanas [Marés cidadãs], principalmente as Mareas de Madrid [Marés de Madri], não está sendo suficientemente estudado pelos sociólogos ou antropólogos. Menos ainda pelos meios de comunicação. A Marea Blanca [Maré Branca] (que defende a saúde pública), a Marea Verde [Maré Verde] (que luta pela educação pública), a Marea Azul [Maré Azul] (defesa da gestão pública da água) ou a Marea Violeta [Maré Violeta] (feminista), são uma mutação das mobilizações tradicionais convocadas por partidos políticos e sindicatos. O 15M interrompeu tudo. Modificou o código dos protestos. O 15M contagiou a sociedade. E por isso as Marés funcionam com horizontalidade, com trabalho em rede, sem hierarquias. A mobilização cria um novo imaginário (verde = educação) e ninguém comparece a uma manifestação com faixas sindicais ou de um partido, mesmo que pertençam a eles. Os documentos são formulados, além disso, com transparência e abertura. As Marés são uma nova forma de mobilização social. São uma nova forma de sindicalismo?, pergunta-se há alguns meses a Madrilonia. Eu não tenho dúvidas: as Marés são um pós-sindicalismo em rede que marca o início de uma nova era.

O #TomaLaHuelga, o bloco crítico que o 15M convocou para a greve geral do último 14 de novembro, é outro claro caso de pós-sindicalismo.

 

PROTÓTIPO 10/MICROUTOPIA DA INTELIGÊNCIA COLETIVA

Mapa de Stop Desahucios, construído sobre a plataforma Ushahidi. Um alerta por SMS avisa ao usuario despejado sobre os apartamentos que estão vazíos nas proximidades de sua casa, e são propriedade dos bancos

O “sólo no puedes, con amigos sí” [“sozinho você não pode, com amigos, sim”], uma frase do rebelde programa infantil La Bola de Cristal [A Bola de Cristal] (1984-89), foi um grito habitual na primeira fase do 15M. Talvez por isso, passou-se com muita naturalidade do DIY (Do It Yourself, faça você mesmo), um dos mantras da rede, ao DIWO (Do It With Others, faça com os outros). Um tom interessante: o 15M consagrou a “multidão” frente à “massa”. Frente ao “homem massa” de que falava Ortega Gasset, está se configurando o “homem multidão” (Toni Negri, Howard Rheingold), que conforma um corpo maior, autônomo, que supera a soma de suas partes. As multidões inteligentes do 15M deram visibilidade como nunca o poder do conceito swarm (enxame) (Kevin Kelly/Steve Johnson), o da inteligência coletiva (James Surowiecki, Pierre Levy). Movimentos como Stop Desahucios [Pare os despejos] (que tentam evitar despejos coletivamente), ações como os Escraches [escrachos] (que expõem a público políticos e banqueiros) ou campanhas como Toque a Bankia são a prova empírica do poder de enxame e da inteligência coletiva.

A inteligência coletiva nutre a 15Mpedia ou o Glosario Abierto del Vivero de Iniciativas Ciudadanas [Glossário aberto do viveiro de iniciativas cidadãs]. A inteligência coletiva é a maior aliada dos grupos de What’s App [aplicativo para celulares de comunicação instantânea] criados por cidadãos durante as manifestações para velar por sua segurança. A inteligência coletiva alimenta o mundo paralelo, sustentável e alternativo, mapeado no projeto MeCambio.Net.

 

PROTÓTIPO 11/MICROUTOPIA DO COMUM 

“Do caos surgiram essas ações, contruções e acontecimentos que têm intenções integrais, não corporativas; tendem a organizar-se como comunidade”, afirmava recentemente a hacker Marga Padilla em um texto de TomalaPlaza.net. E o 15M é um manancial de comunidades. Um manancial de comunidades de vizinhos que compartilham Wi-Fi graças a Wifis.org, usam moedas sociais (PUMA, além de muitíssimas outras), sistemas de troca digital/analógica como Nockin ou práticas cooperativas como o Projeto No.Ma.Des.

A construção de comunidades, a inter-relação entre elas, emana de um forte desejo de comum. Os bens comuns, o comum, foram temas muito presentes nos debates desde o início do 15M. A Carta dos Comuns, do coletivo Madrilonia.org, editada por Traficantes de Sueños [Traficantes de Sonhos], é um bom exemplo de que a microutopia do comum, que o 15M está construindo com protótipos concretos, às vezes mínimos, simbólicos ou quase invisíveis, apoia-se também em conteúdo intelectual.

 

PROTÓTIPO 12/MICROUTOPIA JURÍDICA

O 15M atravessou um dos pilares do Estado ocidental: o jurídico. A existência da Comisión Legal Sol, que nasceu na primeira noite da acampada, é uma mutação para o coletivo de uma profissão especialmente individualista. Na Espanha, alguns advogados já trabalhavam em rede havia alguns anos, compartilhando petições jurídicas e incentivando as licenças livres em sua documentação (os que convergeram em #NoLesVotes, entre outros). Mas o 15M multiplicou esta microutopia jurídica colaborativa, aberta e livre. Um exemplo são os métodos jurídicos prototipados coletivamente pelo Stop Desahucios e pela Plataforma de Afectados por la Hipoteca (PAH). A Operación Euríbor, elaborada, comunicada e lançada em rede é outro espetacular exemplo da microutopia jurídica “made in 15M”.

O caso de Toma Parte é duplamente interessante. É um coletivo de advogados em rede que trabalham anonimamente. E ao mesmo tempo é uma plataforma/ferramenta que ativa a inteligência coletiva: “Toma Parte é uma ferramenta desenvolvida para que os cidadãos usemos nossos recursos para alcançar soluções. Juristas fornecerão o conhecimento necessário para encontrar a ação legal adequada. Qualquer pessoa poderá fazer uma proposta online. A comunidade votará nas propostas, as complementará com provas e testemunhos e fornecerá os recursos necessários mediante crowdfunding. A documentação estará disponível sob licenças Creative Commons e poderá ser reutilizada.”

No entanto, a microutopia jurídica do 15M está marcada por uma ação concreta: 15Mparato. A campanha, lançada através da plataforma Goteo.org, conseguiu reunir, em menos 24 horas, os 16 mil euros necessários para processar Rodrigo Rato por sua gestão suspeita à frente do Bankia. Preparada na rede, comunicada por redes digitais, conseguiu o envolvimento de 50 acionistas do banco, que se ofereceram como queixosos, além de dezenas de testemunhas internas. A cidadania em rede deixou a atitude defensiva. E atacou. E mostrou, na primeira ação jurídica com crowdfunding da história, que a elite político-econômica pode começar a tremer. “Acabou a impunidade. Na guerra dos de cima contra os de baixo, o medo mudou de time”, podemos ler no site 15Mparato.

 

PROTÓTIPO 13/MICROUTOPIA DO CONHECIMENTO LIVRE

Conhecimento livre, licenças livres, acesso livre. Desde seus inícios, o 15M colocou-se frontalmente contra o copyright. Muitos nós ou atores do 15M tiveram especial importância na pressão para melhorar a Lei de Transparência. Também na luta contra projetos restritivos como a Lei Lassalle. A 15Mpedia reúne muitíssimas iniciativas ao redor da cultura e acesso livres, como esta lista de bibliotecas que permite que seus títulos sejam baixados livremente.

Por outro lado, o 15M e a mutação Marea Verde estão defendendo o acesso à educação pública com alguns detalhes inovadores. A microutopia da “Ciudad del Aprendizaje” [Cidade da aprendizagem] — o ensino impregnando a urbe, sem muros, sem a hierarquia do passado — está em marcha. No último 9 de março, as universidades madrilenhas tomaram a cidade durante a campanha #UniEnLaCalle [Universidade na rua], 575 praças e pontos da cidade repletos de aulas públicas.

 

PROTÓTIPO 14/MICROUTOPIA DA REVOLUÇÃO DA TERCEIRA IDADE

“Somos idosos, não temos medo.” Este grito habitual do coletivo Iaoflautas/Yayoflautas desmantela qualquer clichê sobre o movimento 15M e os “jovens desempregados que saem às ruas”. Além disso, o nascimento do coletivo Iaioflautas em Barcelona desativou a intoxicação do coro midiático que identificava os participantes do 15M como hippies (cachorro+flauta), já que “yayo” é sinônimo de avô, na Catalunha. A expansão do fenômeno Yayoflautas por todo o Estado espanhol foi inflamada. E cria o novo imaginário revolucionário de uma Europa envelhecida. Talvez o meme que derrube a Troika e assalte Bruxelas não sejá mais um estudante, e sim um avô empoderado, que aprendeu a usar as redes sociais com seu neto. A ação #Labolsaolavida [A bolsa ou a vida], que abre este protótipo, tem — como a maioria das ações dos Yayos — um impacto simbólico que ainda não conseguimos entender. Um grupo de aposentados invadindo uma bolsa de valores nem sequer havia ocorrido nas visões distópicas da literatura cibepunk. E #EstáAcontecendo.

 

PROTÓTIPO 15/MICROUTOPIA NEOINTERNACIONALISTA

O 15M diluiu fronteiras. Teceu comunidades transnacionais. Mitigou o nacionalismo exagerado que o sistema forja durante sua crise. Primeiro, o 15M expandiu suas redes por todo o mundo, ignorando os Estados-nações. Seus gritos (“não somos mercadoria nas mãos de políticos e banqueiros”) se entendiam em todas as línguas. Tecer redes, diluir fronteiras. Depois, a partir de seu coração/nó espanhol, o 15M abraçou a diferença. Protegeu seus imigrantes da polícia. Reforçou campanhas contra os Centros de Internamento para Estrangeiros (CIES). Fundou Brigadas Vecinales de Observación de Derechos Humanos [Brigadas de Vizinhança para Observação de Direitos Humanos]. Até os médicos declararam-se objetores de consciência frente ao corte de direito e atendem imigrantes ilegais. O 15M está preparando um novo movimento internacionalista, tão potente como o operário no final do século XIX, mas com ferramentas conectoras jamais vistas. O vídeo de solidariedade dos cidadãos alemães, em resposta ao vídeo de uma assembleia do 15M, é uma prova visível de uma nova microutopia neointernacionalista.

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