Enfim, uma cultura negra sem pretos?

Uma pedagoga freiriana denuncia: vivemos a desapropriação cultural dos pretos: querem as culturas negras sem pobres, para deleite fútil das elites

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Por Juarez Xavier, no AlmaPreta | Imagem: Modesto Brocos, A Redenção de Cam (1895)

Encerramento das atividades do  Núcleo de Estudos e Observação em Economia Criativa (Neocriativa), neste semestre. Confraternização no bar “U Baiano”. O clima da reunião manteve-se aquecido, horas depois. Estudos, pesquisas e reflexões sobre o surrealismo [manifestos, contextos, criativas, criativos e obras].

Inevitável: a obra do Aimé Césaire (1913-2008), militante, político, escritor e poeta martiniquense, considerado por André Breton (1896-1966) como um dos melhores poetas do movimento.

Nesse cenário, a pedagoga freiriana Patrícia Alves formulou uma teoria. Elegante. Sofisticada. Simples. Sintética, como devem ser os melhores conceitos: “há em curso um processo de desapropriação cultural dos pretos nos espaços negros; querem as culturas negras, sem pretas e pretos!”

Segundo ela, não é uma mera apropriação – “eu tomo e pronto; é meu!” Ou um processo de universalização do acesso à cultura negra, “porque somos uma cultura mestiça”. Nada disso! É o desalojamento do negro de sua cultura.

O sonho dos higienistas do século 19 realizado, sem derramamento de sangue. Limpo é eficiente.

Aberto o “círculo de cultura”, o debate fluiu.

(Lembrei-me de uma conversa que tive há 19 anos com uma aluna de antropologia da USP, numa casa de candomblé Ketu, na capital paulista. No final do ato sagrado, abriu-se uma roda de samba, seguida de uma de capoeira. Do nada, a menina disse: “Mestre Bimba degradou a capoeira!”. De bate pronto, respondi: “você não tem a experiência, o jogo, a idade e nem a cor pra falar de Mestre Bimba”. A garota arregalou os olhos, balbuciou algo inaudível, e foi embora).

Em recente aula ministrada no curso de formação para professores, promovido pelo Centro de Estudos Africanos [CEA/USP], e coordenado pelo Prof. Dr. Kabengele Munanga, ao final, no debate, uma das participantes disse que uma casa de candomblé em São Paulo não aceita negras e negros, só brancos, “para manter o nível”.

Esses fragmentos de narrativas – que se repetem em diversos espaços, com diversos protagonistas – corrobora a tese da pedagoga: sim à cultura negra; não à presença dos negros e das negras, porém.

Sonho da elite monarquista/republicana brasileira: se não destruo, desarticulo.

João Batista de Lacerda (1846-1912) disse, em 1911, no Congresso Universal das Raças, realizado em Londres, que em cem anos, em 2011, a cultura e a presença negras seriam lembranças distantes, no país.

Para ele, a tela Redenção de Can, do pintor espanhol Modesto Brocos y Gómez (1852-1936), de 1895, era a representação do futuro nacional. No quadro, uma senhora negra agradece “aos céus” pelo pele clara do neto, sentado no colo da filha mestiça, ao lado do marido branco. Teoria do branqueamento.

O período era o ponto de ruptura no sistema de produção. A transição do trabalho forçado para o assalariado foi o da experimentação de estratégias de etnocídio e genocídio da população negra.

Segundo o sociólogo Clóvis Moura (1925-2003), em 1850 criam-se as bases para a articulação de um Estado Nacional autoritário de segregação radical e ampliada do segmento não branco da população.

Sem poupança individual e familiar para “compra um pedaço de chão”, a Lei da Terra (Lei 601, de 18 de setembro de 1850) privou os afrodescendentes do meio de produção mais importante da época.

A decisão de desmonte seguro, lento e gradual do estatuto da escravidão aprofundou as dificuldades materiais e imateriais do período [Lei do Ventre Livre, 1871; Lei dos Sexagenários, 1885; Lei da Abolição, 1888].

Entre os anos de 1870 e 1930, mais de 3 milhões de europeus ingressaram no país, segundo Darcy Ribeiro. O objetivo era substituir a população preta pela branca. Ao chegaram, encontraram um país erguido por mãos negras e indígenas, com o território desenhado, a língua nacional estabelecida e o congelado sistema social, que aprisionava os descendentes de africanas e africanos na base da pirâmide.

(No início, as elites queriam europeus do norte, mas se contentaram com os do sul de origem latina: portugueses, espanhóis e italianos)

É com esse pano de fundo que emergem as “rodas sagradas” das culturas negras: candomblé, samba e capoeira. Acossado pelo estado policial, o candomblé montou sua fronteira de resistência “do lado de cá do muro”. Cercou-se. Fechou-se. Protegeu-se, para se preservar. E conseguiu!

Júlio Braga mostrou — no seu livro Na gamela do feitiço e em suas pesquisas – a magnitude do que foi a perseguição às tradições afrodescendentes nesse período. O samba fechou-se no morro. Espaço de transculturalidade africanas e inventou-se. Fortaleceu-se. Derramou-se sobre a cidade.

A capoeira – e esse é um traço decisivo da sua contribuição – ganhou o espaço público. As “maltas” (Nagoas e Guaiamus) bagunçaram esse período de disruptiva transição, às vezes ao lado dos monarquistas, outras ao lado dos republicanos, e criaram suas redes, conexões e processos, na esfera pública.

A característica comum dessas rodas foi a resistência ao genocídio e etnocídio em curso. Foram espaços de defesa da vida. Da diversidade. Da multiplicidade, contra o extermínio. Negras e negros ergueram e se alojaram nesses locus de resistência africana, como agentes de sua história e protagonistas na fundação de seu futuro.

Desalojá-los implica desapropriá-los de suas histórias de resistência.

Solano “Vento Forte Africano” Trindade (1908-1974) sacou isso. Seus esforços – manter a cultura negra– eram para preservar o logos africano. Como fizeram as velhas e os velhos que fundaram seu asé e ntu. Como fizeram as velhas e os velhos que legaram às gerações futuras o samba. Como fizeram as velhas e os velhos que “inventaram” a capoeira.

Preservar os espaços negros com suas pretas e pretos é um ato de coragem revolucionária, no palco das violências articuladas físicas e simbólicas, que visam o etnocídio e o extermínio da população pobre, negra e da periferia.

Foi o que sussurraram “as bocas perfumadas” das anciãs e anciões, nos “ouvidos macios” das suas e seus descendentes. Quem amassou o barro com os pés conhece a sua densidade!

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6 comentários para "Enfim, uma cultura negra sem pretos?"

  1. Elza disse:

    Parabéns ao autor do texto! Preciso e verdadeiro!
    Pra imprimir, replicar e guardar!!!

  2. O fenômeno não é simples. Como compreender a história da África, por exemplo? Vejo que muitos trabalhos simplesmente pegam o modelo de historiografia europeia e a aplicam aos povos da África e a história da África fica sendo apenas uma sucessão de reis e impérios. Adianta estudar história da África na escola se o modelo de historiografia é europeu? Sim e não, há prós e contras. Uma ONG do movimento negro com presidente, secretário, tesoureiro, no modelo europeu faz sentido? Sim e não. Sim porque ocupa os espaços possíveis, não por reproduzir modelos estranhos.
    Um movimento negro que luta por uma africanidade imaginada, mas olha os pretos na favela com paternalismo, não me parece ter muito futuro. É o caso lá da menina da capoeira em que uma capoeira “pura” tem mais valor que a capoeira real.

  3. Agradeço pelas indicações de leitura.

  4. Este é um texto para imprimir e ler com calma.

  5. marcio ramos disse:

    Fóda!
    Depois de ler o texto pensei:
    A maioria das escolas e rodas de capoeira que eu conheço no Sudeste e Nordeste tem mais brancos que negros; idem terreiros de Umbanda; idem rodas de samba no morro e no asfalto. Esta é minha experiência.

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