Dois filmes à sombra

Pena: crítica dos jornais não tem olhos para “Transeunte” e “Ex-Isto”, dois dos longas brasileiros muito interessantes

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Por José Geraldo Couto, editor do Blog do Zé Geraldo

No nosso aviltado mercado exibidor, bons filmes brasileiros disputam espaço não só com os blockbusters americanos e nacionais (leia-se globais), mas também com os bons filmes “de autor” vindos dos quatro cantos do mundo.

Nesse contexto, a imprensa cumpre – ou deveria cumprir – um papel importante para não deixar que boas produções sumam ou passem despercebidas. Mas não foi o que aconteceu com dois dos longas mais interessantes lançados no país nos últimos tempos: Transeunte, de Eryk Rocha, e Ex-Isto, de Cao Guimarães. Eclipsados pelo destaque crítico dado a A árvore da vida e Melancolia, os dois virtualmente desapareceram.

Nossos jornais e revistas de grande circulação os trataram quase com desdém, tomando para si os valores e critérios do mercado. Como se pensassem: não são “produtos” para o grande público, então não precisam ser comentados. Uma pena.

Corpo a corpo com a cidade

Curiosamente, trata-se dos primeiros longas de ficção de diretores vindos do documentário. Em Transeunte, o jovem filho de Glauber Rocha parece se afastar do respiro épico dos filmes do pai (marcante em seus primeiros longas) para mergulhar no registro lírico, imergindo de maneira corajosa e comovente na exploração de uma vida singular, a de um homem solitário de meia-idade (Fernando Bezerra) que perambula pelas ruas do Rio de Janeiro. Rodado em preto e branco, com som direto e muita câmera na mão, o filme adere à epiderme do personagem, buscando seu sentido e sua poesia na interação do corpo desse indivíduo comum e ímpar com o corpo múltiplo da cidade. Como o próprio diretor costuma dizer, não é um filme sobre o personagem, mas sim com o personagem.

Um corpo a corpo ainda mais complexo de um homem com seu entorno é encenado por Cao Guimarães em Ex-Isto. O experiente desbravador dos limites do documentário enfrenta aqui o desafio de dialogar cinematograficamente com um livro inclassificável e irredutível, o “romance-ideia” Catatau, de Paulo Leminski. O barroco jorro verbal leminskiano parte de uma hipótese genial: e se René Descartes tivesse vindo ao Brasil na entourage de Mauricio de Nassau, na época da ocupação holandesa de Pernambuco? No filme, o extraordinário João Miguel assume o papel desse Descartes delirante e em crise num país em que tudo é exuberante, desmesurado e absurdo.

Adoecimento da lógica

Ao contrário do crítico literário (por sinal, meu amigo) que resenhou o filme na Folha de S. Paulo, penso que Cao Guimarães foi muito feliz ao encontrar ou suscitar imagens e sons (fala, ruídos, música) que traduzem audiovisualmente esse “adoecimento da lógica cartesiana” em terras tropicais.

São, em suma, dois filmes belíssimos que mereciam um tratamento melhor por parte da nossa imprensa. Eu adoraria saber, por exemplo, o que um Inácio Araujo tem a dizer sobre Transeunte, ou o que um Alcino Leite Neto escreveria sobre Ex-Isto.

Quem ainda tiver oportunidade de ver, não deve perder. Aqui vão, para não me deixar mentir, os trailers dos dois filmes. Divirtam-se.

José Gerado Couto é crítico de cinema e tradutor. Escreve suas criticas hoje em seu próprio blog e na revista Carta Capital.

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