Diário caótico do romance de Oswald e Deisi

No “Perfeito cozinheiro das almas deste mundo”, efervescência cultural da “garçonnière” onde se reuniram futuros modernistas e surpreendente musa feminista

140510-Picasso

.

Por Mário da Silva Brito* | Imagem: Pablo Picasso, Le Rendez-vous (1900)

Haroldo de Campos é enfático ao fazer referência à maneira como o historiador seloOswald3Mário da Silva Brito conduz a sua análise sobre “O Perfeito cozinheiro das almas deste mundo”, do escritor Oswald de Andrade.

Há nas palavras do poeta, morto há pouco mais de dez anos, uma percepção integradora. Ele nos chama a atenção para o quanto uma compreensão madura de uma obra é capaz de nos comover e nos deixar em suspenso, quase com a mesma intensidade que a própria obra um dia soube realizar. Criação e pensamento andam juntos.

Interessa, nesse sentido, observar o ponto em que Campos nos direciona a apreciar as palavras do historiador. Se bem atinados, vivenciaremos essa experiência como se assistíssemos ao entrecho dessa “ópera de Puccini que a vida real orquestrou”.i (Theotônio de Paiva)

De 30 de maio a 12 de setembro de 1918, Oswald de Andrade compõe, com amigos, O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo.Trata-se de um grande caderno de duzentas páginas, medindo trinta e três centímetros de altura por vinte e quatro de largura, que se transforma num diário dos frequentadores da garçonnière, provida de fonola e alguns discos, que Oswald mantém à Rua Libero Badaró, 67, 3º andar, sala 2.ii

No enorme caderno, escrito a tinta roxa, verde e vermelha, ou a lápis às vezes, há de tudo: pensamentos, trocadilhos (inúmeros), reflexões, paradoxos, pilhérias com os habituésdo retiro, alusões à marcha da guerra, a fatos recentes da cidade, a autores, livros e leituras, às músicas ouvidas (das eruditas às composições populares americanas), a peças em representação nos palcos de São Paulo, às companhias francesas em tournéepelo Brasil. Há mais, porém: há colagens, grampinhos de cabelo, pentes, manchas de batom, um poema pré-concreto de Oswald, feito com tipos de carimbo,iii cartas de amigos grudadas em suas páginas, afora charges da imprensa com legendas adaptadas para zombarias com os integrantes do grupo, enigmas pitorescos, recortes de jornais e, inclusive, o cartão de um usuário em que se lê: “de la part de Décio de Paula Machado”.iv Soltas entre as páginas do caderno, flores murchas e uma pequena bandeira norte-americana de seda.

A idéia do álbum partiu de Pedro Rodrigues de Almeida,vliterato ratéque acabou delegado de carreira, espírito perfeito de académicienescrevendo o médio do bom gosto. Sob o pseudônimo de João de Barros, é ele quem abre o caderno, onde diz: “Muito de arte entrará nestes temperos, arte e paradoxo que fraternalmente se misturarão para formar, no ambiente colorido e musical deste retiro, o cardápio perfeito para o banquete da vida”.vi

Os colaboradores não se utilizam de seus nomes. Valem-se de pseudônimos ou apelidos. Sabe-se que frequentaram a garçonnière, entre outros, Monteiro Lobato (que lá, um dia, esqueceu as provas de Urupês), Menotti del Picchia, Léo Vaz, Guilherme de Almeida, Ignácio da Costa Ferreira, Edmundo Amaral, Sarti Prado e Vicente Rao. Nas suas Memórias e Confissões, Oswald revela alguns dos pseudônimos: João de Barros é Pedro Rodrigues de Almeida;vii Miramar e Garoa, Oswald de Andrade;viii Viviano, Edmundo Amaral;ix Ferrignac e Ventania, Ignácio da Costa Ferreira;x e Bengala, Léo Vaz;xi1 Guy – todos os paulistas o sabem – foi sempre pseudônimo de Guilherme de Almeida. Sarti Prado pode ser identificado pelo seu latinório ou por sua “literatura bestíssima” – como diz Oswald,xii1 literatura onde fala em “a Alameda do Sonho”, “o halo do passado”. Em algumas páginas do diário, Ferrignac deixou caricaturas de Oswald, de Deisi, de Jeroly, de Viviano, de Guilherme de Almeida, de Vicente Rao e de Léo Vaz.xiii1

A figura dominante de O Perfeito Cozinheiro é Deisi – novo amor de Oswald, misteriosa mulher com que depara ao sair de momentos sentimentais turbulentos, mulher que exerce grande fascínio não só sobre o jovem jornalista, mas também sobre todos os que o rodeiam e fazem ponto na sua garçonnière. Há uma espécie de secreta paixão coletiva por Deisi, que é amante de Oswald. “Todos declaram que amavam a Cíclone”, escreve ele.xiv

Deisi surge na vida de Oswald após seu rompimento com Kamiá – ex-rainha dos estudantes de Montparnasse, que trouxe de Paris – e superada a crise amorosa que teve por centro a bailarina Landa Kosbach, por ele batizada no Duomo de Milão. O encontro dos dois é assim relatado por Oswald: “Em minha casa calma da Rua Augusta, a professora de piano de Kamiá, uma moça chamada Antonieta que mora ao lado, na Rua Olinda, traz para o almoço uma prima esquelética e dramática, com uma mecha de cabelos na testa. Chamavam-na Deisi. Parece inteligente. Convido-a cinicamente a amar-me. Ela responde: – Sim, mas sem premeditação. Quando nos encontrarmos um dia. – Pergunto-lhe que opinião tem dos homens. – Uns canalhas! – E as mulheres? – Também!”xv Pormenor a registrar: este diálogo abre o romance A Estrela de Absinto, de Oswald, escrito de 1917 a 1921, refundido várias vezes, mas publicado em 1927 na sua forma primitiva. Após esse primeiro contato, logo se estreitam as relações com Deisi, a quem chamam de Miss Cíclone, “acentuando na primeira sílaba”.xvi

Figura estranha e fugidia, normalista e poitrinaire,xvii Deisi, cortejada e festejada pelo grupo, aparece e desaparece da garçonnière. Inquieta e fantasiosa, tem problemas com a família, que lhe vigia os estudos, mas, ao mesmo tempo, mantém esquisitas relações. Oswald refere-se a seus passos escusos: “Os amores de Cíclone infelizmente não têm somente sergents de ville, têm também cambrioleurs. E que há qualquer mistério que minha amante vagamente refere. Um sujeito esquisito do Brás”.xviii Outro depoimento: “Chego ainda a tempo de vê-la galgar ligeira o estribo poeirento de um bonde e mergulhar, com a lentidão do monstro de ferro, nesse abismo brumoso da várzea que faz supor, para lá do bastidor de crimes das vielas, a existência de romance em que ela se obstina. Com uma timidez de potache, murmurei-lhe, entre dentes, um bom-dia idiota. Ela nem sorriu nem olhou. Partiu. Pela primeira vez, percebi uma coisa séria – que ela me faz falta. Assino: Mirabismo”.xix Doutra feita, Oswald surpreende-a entrando numa “pensão de rapazes” na Rua Anhangabaú.xx

Desentendimentos com a tia, que a expulsa de casa, obrigam-na a partir para Cravinhos, onde, por exigência da parente, deverá obter licença da mãe para ser independente.xxi Nessa cidade do interior adoece, e de lá manda cartas. Numa delas, sem data, escrita em tinta roxa, dirigida a Oswald (“Meu Miramar”) e assinada Gracia Lohe, conta que vai indo bem mal de saúde. Indaga do amor de ambos e recomenda: “é preciso velar por ele, muito, muito!” Mais adiante, pungentemente discreta, revela: “como me sinto morrer! E isto sem gesto teatral, e olhos em alvo… sabes como sou simplória a esse respeito.” Pede-lhe que a visite, telefone ou escreva. Suplica às tantas: “consola a tua pobre amiguinha” e afirma: “sou tão só e tão triste sem ti”. Sugere-lhe que desfaça a garçonnière e solicita, então, coisas, objetos que lá se encontram. “Nessa carta roxa, ela exige tudo – a almofada verde, a peluda, a pele de tamanduá que estava na parede sob um florete, o meu retrato, o reposteiro claro, os tapetes macios e os Di e Malfatti que possuo”, escreve Oswald.xxii Deisi termina a carta dizendo: “beijo-te o olhar verde”.xxiii

A ausência de Miss Cíclone, sempre lamentada, esvazia o retiro de Oswald e amigos. “O covil da Rua Líbero agoniza.”xxiv Ao seu retorno de Cravinhos, a garçonnièreé fechada e chega ao fim O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo.xxvEncerra-se o diário com a sentença Acta est fabula!Abaixo dela, registra-se: “…e o livro se fecha silenciosamente, com a prestigiosa atração das coisas silenciosas: mon silence est ma force…” Como última contribuição, em nome da Cíclone, a frase: “E tanta vida, bem vivida, se acabou”. Era o seu epitáfio.

Após narrar que seguiu a Cíclone até uma pensão de rapazes, Oswald anota em suas memórias: “Deisi é visgo puro. Não tenho a coragem de romper. Ela também não explica nada, não conta, não se defende. Em junho, ela me diz que está grávida. De quem? Não pergunto. Ela não fala. Concordamos no aborto”.xxvi O aborto é praticado, sobrevém violenta hemorragia, torna-se necessária a extirpação do útero, o mal atinge os pulmões.xxvii Agrava-se o estado da doente e Oswald casa-se com ela in extremisa 11 de agosto, presentes Guilherme de Almeida, Ferrignac e Monteiro Lobato. A 24, Deisi agoniza e morre. “Esfacela-se meu sonho”, lamenta Oswald, que dirá também: “A que encontrei enfim, para ser toda minha, meu ciúme matou”.xxviii

Recorte de jornal colado ao fim de O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo noticia que Deisi (D. Maria de Lourdes Castro de Andrade) esteve casada uma semana e que tinha 19 anos ao falecer. Vão a seu sepultamento, entre outros, Ferrignac, Edmundo Amaral, Lobato e Vicente Rao. Miramar manda uma coroa com a inscrição: “A Deisi, o teu pobre Oswald”. Vestida de branco, está enterrada no jazigo da família do marido, na Rua 17, nº 17, do Cemitério da Consolação. Estava encerrada uma etapa da vida de Oswald, que em breve instala outra garçonnière, agora na Praça da República, esquina da Rua Pedro Américo.xxix Nela entraria em fermentação o Modernismo.

O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo, diário a um tempo pessoal e coletivo, além de testemunho de um tempo, da belle époque paulistana, da atmosfera e espírito em que se formava uma geração, é, no tocante a Oswald, documento existencial que reflete os seus anos de aprendizagem, não só literária e artística, mas de vida ela mesma, com seus júbilos, dramas, conflitos e sofrimentos: inicia-se sob o signo do riso e do otimismo, é jocoso e pilhérico no começo; vai, a pouco e pouco, crescendo em termos de inquietação, melancolia, angústia, dúvidas e suspeitas, para atingir, ao final, o plano de lágrima e do trágico com a morte da bela Miss Cíclone, figura símbolo para o grupo de uma outra mulher que então se forjava – a mulher moderna, em busca de liberdade, de afirmação, de independência. Veja-se o depoimento de Pedro Rodrigues de Almeida: “Ela sozinha basta para encher um ambiente intelectual de homens de quanto ele precisa de feminino para sua alegria e para seu encanto. Ela é multiforme e variável na sua interessante unidade de mulher moderna”.xxx Para Ferrignac, Deisi é “cheia de graça, amorável e bendita entre as mulheres”.xxxi

Mais do que um diário, O Perfeito Cozinheiro é um caótico e desencontrado ou desordenado romance, por onde flui uma história de amor, com seu pathos e sofrimento desentranhados da própria vida – a história de amor de Oswald e Deisi, das surtidas sentimentais e misteriosas da frequentadora do Brás e pensão de rapazes do Anhangabaú, e, ainda, a história do recôndito, secreto amor de todos os que transitam pela garçonnière seduzidos pela jovem normalista marcada – como observa Oswald – por “um sentimento iniludível de doença, de morte e de frustração”.xxxii Um romance de nova estrutura, de técnica inusitada, de um surrealismo natural e espontâneo, em que estão o clima e as personagens que vão gerar e povoar Os Condenados, Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande. Do ângulo da estrutura, do caricato das personagens, estes dois últimos livros derivam do diário, nele se enraízam, ali começam inconscientemente. Todo o processo fragmentário de Oswald nasce dessa experiência pessoal de diarista e um pouco também das suas leituras do Journal, dos irmãos Goncourt, cuja écriture artistique buscou assimilar, notadamente em Os Condenados. Machado Penumbra, de João Miramar, é certamente um dos frequentadores da garçonnière. A visão de crimes e traições, de bas-fond e desagregação de Os Condenadosdecorre dos mistérios que cercavam Miss Cíclone. Os nomes grotescos ou humorísticos – e por isso mesmo críticos de Miramar e Serafim – em nada diferem, como espírito ou essência, dos pseudônimos e apelidos usados em O Perfeito Cozinheiro. O gosto pelo trocadilho, cultivado abusivamente no diário e provindo de Emílio de Menezes, o amor pelas situações insólitas e imprevistas com tons de sátira e humor têm a mesma fonte.

O diário, por outro lado, tem ainda específico valor – é, em si mesmo, com suas tintas de diversas cores, suas colagens, trechos a carimbo, caricaturas, charges e caligrafias, um objeto criativo, uma invenção como livro, peça rara em sua aparência e organização. E precursor de várias obras que, graficamente, tentam inovar as formas de comunicação. Texto e contexto, aspecto interno e externo, conteúdo, forma e fundo estão indissoluvelmente ligados nessa rara peça que documenta uma época e uma cultura.

*Este texto foi publicado originalmente no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, em 16 de março de 1968. Posteriormente, seria revisto pelo autor, em 1987, e publicado na edição do livro O Perfeito cozinheiro das almas deste mundo.

iCampos, Haroldo de. “Réquiem para Miss Cíclone, musa dialógica da pré-história textual oswaldiana”. In: Andrade, Oswald. O Perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Global, 1992, p. XVI.

iiUm Homem sem Profissão (São Paulo, Editora Globo, 1990), primeiro volume das Memórias e Confissões de Oswald de Andrade, p. 109.

iiiReproduzido em Invenção, nº 5, dezembro 1966.

ivp. 118

vp. 109

vip. 110-111. Nas Memórias e Confissões, das páginas 109 a 128, Oswald reproduz diversos trechos do diário da garçonnière.

viip. 111

viiip. 112 e 116. Oswald também usa o pseudônimo de Irmão Garoa e inúmeras variações de Miramar.

ixp. 113

xp. 110 e 115

xip. 117;

xiip. 121-122

xiiip. 113 e 117

xivp. 113 e 117

xvp. 108

xvip. 109

xviip. 117

xviiip. 113

xixp. 116

xxp. 131

xxip. 120

xxiip. 127

xxiiiOswald reproduz diversos trechos da carta, omitindo outros porém.

xxivp. 122

xxvp. 127

xxvip. 132

xxviip. 132

xxviiip. 133

xxixp. 133

xxxp. 112

xxxip. 119

xxxiip. 127

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *