Crônica circular

Ao tomar um ônibus e rodar pela capital francesa sem surpreender-se com nada, “Chéri à Paris” finalmente sente-se um parisiense

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Por Daniel Cariello*, Chéri à Paris

Um plano que tinha desde que cheguei a Paris, e nunca havia realizado, era pegar um ônibus qualquer e ir até o final da linha. Sem o objetivo de chegar a lugar nenhum, apenas para observar as pessoas subindo e descendo, andando nas ruas, conduzindo seus carros. Hoje decidi fazê-lo, na esperança de no caminho encontrar um bom assunto para uma crônica.

Saio de casa, subo no ônibus 29 e sento ao lado de uma mulher que lê o Le Monde. Saco meu moleskine para anotar o que me chama a atenção. Escrevo “Ópera Bastille, vovô” quando passamos pela ópera da Bastille, que meu avô condenou para todo sempre, classificando-a como uma “ópera de 2a categoria, onde se apresentam artistas de 2o nível, para um público de 2o escalão”. Sendo ele um conhecedor no assunto, nunca ousei discordar.

O 29 devia ir até as (infernais) Galeries Lafayette, mas pára na altura da Ópera Garnier. A ópera original de Paris, construída no século XIX, que serviu de inspiração para o Theatro Municipal do Rio e, o mais importante de tudo, sempre recebeu a aprovação do meu avô: “Essa vale a pena visitar, ao contrário daquela coisa horrível da Bastilha”.

Como não achei ainda um tema interessante para um texto, decido pegar o 80, que corta a cidade de norte a sul. Uma linha que passa por lugares a mim estranhos e me traz a sensação – que adoro – de estar perdido em uma cidade que já conheço bem.

Só me situo quando já estamos perto do Champs-Élysées, que exibe garboso sua iluminação de Natal, como toda Paris nesse momento. Anoto “Champs-Élysées, luzes” e admiro o cartão postal por alguns instantes, mas minha atenção é logo desviada para o senhor da minha frente, que confere no jornal o resultado da loto. “Não ganhei, droga. Quem sabe da próxima vez?”.

O 80 atravessa o Sena pela ponte d’Alma, de onde se tem uma visão fantástica da torre Eiffel, e continua o trajeto habitual, que o leva várias vezes por dia, todos os dias do ano, à porta de Versailles. Desço na École Militaire, ainda sem a minha história, e pego o 87. Sento na janela, perto de um casal oriental que conversa animadamente, de uma mãe que fala em inglês à filha e de uma senhora que abre e fecha sem parar um livro de Michel Houellebecq.

O 87 passa por trás dos Invalides e sua bela cúpula dourada. Depois, faz uma curva e vai em direção à monstruosa torre Montparnasse. Escrevo “Invalides x Montparnasse”. Em seguida, vira novamente, sai costurando pequenas ruas e tangencia o Bon Marché, onde posso observar as decorações natalinas, os clientes entrando sem nada e saindo cheios de sacolas, as pessoas pedindo esmolas e doações e principalmente os transeuntes, que passam sem se importar nem um pouco com todo o burburinho.

Desço na Gare de Lyon, com frio e frustrado por não ter encontrado fatos extraordinários pelo caminho, apesar de estar em uma das mais deslumbrantes cidades do mundo. Tudo o que pude ver foi a vida normal correr para pessoas tão normais quanto eu. Paro e penso sobre isso. E nesse instante, e pela primeira vez desde que cheguei aqui, há quase 5 anos, sinto-me um parisiense, apesar de sempre ter inconscientemente me recusado a ser um.

Um pouco atordoado, entro em um bar e peço um café expresso. O garçom me serve e pergunta se quero açúcar. Olho pra ele e digo que “non, merci”, enquanto retiro o sobretudo e o cachecol.

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(*) Daniel Cariello, editor da revista Brazuca, é colaborador regular do Outras Palavras. Escreve a coluna Chéri à Paris, uma crônica semanal que vê a cidade com olhar brasileiro. Os textos publicados entre março de 2008 e março de 2009 podem ser acessados aqui

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