Cristiano Burlan, um cineasta na periferia

A trajetória particular do autor do premiado “Mataram meu irmão”: Capão Redondo, ódio à polícia, literatura contra a barbárie e dezesseis filmes

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Entrevista a Jean-Claude Bernardet

Cristiano Burlan realizou mais de uma dezena de filmes, e já dava aulas na Academia Internacional de Cinema (AIC) antes de se tornar um cineasta reconhecido. Com seu 15º filme, contudo, venceu a barreira da indiferença e das “críticas ferozes”. Seu documentário “Mataram meu irmão” conquistou os prêmios do júri e da crítica no festival “É Tudo Verdade”, e o voto do júri do prêmio Governador do Estado de 2013 – este, em cerimônia realizada no Teatro São Pedro dia 24 de fevereiro, com a presença do governador. De partida para a Espanha, no Festival de Málaga, onde “Mataram meu irmão” será exibido neste sábado (22/3) na mostra competitiva de documentários, o realizador conta como reagiu diante da homenagem.

“Recebi o prêmio das mãos da Helena Ignez e fiquei muito emocionado, porque conheço sua importância no cinema brasileiro. Olhava pra ela e via “A Mulher de Todos” [de Rogério Sganzerla, 1969]. Disse que me sentia muito lisonjeado em receber o prêmio, que não era merecedor, mas que havia uma certa incongruência, e mesmo alguma insensibilidade no fato de recebê-lo, porque o mesmo Estado que matou meu irmão era o Estado que premiava o filme sobre seu assassinato” – relata Cristiano. “Mas que aceitava o prêmio e iria usar o dinheiro (60 mil reais, menos impostos) para continuar fazendo filmes. E faria um pedido ao governador – ele estava sentado na plateia. Que ele não se ofendesse, porque era muito sincero: se ele poderia pensar numa polícia desarmada. E, ainda mais utópico, uma polícia mais humana. Depois não lembro mais nada. A plateia se levantou em aplausos. Só ficou um buraco na fila reservada ao governador e seus cupinchas do PSDB.”

Cristiano Burlan, 39 anos, acaba de gravar “Hamlet”, seu 16º filme, o sexto de longa-metragem. Todos, com exceção de um curta, realizados sem incentivos fiscais. Seu talento e surpreendente trajetória de vida, marcada pela violência e paixão pela arte, levaram o crítico, roteirista e ator Jean-Claude Bernardet – que interpretou o “fantasma” em “Hamlet” – a fazer com ele uma longa entrevista. “Amador”, uma das obras de Cristiano Burlan que chamou a atenção do crítico, poderá ser visto em São Paulo de 24 a 29 de março, na Mostra Itinerante Tiradentes. A seguir, a entrevista. (Inês Castilho)

Você nasceu onde, em que família?

Nasci em Porto Alegre em 1975, dia 21 de agosto, numa família de proletários da zona norte num bairro chamado Sarandi. Sou primogênito de uma família de cinco filhos. Meu pai já faleceu, minha mãe também e um dos meus irmãos, Rafael, também morreu. Minha mãe era empregada doméstica e meu pai pedreiro, fazia serviços gerais. Muito cedo foi vitimado pelo alcoolismo e isso o tornou uma pessoa violenta e dura.

Você ia à escola?

Ia. Sempre fui bom aluno, mas tive maus professores, poucos interessantes. Em Porto Alegre, a escola era melhor. Em São Paulo, estudei numa escola pública no Capão Redondo, o nível era bem baixo. Terminei o primeiro grau; o segundo, não terminei.

Como você passa de Porto Alegre ao Capão Redondo?

Meu pai batia na minha mãe. Ela reagia, porque ele era baixinho e ela, uma mulher alta. Então a porrada comia solta em casa, desde muito jovem. Depois de muita violência, minha mãe foge para São Paulo. Meu pai vende nossa casa, casa com outra mulher que era alcoólatra também, fomos morar em Santa Catarina. Éramos três irmãos, eu, Rafael e Ricardo. Em São Paulo nasceram a Kelly, a menina, e o Tiago, meu irmão que hoje está preso. Essa nova esposa era violenta, batia muito na gente, eu e meus irmãos passamos um ano apanhando. Minha mãe fica sabendo. Ela volta, meu pai manda a mulher embora, eles se casam de novo e viemos para São Paulo. Fomos morar na Vila Joaniza, onde morava meu tio. Passamos um mês lá, quinze pessoas dentro desse quarto-e-cozinha. Depois, meu pai arranjou um trabalho de eletricista na USP, lá ele conheceu um engenheiro que trabalhava na Cohab e conseguiu um apartamento no Capão Redondo.

Ele bebia ainda?

Sempre bebeu, a vida inteira. Parava quando entrava no AA (Alcoólicos Anônimos), mas era alguns meses só. Quando tinha recaída, voltava a beber com mais voracidade e ficava mais violento. Mas o problema do meu pai não era o álcool. Era uma tristeza profunda, frustração de não ter realizado as coisas que ele desejava, de que ele nunca me falou, mas estava no rosto dele. Aquela amargura das pessoas que não têm saída. Desejo talvez ter de sido um pai melhor, ter tido outra profissão.

Os homens da minha família são… são border line, não sou especialista para definir isso, mas eles são sonhadores, têm aptidões, aprendem as coisas rápido, têm uma memória de elefante, uma sensibilidade extremada, e são todos loucos. Ou morrem de tristeza, por morte matada ou morte morrida! É a sina dos homens da minha família. Às vezes, sinto que meu fim também é trágico, uma morte bem bizarra. É um pensamento que me acompanha.

Voltemos ao Capão, os amigos, você tinha que idade?

Cheguei com 9 para 10 anos, saí de lá com 17. Éramos uma turma de doze – dez morreram assassinados.

Turma da escola?

Da escola e de futebol ali do bairro. Dez morreram assassinados. Desses dez, dois se tornaram bandidos e os outros oito morreram por estar no lugar errado na hora errada …

Quem mata?

A polícia. A polícia. Todos morreram pela arma da polícia, e por uma polícia que deve ser uma das mais violentas do mundo, a Rota. É um esquadrão de extermínio com legitimidade para matar. Os números aparecem, mas ficou normal saber que as pessoas são assassinadas pela Rota na periferia. São Paulo é uma cidade estranha pra mim, porque depois que eu atravessei o rio parece que…

Que rio?

O rio Pinheiros, o rio Tietê. As pessoas burguesas vivem dentro desse quadrilátero cercado por esses dois rios. E toda a sujeira está fora desses rios. Na verdade acho que é o contrário, ela está aqui dentro. Algumas pessoas dizem que você tem que ir pro trabalho de bicicleta. Como você vai falar para alguém que mora a 45 km do centro da cidade, uma cidade cheia de morros, que tem que deixar o carro ou o transporte público e ir trabalhar de bicicleta? É uma falta de consciência da geografia da cidade…

Foi uma infância muito violenta. Mesmo abordando a violência em alguns trabalhos meus, gostaria de não ter passado por isso. Deixa uma marca indelével.

Qual é essa marca?

Quando você tem contato com a morte, tua perspectiva de vida muda. Eu tinha 11 anos, estava jogando futebol com amigos numa quadra da escola e a Rota chegou. Tinha um garoto fumando baseado e eles já chegaram agressivos e, porque alguém falou alguma coisa, eles sacaram as armas e mataram três garotos na minha frente. Um deles era meu amigo e deram um tiro na cabeça. Extermínio. A primeira vez que presenciei um assassinato. Parte do cérebro deles ficou na minha camiseta.

Quando você nasce nesse lugar, dá uma raiva das coisas. Está sempre prestes a explodir. Você vê a vida, parece que está tranquilo, mas as coisas por dentro estão podres, estão fora do eixo. É difícil encontrar beleza nessas coisas, no feio. Tem que ter um olhar generoso para encontrar poesia e beleza nessa sujeira toda.

Acho as pessoas que se suicidam verdadeiros heróis, mas sou muito covarde para me suicidar. E para matar também. No filme que fiz sobre meu irmão, tem um momento que até editei, mas nunca usei. Tentei matar os assassinos do meu irmão. Quando tinha 21 anos fui para a Legião Estrangeira. Meus tios do Sul me ensinaram, mesmo odiando e tendo paúra de violência, sei atirar com as duas mãos, sou bidestro, uma incongruência que tenho na minha personalidade.

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Quando meu irmão foi assassinado, um amigo meu era traficante, ele me deu cocaína. Passei duas semanas cheirando, com duas armas na cintura e duas caixas de balas – atrás dos caras. Descobri onde morava um deles. Eram três, cupinchas de um policial da Rota que comandava o tráfico da região, ele que mandou matar meu irmão. Meu irmão tinha roubado um carro pra ele e queria receber pelo carro. Em vez de pagar, eles o mataram.

Passei uma noite inteira na frente da casa esperando que ele saísse. Eu sei fazer coquetel molotov e outros explosivos caseiros. Tinha feito quatro, é tática de guerrilha urbana, você joga fogo na casa, as pessoas saem com medo e você as mata. Fiquei a noite inteira cheirando, estava escondido no matagal e não tive coragem de meter fogo na casa. Lá pelas 5 da manhã, sai uma senhora com três crianças, indo para creche, assim meio piegas. Naquele momento descobri que não teria coragem de matar nem o cara, nem a mãe dele, nem as crianças ou qualquer coisa que rastejasse por ali. Aí voltei para casa, devolvi as armas e descobri que não era assassino.

Volte ao Capão, essa história da escola, como foi?

As escolas na periferia têm sempre muitas grades e portões, quando você entra, as portas vão se fechando atrás de você. Quando pela primeira vez eu fui visitar meu irmão numa cadeia em São Paulo, tive a mesma sensação de quando entrava na escola. Uma escola na periferia é sempre cinza, concreto. Não tem biblioteca nas escolas públicas, tem alguns livros ali, restos que chegam, pelo menos na minha época. Os professores não tinham interesse pelos alunos. Os alunos também não tinham interesse pelos professores. Pouca gente consegue se interessar pelos estudos. Muito cedo comecei a me interessar por literatura, música, teatro, cinema, por cinema principalmente, aí comecei a atravessar o rio para ir a Santo Amaro.

Isso revela que você tem energia, isso não vem do seu meio, nem da escola. Como você foi se encaminhar para a literatura?

Muita influência de um amigo, meu último amigo de infância, único que sobreviveu. Ele cresceu numa família burguesa… A família empobreceu e foi morar no Capão. Mas o avô deixou toda a biblioteca pra ele, os grandes livros: Dostoievski, Guimarães Rosa… Em casa tinha poucos livros, tinha era gibi. Minha mãe era viciada em ler gibi no banheiro, então meu hábito pela leitura se inicia aí. Depois esse meu amigo começa a emprestar os livros dele, primeiro livros bobos e depois os grandes clássicos da literatura. Pode parecer piegas, mas era o que me afagava um pouco no meio de tanta violência, tristeza, solidão, uma maneira de sair daquele lugar. Lia o tempo todo, em casa, no ônibus – desenvolvi uma técnica para ler em pé, esmagado no ônibus, não sei como não descolei a retina! Porque na época em que morava no Capão Redondo, o transporte era pior do que hoje – demorava duas, três horas para ir de casa ao Centro, para o trabalho.

Quando você começou a trabalhar?

Com 12 anos já trabalhava. Trabalhei muito em obras, na feira, vendi churrasquinho, vendi doces na USP. Estudava de manhã e à tarde ia pra USP. Meu pai conseguiu autorização e eu andava na Politécnica com uma caixinha de doces, daí fui para a FEA, atravessei a praça e acabei chegando na ECA, um novo mundo. Comecei a frequentar o Centro Acadêmico. Tinha mesa de sinuca, na periferia aprendi a jogar sinuca muito bem. Com 13 anos jogava a dinheiro com os alunos da Poli. Um dia estava na ECA e descobri uma Sala Preta, onde alunos de teatro mostravam experimentos de encenação, entrei. Tinha uma loira maravilhosa amarrada, pelada, perto da plateia, achei aquilo impressionante.

Você falou de um Centro Cultural que passou a frequentar.

Perto da biblioteca Robert Kennedy.

Como você ia do Capão Redondo a Santo Amaro?

Sempre sem dinheiro para o ônibus, tinha que passar por baixo.

O que é passar por baixo dessa catraca?

Uma humilhação. Aos 13 anos eu já tinha uma estatura e o ônibus sempre lotado, o cobrador deixava passar por baixo, uma catraca muito baixa, e é humilhante rastejar ali debaixo da catraca. Ele deixava mas gritava bem alto: como um homem deste tamanho não tem dinheiro para pagar a passagem? E o ônibus inteiro olhava para você. Depois você desenvolve uma maneira de burlar isso, quando a porta do ônibus abre na frente, você sai correndo. Mas os motoristas são sempre os mesmos e você acaba sendo visado.

Eu e meu amigo Thiago íamos até essa biblioteca, ela é muito vazia, tem um pé direito altíssimo. É um lugar fresco, agradável para se estar no meio daquela cacofonia toda da região Sul, aquela violência toda. Eu me sentia quase numa igreja gótica. Ali tive contato com as grandes obras da literatura mundial. Me revoltava quando me deparava com um livro e percebia que havia 10 anos que ninguém o retirava, então eu o roubava, e depois de ler passava para outra pessoa. Não só na biblioteca, nas livrarias também, roubei muito livro, me sentia o próprio Robin Hood. Achava que roubar livro não era crime. Não sei se li a biblioteca inteira, mas boa parte, pelo menos o que era importante, não só uma vez mas duas, tenho hábito de reler, com filmes também. Hoje em dia tenho mais prazer em rever um filme do que conhecer novos.

Do outro lado da biblioteca tem a Casa de Cultura Santo Amaro, fica tudo na João Dias. É um antigo mercado. Comecei a fazer todos os cursos possíveis, principalmente de teatro. Dali acabei vindo para o Centro, comecei a frequentar o Teatro Municipal, pedia ingresso quando sobrava, assisti a algumas óperas, ouvi música clássica. Me lembro de Minhas Universidades do Gorki, ele diz que a universidade dele foi a rua, a vida. A minha foi um pouco isso também, eu me formei, me deformei na rua. Sempre me lembro dos personagens do Dickens, principalmente os de As Grandes Esperanças. Sempre me senti um excluído, à parte, mas isso nunca me limitou, me congelou, me impediu de fazer o que eu queria, de ir ao teatro e ao cinema. Entrei escondido em muitos casamentos. Comprei um terninho num brechó, e todo sábado à noite eu e meu amigo íamos para a porta de um bufê, conseguíamos entrar em quase todos. A gente bebia, se empolgava, beijávamos a noiva, cumprimentávamos o noivo… aí descobriam que não éramos convidados, fui expulso muitas vezes. Mas sábado à noite era o clássico, furar uma festa de casamento, comer e beber.

No Municipal, o que você viu?

Vi grandes óperas, pela primeira vez assisti a Madame Butterfly e Wagner. Tenho uma relação forte com Wagner. Fiquei impactado com Tannhäuser, assisti à trilogia há alguns anos. Acho que percebi em Wagner quase o cinema do século 19, como se fosse arte total. Depois fui estudar a obra dele. Como espectador, me impressionou esse domínio da mise en scène, a música faz parte do todo, mais o corpo, a voz, a conjunção das coisas, o ápice do drama… Pra mim é cinematográfico, quase. Como Bergman dizia, o teatro é minha morada, minha esposa, o cinema é minha amante. Meu grande desejo é dirigir ópera.

E no teatro, quando conseguia entrar, sentava onde?

Ah! De vez em quando conseguia lugar bom. Os porteiros do Municipal que me conheciam me deixavam entrar no foyer, dava uma tremenda dor no pescoço olhar lá de cima, mas eu sempre achei muito bonito. O prédio do Teatro Municipal me atraia, acho um lugar mágico até hoje. Fui assistir este ano à Cavalaria Rusticana, não gosto da ópera inteira, gosto do intermezzo. A ária da abertura de Touro Indomável do Scorsese é uma das mais bonitas.

E na Kennedy, você chegou a ler sobre cinema?

Sim, encontrei até livros seus… Me lembro de ter ficado muito curioso ao ler a biografia de Jean Vigo de Paulo Emílio [Sales Gomes]. Notas Cinematográficas [Bresson], a primeira vez que li foi na Kennedy! Mas não existe uma bibliografia potente de cinema, você tem que garimpar… O que é cinema de Bazin. Encontrei críticas da Cahiers du Cinéma. Teve uma época que até pensei em ser crítico de cinema. Os textos da Cahiers parecem alta literatura, deveriam ser escritores e não escrever sobre o filme dos outros. Tinha traduções, alguns textos do Truffaut – Uma certa tendência do cinema francês –, se não me engano, é quase o início da Nouvelle Vague. Li em português, mas tenho muitos livros em francês. Estudei na Aliança Francesa aqui no Centro.

Como você conseguiu, sem ter formação escolar?

Fiz o curso livre, um curso de férias, pago. Já estava trabalhando, comecei a fazer teatro profissional na Companhia Arte Degenerada. Conheci alguns restaurantes que aceitavam atores como garçons, o Spot, o Ritz. Comecei a ganhar um pouco de dinheiro, morar melhor, pagar as contas, comecei a me arranjar muito com o teatro. Meu début profissional foi aos 17 anos com Osmar Prado, eu era contrarregra. Fiquei impactado porque era um monólogo do Dario Fó, direção do Roberto Vignati, tinha dezoito personagens e o Osmar fazia os dezoito. Lembro que ele sofria antes de entrar em cena, um ator stanislavisquiano, à la Jardel Filho. Até o terceiro sinal ele estava na coxia suando, e quando entrava na luz era um ator magnífico, quando saía, sofria, quando voltava para a luz, parecia quase um deus. Acabei viajando quase o país inteiro com essa peça, conheci tudo quanto é teatro. A prática foi a minha escola.

Por que você não virou bandido?

Porque acho que sou muito romântico. Tive várias possibilidades, amigos meus viraram traficantes, bandidos.

Que possibilidades?

É assim: você está sempre nos botequins jogando sinuca, tomando cerveja, dando um tiro no barzinho, cheirando. Na época o crack não estava ainda em voga, era cocaína, álcool e maconha. Aí chega alguém e fala: tem uma fita numa boutique no Itaim, ou vamos assaltar um banco, precisa de um olheiro. E o que eles te oferecem, em grana, é muito alto. Mas você pode morrer. Eu tinha um forte apego pela vida, alguns amigos morreram nessas situações, acho que talvez medo.

Nenhuma vez você aceitou?

Não roubei só chocolate no mercado! Cometi alguns delitos, mas é apavorante quando você tem uma arma na mão e vê o pavor no rosto de uma pessoa.

Você chegou a essa situação?

Cheguei, me senti um lixo. Outra vez foi quando agredi um garoto na escola, ele quebrou o nariz, saiu sangue, isso me machucou muito. Outra vez, ver uma pessoa congelada, apavorada, quando você aponta a arma para ela. Acho que é um clic, você tem medo de matar alguém, não tem coragem e de repente você mata e isso vira um hábito.

Várias vezes eu quase morri, isso pra não dizer que vi o Diabo três vezes na minha frente e mandei um dedão pra ele. Mas eu não tenho orgulho disso, eu queria não ter passado por essas histórias. É tão pesado, tão trágico e dolorido o que aconteceu comigo, com minha família e com meus amigos, que para mim parece que é uma ficção, barata até, muito inventada. Se eu fizesse um documentário contando minha história realmente, as pessoas iam achar que sou louco, que parece um romance.

Dá um exemplo.

Uma vez a gente estava num lugar, a Rota chegou e matou todo mundo. Me acertaram de raspão e me fingi de morto para não ser assassinado também, no meio de cinco ou seis corpos. As pessoas não acreditam nisso, acham que é mentira. Então começo a achar que é mentira, que foi inventado, sou um pouco hiperbólico, um pouquinho exagerado.

Você tem tendência a fantasiar?

Acontece, mas ao contrário, se realmente fosse dar vazão a isso, ia parecer mentira, tenho que diminuir a veracidade da história. Tem um filme bobo: Peixe Grande do Tim Burton. Esse personagem passou por muita coisa e, quando ele morre, aparecem no enterro todos os personagens que ele falou durante a vida e as pessoas achavam que era mentira.

Quando você conta uma história e diminui, isso não gera uma grande solidão?

Onde li isso? São duas frases que não me saem da cabeça: você nasce, vive e morre sozinho, quanto mais cedo aceitar isso, menos vai sofrer. A outra é de Ivan Turgueniev em Pai e Filho: um homem fala para outro: seu sobrinho é um niilista. Eu não sabia o que significava e fui descobrir e me impactou.

Como você vê esse niilismo?

Para mim funciona assim: na periferia você deixa de ser ingênuo muito rápido, quando tem contato com essa bandidagem toda, essa violência, aí eu perdi uma coisa que estou tentando resgatar, uma certa inocência. Sem ela você se torna um cínico. Hoje, quando estou bêbado no boteco, para parecer inteligente com a turma do cinema, falo que sou niilista, iconoclasta, agnóstico e corintiano. Na verdade o que queria é ter fé nas coisas, não sei em quê, voltar a ter uma certa inocência. É uma das grandes agressões que se faz a uma criança. Quando perde a inocência, ela deixa de viver boa parte da vida dela e aquilo cria um vazio dentro, pode ser psicologismo barato, mas parece que está sempre faltando alguma coisa, no trabalho ou nas relações pessoais. Não sei me relacionar, reajo muito mal. Sei reagir à violência, a situações limítrofes, não me dá medo nenhum. Agora, com carinho, amor, reajo mal.

Mas aparentemente você se relaciona bem.

Em público! No privado é outra questão. No boteco todo mundo é legal, o álcool deixa todo mundo mais interessante.

Por que de vez em quando você diz que suas explicações são de um psicologismo barato?

A palavra limita as coisas. Não consigo dar forma ao que sinto, essa sensação mais primitiva. No papel, a palavra pode ter essa potência maior, mas quando brota da boca ela encerra, não abre, não é rizomática.

Como você vive o fato de Mataram meu irmão ter um indiscutível sucesso? Você ganhou o prêmio É Tudo Verdade e agora o Governador do Estado. Como reage ao sucesso do filme baseado na morte de seu irmão?

Tem um outro filme sobre uma moça realizado pela irmã dela. O filme é muito criticado e eu não consigo me excluir disso. Usei a morte de meu irmão para fazer um filme. Preferia não ter feito. Estou pagando um preço alto por isso. As coisas mais profundas do ser humano, o que te move, o que te congela, parece que quanto mais você tenta se aproximar, mais se afasta. Não fui fazer terapia, não é uma resiliência, não é uma sublimação freudiana. Realmente eu quis fazer um filme, por acaso uma coisa que estava próxima de mim, assassinaram meu irmão, uma coisa forte. Tive que me distanciar durante o processo de realização, mas ao mesmo tempo, quanto mais me distanciava, mais próximo dele eu me tornava.

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Você viu o filme uma semana antes de ele ser projetado publicamente pela primeira vez, no Rio de Janeiro. Até então eu estava assombrado pelo final do filme e você me falou uma coisa que me marcou. Eu tinha dúvidas se deveria ter colocado fotos do meu irmão extraídas dos autos do processo, e você falou: aquele é o momento mais poético, seu irmão parece um Cristo crucificado, você o purifica naquelas fotos. Suas palavras me suscitaram uma serenidade tremenda, consegui lidar melhor com isso.

Ao mesmo tempo, como cineasta, entrei num lugar a que não estava acostumado, nem sei lidar com isso. Tudo o que realizei até hoje foi mal recebido, primeiro pela indiferença, que é muito cruel, e depois por ataques ferozes de alguns críticos. Mas os ataques não me abalaram tanto, o que mais me abala é a indiferença. Porque num país onde boa parte da produção cinematográfica depende de fomento público, não só eu como mais algumas pessoas conseguem, com seus últimos tostões, por paixão, realizar filmes. Claro, isto não deveria ser analisado, o que importa são os filmes.

Deve ser analisado SIM! Temos que pensar as formas de produção.

Está falando que os meios que você tem para produzir afetam diretamente a obra?

Claro. A mentalidade de um cineasta que produz com dinheiro incentivado é diferente da daquele que produz sem dinheiro incentivado, é outra cabeça.

Isso nunca foi citado pelos críticos.

Mataram tem dinheiro incentivado? O Sinfonia?

Não têm. Fiz quinze filmes, vou fazer o sexto longa. Só fiz um curta com dinheiro público, há dois anos, do Edson Loduque. Todos os outros, foi dinheiro do próprio bolso e trabalho voluntário dos amigos que acreditam nas minhas ideias.

Você está com raiva de estar aqui nesse momento, no centro da cidade nesse puta prédio [Copan]?

Às vezes. Quando estou jantando no Dona Onça, eu me lembro de pessoas próximas, como meu irmão que está preso na cela com quarenta, às vezes come comida estragada e é torturado lá dentro, sempre me passa pela cabeça. Como conviver com isso?

Ele me liga lá de dentro. De vez em quando, mando dinheiro.

Ele foi preso onde?

Em São Paulo. Dos 14 aos 18 ficou na Febem – 18 e uma semana foi pro primeiro presídio. Aí ele conseguiu um advogado e foi solto. Chegou em Uberlândia, foi preso de novo, na casa da minha mãe. Foi solto e um dia me ligou, falou: estou preso aqui em Cuiabá. Quando recebo uma mensagem ou ligação de lá, minha sensação é que vão me avisar que ele morreu. É o meu maior medo, não sei se consigo… outra morte, isso me assombra.

Como sua mãe foi para Uberlândia?

Morávamos no Capão Redondo, meu pai batia muito nela, bebia, mal sustentava a casa. Tinha um borracheiro em frente, onde eu fazia bicos. Fiquei amigo dele. Ele tinha um parente em Uberlândia. Ele e minha mãe começaram a ter um caso e ela fugiu com ele, me avisou, nunca julguei minha mãe por isso, ele a tratava muito bem e ela acabou indo para Uberlândia.

Bom, meu pai foi atrás e voltou a casar com ela. Ele morreu em Uberlândia, está enterrado lá. Minha mãe tinha um namorado, uma pessoa estranha. Em 2010, passei o Natal com ela. Voltei, fiz o Sinfonia [de um homem só]. Uma semana depois de terminar o filme, minha irmã me liga dizendo que ela foi assassinada pelo namorado, um homem soturno, ciumento. Ele a enforcou com um fio. Minha grande crise agora é se faço um filme sobre isso ou não. E a coisa mais sinistra é que talvez faça e com dinheiro público, ainda, pela primeira vez. Fico me perguntando: depois de falar de todas as mortes da minha família, vou falar sobre o quê?

Fiz o Amador porque precisava me afastar. Agora, vou fazer o Hamlet, talvez eu queira falar sobre coisas não tão duras para mim, falar sobre o próprio cinema ou sobre o teatro, sobre minhas paixões, são mais tranquilas. Ao mesmo tempo, está sendo um aprendizado. Será que é possível realizar alguma coisa onde você não se coloca na primeira pessoa, será que é possível fazer cinema se sua câmera não for uma via de mão dupla? É possível filmar um rosto se ele não te comove? Ou uma paisagem, ou uma parede branca que seja. Acho que estou em crise com o cinema, mas que essa crise é boa. Minha mãe foi a pessoa mais importante que tive na vida, mesmo sabendo que sou adotivo, mas isso não me importa mais. Era uma mulher lindíssima, um ser humano incrível, o pouco de amor e carinho que tenho pelas pessoas, pelas coisas, foi ela que plantou em mim. Se estou vivo aqui hoje, devo a ela.

Nunca briguei com minha mãe, nunca tive um atrito, nunca. Ela era minha amiga. Quando vinha a São Paulo, a gente saia para jantar, ia ao cinema, ela adorava essas coisas. No Copan [Cristiano morou um tempo no Copan], ela me visitou em 2010. Sinto falta dela. Ela sofreu muito. Por mais que tenha tido uma morte violenta, percebo a morte dela como um alívio, porque nenhum ser humano merece ter uma vida tão miserável como ela teve.

E aí, esse silêncio sepulcral?

Vamos acabar aqui?

Não falei da Legião Estrangeira!

Verdade, continuamos.

Eu trabalhei num restaurante durante um ano em dois períodos, estava decidido a ir pra Europa. Queria ser ator na Europa. Não fazia nada na vida, só trabalhava e guardava dinheiro e consegui. Em Barcelona me apaixonei por uma marroquina maravilhosa de cintura fina e bunda grande, melhor amante que tive na vida. Ela fugiu de mim e foi para Tanger. Fui atrás dela e fiquei um pouco lá. A família dela era meio bandida e me convidou a me retirar do Marrocos. Precisei fugir. Com essas viagens todas, minhas economias acabaram. Fui para Madri, dormi uma semana na rua, passei fome, mas eu passei fome também em São Paulo. Volto a Barcelona. Consigo um trabalhinho e conheço um brasileiro que estava indo para a Legião Estrangeira. Ele me falou que lá tinha comida, moradia. Pegamos um ônibus para Perpignan, nos Pirineus, me alistei. De lá me levaram para Aubagne, a 15 km de Marselha. Fiquei dois meses, foi difícil sair de lá porque se eles te mandavam embora, você recebia 100 francos e se pedisse para sair eram 50 francos. Recebi treinamento militar, mas não me tornei legionário, são seis meses para se tornar legionário. O que é a Legião Estrangeira? É parte do exército francês que contrata mercenários, muita gente da Europa e do mundo vai para lá. A primeira pergunta que te fazem: já matou alguém? Porque aqui não tem problema, a gente aceita você, só tem que informar, senão a gente descobre pela Interpol.

Tinha aquela aura romântica da Legião. Me lembro de ter lido Diário de um ladrão de Jean Genet, onde ele conta a experiência dele na Legião, foi para Djibuti na África. Mas a Legião não é tão romântica. Descobri quando cheguei lá. Você estuda francês, leva porrada, acorda às 3 da manhã num frio danado. Bom, recebi treinamento de soldado, foi uma experiência interessante, bizarra, parece que foi um pesadelo. Mas fui legionário, fui soldado na França. Isso foi em 97. Quando saí da Legião, eles me deixaram em Marselha com dinheiro. Fiquei três noites na noite de Marselha, que é maravilhosa, gastei meu dinheiro com mulheres, drogas e bebidas.

Foi uma experiência estranha, no mínimo bizarra. Quando eu conto, as pessoas acham que é mentira.

E não é mentira?

Não é mentira, tenho documentação de que fui legionário… Quando eu tinha 21 anos era insuportável, arrogante, queria engolir o mundo. Se falassem “não” para mim, era “sim”. Tudo o que tinha vontade eu fazia. Diferentemente dos meus amigos do Capão, que entravam na bandidagem e usavam a força, tinha uma lábia tremenda. Só para você ter uma ideia, quando voltei a Barcelona decidi ser jogador de futebol. Fui até o Atlético de Madri, ofereci meu passe para o presidente – consegui uma reunião com o presidente – fui até Maiorca, o que não deu certo, fui para Palma, peguei um navio, lá arranjei um trabalho. Trabalhei no porto, limpando casco de iates. Depois descobri que talvez a Europa não fosse meu lugar e voltei a Barcelona, comprei uma passagem de volta e retornei ao Brasil.

Você consegue dinheiro com facilidade.

Sou trabalhador, trabalho bem, dedicado, obsessivo, aí consigo pagar as contas.

Volte um pouco para trás, você tinha 21 anos e não suportava um “não”. Acho que grande parte da violência juvenil da periferia é de jovens que não suportam o “não”, e por um não qualquer podem matar.

Ou morrer.

Ou morrer. Fale do “não”.

Primeiro você tem a sensação que já é um “não”. Você não tem direito a uma boa alimentação, não tem direito a uma roupa bonita, a uma boa educação, a uma casa confortável. Então o “não” faz parte de sua personalidade. E vivendo essas situações limítrofes, contato com violência e morte, isso te deixa um pouco audacioso. Tua família já está fodida, tua família já morreu, você acha que não vai chegar a lugar algum, não tem mais nada a perder, foda-se! Então não me venha com “não” se eu acho que é sim, vou lá e faço! Você perde o medo das coisas, isso é perigoso. Meu irmão era assim, muito mais do que eu. Aí você tem contato com essas situações perigosas, fica inconsequente, mas essa inconsequência vem dessa relação – foda-se, não tenho mais nada a perder. E como parece que sempre te roubaram alguma coisa, o roubo tem um pouco a ver com isso. Eu aproximo o cinema do crime, fazer filmes é um ato criminoso, me sinto no direito de pegar o que é meu, o que me foi tirado. Uma falha de caráter? Talvez seja, mas você nasce com isso.

O que é uma falha de caráter?

Isso de subtrair alguma coisa que não é sua, é de outra pessoa! Mas a primeira coisa óbvia nesse país são as diferenças sociais, é um país onde pouca gente tem muito e muita gente tem pouco e essa conta não bate. Uma hora, o morro vai descer no asfalto e isso já está acontecendo, as pessoas não falam disso, mas estamos à beira de uma guerra civil. As pessoas não querem perceber, os sintomas são fortes, é possível que essa eclosão venha.

É só o nosso governador do PSDB, neonazista, liberar a polícia para meter bala, isso vai acontecer. Numa manifestação dessas, se a polícia de choque tem a ordem do governador: reaja à bala porque eles estão batendo em vocês – vai morrer muita gente e quando morre muita gente, se precisa de um mártir, entendeu? Estou sendo radical, mas falta um mártir!

Vivemos uma pré-guerra civil. Percebo isso nas ruas, não ando de carro, estou incluído na corrente sanguínea da cidade pelos dois lados, daqui e do outro lado do rio. A insatisfação é geral. Quando a massa se junta, você não tem controle. Cada vez mais essas pessoas estão nos shoppings, nessas casas neoclássicas cercadas por muros e câmeras de segurança, como se isso segurasse alguma coisa, não segura. A hora que o morro descer, vem como uma onda, não tem líder, isso é o pior. Pode ter até pensamentos políticos e ideológicos, mas na hora que a histeria toma conta, não tem líder, aí é barbárie.

Agora foi! Falei muita bobagem?

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6 comentários para "Cristiano Burlan, um cineasta na periferia"

  1. Quando o talento e a obstinação não ligam para as circunstâncias adversas. Tô impressionada.

  2. Do caralho, não conhecia o trabalho do Cristiano, mas vou correr atrás. Bela entrevista

  3. Tiago disse:

    Impressionante!

  4. Márcio Ramos disse:

    … admirável a força de espirito do cineasta!

  5. Pedro disse:

    Sem palavras pra essa entrevista.

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