Costureiras de fantasias: A Pena Azul

Tantas marias que passaram a vida na sala de costura. Todas fantasias brotando das mãos ágeis das costureiras contemporâneas. Todas têm um clitóris, pensei

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Por Fabiane Morais Borges

– Passa essa pena em mim, pena azul de um ganso falso, enorme.

– Agora não, tenho que sair imediatamente.

– Faz algum tempo que eu te peço para passar essa pena em mim. Repetir a cena que eu vi no filme!

(Ele continuou colocando a roupa).

– Pega essa pena e passa no meio das minhas pernas. Agora!!

– Assim não, mandona. Não vou passar! Pára de ver esses filmes.

Ele saiu e ela ficou sem gozar, com a porra dele espalhada em seus lençóis de seda roxa. Ficou na cama mais um tempo se masturbando enquanto via de novo Senso ’45 do Tinto Brass, que a excitou. A bunda da mulher de lingerie escura estirada para trás, braços apoiados no sofá, enquanto o homem de bermuda azul passava a pena branca no meio das suas nádegas. Ela repetiu a cena muitas vezes até gozar. Depois pensou que ele tinha sido egoísta de não ter realizado uma fantasia tão banal.

– Eu quero te ensinar a mexer no meu corpo.

– Não faz sentido!

– Eu me libertei das amarras, sexo é enteógeno.

– Não faz sentido!

– E não faz mesmo. Teu falo não dá conta! Aperta esse botão do jeito certo para ver quanto brota de hortaliças, frutas vermelhas, pés de laranjeiras, cocos, bananeiras. Liga o botão, por dentro do botão, pela volta do botão, faz o botão ser a coisa mais importante dessa relação. Broto de rosa cheio de potência de raiz, de enraizamento por dentro das veias que são rios e cabos e caldos. A mangueira é uma pena azul, água na horta.

Toda pós pornografia não dizia o suficiente do composto orgânico que existia depois da imagem das ancas largas, das ervas e temperos que saiam pelos cabelos, pelas pontas dos dedos, pelos pubianos quando o botão era acionado com tato. Mas essa inversão era perspectivismo, o clitóris ser o centro do mundo, a tal inversão ontológica. Papo reto com Sr. Colombo: a América já era bem povoada antes do Sr. Colombo dedilhar os pequenos lábios de sua vulgívaga, por índias que sim conheciam o clitóris, assim como conheciam botãozinhos de fios nervosos bem menores e excessivos por todo o corpo. A pena azul de ganso falso atiçando delicadamente a conjunção de fios nervosos. Que perda!

Saiu do seu orgasmo, sem nunca largar a pena azul. Desceu para tomar um café, o macho já tinha ido embora. Na sala as costureiras preparavam as fantasias de carnaval. Sim, era Rio de Janeiro, descer a ladeira ala Leila Diniz com as mãos erguidas para o alto. As costureiras alinhavavam dezenas de penas azuis em um tecido dourado. Elas riam, arfavam, contavam causos de amores, de ex-namorados, de amantes tarados, das filhas e seus genros chatos, enquanto faziam turbantes, cocares, máscaras. Trocavam as roupas, colocavam suas especialidades nelas para que funcionassem. Só fantasia, viviam de fantasia, se alimentavam de fantasia, era seu prato, seu pão. Vestiam blocos inteiros de fantasia.

Oito, nove mulheres criando figurinos, buscando estímulo em livros, em vídeos, tudo ligado ao mesmo tempo. Laptops espalhados pela sala, o som da televisão, o zumbido produtivo, os botões enfileirados, os celulares sempre ocupados. Serão todos os dias. O prato de comida esfriando do lado da máquina de costura. Eu via isso com uma visão lisérgica, quase invisível na cadeira com o café na mão pensando nessas moiras que transformavam as pessoas em palhaços, em sátiros, em iaras, macunaímas e em coisas que não existiam. Como se escolhe uma função na vida?

Pensei nas marias costureiras de antes dessa contemporaneidade toda, Maria Joana, Maria Valquíria, Maria das Dores, que costuravam nas suas casas, isoladas, tirando medidas, fazendo marca de linha, empurrando o pedal da máquina para traçar o trilho da linha, mais rápido, menos dedos furados. Essa é minha vida, disse Rosa, quando pensou em Maria mudinha, que era muda, que era surda, e que nem sabia como entendia de fantasia. Era uma vida quieta, silenciosa, mal ouvia o ruído do ordinário, da máquina fazendo buraco no tecido, passava os dias juntando peças que a princípio não sugeriam nenhuma convergência. Ela e seu marido também mudo, também surdo, que gostava de fazer café para as clientes dela.

Se conheceram na rua, numa esquina, parece que depois sucedeu de se encontrarem sempre naquela esquina. Se adivinhavam os horários e por fim se entendiam. Conversavam aos gritos, só eles que não ouviam a barulheira que faziam ao se enxergar. Ela mostrava a revista, perguntava com gestos bruscos, em linguagem de sinais, qual era o terno que ele queria. Ele mostrava o amarelo e apontava para o sol, para uma marquise, para um carro amarelo, amarelo, definitivamente foi a cor do casal, até casar, nunca fazer filho, só vestido comprido, vestido de festa, porque Maria mudinha herdara da mãe, que não era surda nem muda, o talento do corte, das alfinetadas e das medidas.

Tantas Marias que passaram a vida na sala de costura, alienadas da condição do mundo, vestindo as pessoas dos seus gostos, salvando pedaços rasgados de figurinos, de heranças de guarda-roupas, vestindo gente de noiva, de prenda, de merendeira. Elas eram fundamentais antes das linhas de montagem, quando não existia loja que compra da China pela metade do preço. Antes de todo mundo querer se vestir igual. Mas elas não eram alfaiates, nem estilistas, eram costureiras. Só costureiras.

Mais um gole de café, minha pena azul já cobiçada para virar rabo de monstro marinho, cocar de homenagem aos índios, adereço de saia de cigana. Todas fantasias brotando das mãos ágeis das costureiras contemporâneas. Todas têm um clitóris, pensei. Um clitóris entre as pernas que ativa a fantasia. Apertei as pernas discretamente com o café pressionando vênus com sua traseira quente. Pensei nesse clitóris gigante, como um Heliogábalo, mas sem cortes, sem castração. Um clitóris com suas glândulas internas, seus 8 mil sensores ligados, piscantes, que incha e desincha no meio da avenida, nas ruas sem saída em que os blocos só descem mas não sobem, nas orquestras voadoras, nos bois tatás, bem alto elevado por mãos que abençoam e que protegem. Fazer um totem, um ente, uma entidade, uma coisa que só aquelas costureiras conseguiam me produzir com tanto volume. Um clitóris gigante feito por costureiras da fantasia.

A imagem das costureiras, que agora em minha cabeça se transformavam em brincantes de cortejo elevando com fios de nylon um grande clitóris enchido a gaz hélio, fazendo culto ao órgão desconhecido, ao órgão historicamente escondido, me excitava de um jeito megalomaníaco. Brincantes que gozam, que tremem com palmadas na bunda não porque gostam de apanhar, mas porque precisam da vibração para excitar o órgão cheio de enervações por todo baixo ventre, frente e verso. Reivindicando a histeria histórica como modo de existência. Assim, na rua, em pleno vento com roupas cheias de aviamento, ilógicas e lúbricas. Segura bem esse clitóris senão ele voa! Ele voa até as nuvens, quem o carrega voa junto, pra costurar no céu.

Me levantei meio sem função naquela sala de trabalhadoras atrasadas para entregar a encomenda. Lhes entreguei minha pena azul para virar um rabo de bode. Porque as fantasias só cumpririam seu destino quando vestidas pelos corpos que lhe davam movimento. Esses corpos já esperavam com ansiedade a incorporação. Fantasias incorporadas, possuídas. Cada fantasia encontra um corpo que lhe dá sentido. Cada uma a sua história. A história da roupa, a história do corpo no cortejo com seu porta estandarte girando, abrindo a cena pública. Por isso elas estavam ligeiras, tagarelas, correndo, pedindo concentração.

Fui até o jardim lhes assistir da janela, lembrando do casaco de Marx todo cerzido que lhe acompanhou por toda a vida e lhe deu lucro, pois sempre vendido, sempre negociado; de Gandhi surpreendido com o advento das máquinas de costura, aprendendo a costurar na prisão chamando aquilo de revolução; de Channel fazendo suas estripulias futuristas vestida de homem criando chapéus; da minha vó sentada na varanda da cidade do interior quase sempre na posição de tricoteamento, bordagem, tapeçaria. Virou um grande ponto cruz. Sua vida. Minha vó. A idade da saia dela. Daquele chapéu antigo que usava para se proteger do sol. Ninguém mais usava só ela.

Pensei no clitóris da minha vó. Será que sabia quão grande era e o quanto tremia? Lembrei da pornoterrorista dizendo que gozar era se vingar da falta de gozo da sua avó. Lembrei de outra Maria que masturbava sua avó no asilo de velhos. Alguém tem que tocá-la, dizia. Minha avó parada na varanda de casa com todas as outras Marias. Era divertida minha avó. Será que se masturbava? Será que exigia que se passasse uma pena no meio de suas pernas? Duvido. Mas tinha amigas, de repente se divertia mais no jogo de cartas do que no jogo erótico. Acontece. As vezes dá cansaço. E depois de tantos anos viúva, perdeu o tato. Mas nunca se sabe. Rosa também era avó e era uma tarada. Sempre no samba, sempre na ponta dos pés, seduzia, rebolava, botava o grelho pra tremer.

No meio de toda essas engrenagens imagéticas sobrepostas de avós, costureiras, Marias mudas, clitóris gigante, pena azul falsa, meu celular apita, whatsapp, era o macho arrependido, parecia que adivinhara minha vingança histórica, grandiloquente:

– Estou em dívida, desculpa pela falta de pena, rsrsrsrs… Vou passá-la a noite toda em você.

– Tudo bem meu bem, mas agora a fantasia é outra.

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