Cinema de autor vs. Cinema de gênero

.

“Trouble Every Day”, ou quando o cinema de autor escolhe como temas o canibalismo, o gore e o sangue.

Por Bruno Carmelo, do Discurso-Imagem.

Os canibais estão longe de serem uma novidade no cinema, mas existem representações muito diferentes destes seres que se alimentam de carne humana. Enquanto alguns deles são vítimas de uma situação extrema (geralmente presas num local isolado, sem outros alimentos à vista), outros são psicopatas elegantes e manipuladores (Hannibal Lector), e uma grande maioria é composta de figuras monstruosas como zumbis e humanos geneticamente modificados.

Na maioria destes filmes, o espectador é colocado numa posição passiva, a contemplar a catástrofe de um ponto de vista externo, e quando existe (raramente) uma identificação com um dos personagens, ela se estabelece com a vítima. Mas são raríssimos os filmes que tentam humanizar os canibais, compreender seu sofrimento, buscando uma identificação do público. Trouble Every Day é uma destas obras singulares, que evitam o horror e o suspense para nos apresentar um drama.

Não que se tenha piedade dos canibais, que se sofra com eles. O roteiro prefere uma abordagem intimista, minimalista, que jamais pronuncia os termos “canibalismo”, morte, jamais compara os protagonistas a monstros. Essas duas figuras singulares aparecem em histórias paralelas – um homem (Vincent Gallo) que resiste com dificuldades aos impulsos de devorar sua esposa, e uma mulher (Béatrice Dalle) que escapa todos os dias à vigilância do namorado para comer caminhoneiros à beira da estrada. Há pouquíssimos diálogos, pouca ação, enfim, pouca catástrofe. Eles são representados como pessoas banais.

Desta maneira, o filme mostra os dois indo ao trabalho, almoçando, voando num avião. O próprio título, “Trouble Every Day”, sugere a noção de um problema diário, repetido – no caso, a dificuldade em resistir às pulsões sexuais. Esta obra poderia abordar a dificuldade de se lidar com os impulsos pedófilos, sadomasoquistas, de automutilação, incestuosos ou outros. O canibalismo, uma das formas mais espetaculares de desejo, é colocada no mesmo nível de outras práticas sexuais ditas “alternativas” ou “perversas”.

Claire Denis mistura portanto o horror do ato de devorar pessoas à normalidade do desejo humano. Os impulsos canibais dos protagonistas são de origem exclusivamente sexual, não existe nenhum prazer de se comer a carne humana em si, nem o prazer do homicídio. O canibalismo aqui é apenas uma forma de prática (heteros)sexual, com o homem desejando morder e ferir mulheres, e a mulher atacando necessariamente os homens. O coito, quando existe, representa uma mera maneira de colocar a presa/parceiro sexual numa posição frágil que permita o canibalismo.

Enquanto isso, a música eletrônica melódica e nostálgica do Tindersticks banha os personagens num clima ameno, enquanto a luz branca e as câmeras fixas sugerem uma abordagem naturalista. As imagens não mostram evolução, conflito, seguindo estes personagens em momentos que parecem representativos de um dia qualquer. Ou seja, o roteiro deseja apresentar personagens, e não uma história especial que tenha acontecido a eles.

Claire Denis choca com suas repetições (os frascos rodando no laboratório), com sua normalidade. Quando as tais cenas de canibalismo irrompem, elas são brutais, mas não espetaculares. Filmadas de longe, elas privilegiam tanto o cenário quanto os corpos, o sangue, a música. A morte por canibalismo é filmada com o mesmo respeito de uma cena de sexo. E somem todos os elementos que poderiam transformar esta narrativa num filme policial: nada de perseguições, de corpos descobertos, de polícia. Nossos canibais são impunes, inconsequentes, sem serem julgados nem pelas pessoas ao redor, nem pelo próprio filme. Trouble Every Day humaniza os monstros, tratando o canibalismo não como ato, e sim como pulsão.

 

Trouble Every Day (2011)

Filme francês dirigido por Claire Denis.

Com Vincent Gallo, Béatrice Dalle, Tricia Vessey, Alex Descas, Florence Loiret-Caille, Nicolas Duvauchelle, José Garcia.

Leia Também:

3 comentários para "Cinema de autor vs. Cinema de gênero"

  1. brunocarmelo disse:

    De fato, lembra este cinema, talvez com um tempo um pouco mais dilatado.

  2. Fabio Bianchi disse:

    Baseando-se na sua crítica, parece-me o tipo de cinema feito por Cronenberg.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *