Carta a um amigo tunisiano, por Antônio Negri

O filósofo e militante propõe elementos para o processo constituinte na Tunísia e nos países árabes, uma vez destituídos os regimes ditatoriais.

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Por Antônio Negri, da Universidade Nômade (publicado em 28.01.2011) | Tradução: Bruno Cava | Foto: Antônio Negri e Michael Hardt, co-autores de Império (Record, 2001), considerado por alguns o primeiro manifesto do novo milênio.

24 de janeiro de 2011

Caro A.,

Realmente, quando há vinte anos você era meu aluno na Universidade de Paris 8 (Nanterre), não poderíamos imaginar que a revolução tunisiana tivesse características semelhantes e levantado problemas constitucionais

análogos àqueles da conturbação social e política no centro da Europa. À época, estudávamos juntos a expulsão da classe operária das minas de fosfato do sul tunisiano, o início de grandes ondas de migração interna e externa, e o lento processo de transformação que a terceirização da produção de tecidos coloridos europeus determinava em teu país. Tu te extenuavas em mostrar-me a potencialidade produtiva de teu país, além, anoto, da atividade têxtil ou da indústria do turismo ou dos serviços petrolíferos (que só mais tarde atingiram certa expansão). Tudo se encaminhou terrivelmente e com pressa. Vinte anos faz balbuciávamos sobre a globalização e hoje aí está, a ponto que a Tunísia se tornou uma província da Europa e, portanto, do mundo. Vinte anos faz, apenas começávamos a perceber a transformação do trabalho industrial ao imaterial/cognitivo e hoje a Tunísia conhece uma superabundância da última figura da força-trabalho.

E ainda, depois de vinte anos, assinalamos a transformação terrível que o neoliberalismo impôs sobre e através aquelas mudanças da figura do mercado e da natureza da força-trabalho: o fim do sistema salarial clássico, e com isso uma desocupação mortífera da massa e uma insustentável precarização — 35% da população jovem são força-trabalho cognitiva, mas só 10% trabalham; e mais, na Tunísia, se produziram e acumularam a  destruição da primazia do Welfare [estado de bem-estar social], desigualdades regionais ferozes, efeitos desastrosos do processo migratório (concluídos ou interrompidos), o bloco dos investimentos externos etc.

No final, esses últimos vinte anos nos deram a consolidação de uma ditadura mafiosa, uma corrupção insustentável e um sistema repressivo cruel e torpe (torpe por secundar e legitimar pelo medo ocidental de uma ameaça islâmica, cruel porque foi pura e simplesmente dominação de classe, exploração e opressão dos poderes corruptos contra os trabalhadores e a gente honesta).

Que fazer, me perguntas, a hora veio em que o conhecimento da  exploração é insurgente e o desejo de liberdade se rebela? A insurreição criou novas forças: como usá-la, como movê-la contra os velhos inimigos e contra os novos que rapidamente aparecerão?

Caro professor, me escreves, lembra quando ironizávamos sobre os iluministas que concorriam a prêmios com projetos sobre as novas Constituições da Córsega ou da Polônia ou ainda para a Carolina [estado dos EUA]? Por que então não discutimos (nessa vez sem rir) sobre os conteúdos de uma nova Constituição da Tunísia, não tanto porque aqui não haja quem seja capaz de fazê-lo bem, (embebido de reflexões solitárias sobre a conspiração, a cultura política política global que aqui em todo caso circula, — decerto mais do que na Itália — a angústia do tumulto e a glória da vitória) mas porque falar da Tunísia, dos novos direitos, das garantias a definir, é hoje também falar da Europa, caso algumas de suas regiões também se libertem dos despotismos atuais!

Meu amigo, companheiro A., não me convenceste [em redigir um projeto de constituição] — que ironia teus juízos não mais me vincularem como de hábito, estou convencido que não nos podemos substituir ao que os protagonistas fazem e propõem. É verdade, no entanto, que o teu problema é quase geral, que uma nova constituição da liberdade não é só um problema tunisiano mas de todos os homens livres. Enfio-te goela baixo então algumas reflexões, a fim de abrir uma discussão, um fórum em que muitos possam participar. Para começar, insisto sobre alguns pontos, que me parecem mais importantes do que outros, para qualificar qual coisa possa ser hoje uma democracia verdadeira — ou mesmo uma “democracia absoluta”, que já à época, faz vinte anos, tínhamos predileção.

1) Aos velhos poderes (legislativo, executivo, judiciário), que é necessário purgar e restaurar com vigor, debaixo de um contínuo e acrescido controle do poder legislativo, vamos incluir ao menos outros dois órgãos de governo democrático, um que aja no “setor midiático” e outro que aja sobre “bancos” e as “finanças”.

Em primeiro lugar, portanto, não é mais possível imaginar um regime democrático em que não haja a possibilidade de obrigar a informação, a comunicação e a construção da opinião pública a respeito da verdade, da liberdade, do valor da multidão. A importância extrema que tiveram as iniciativas na internet durante a insurreição será preservada como uma possibilidade contínua de exercício. Essas práticas serão sacadas da excepcionalidade e traduzidas num exercício de contínuo controle democrático. Mas não basta: as velhas mídias serão também pregadas a um controle social que as livrem de blocos impositivos do poder executivo e dos partidos políticos.

Assim, há um só modo de afirmar essa figura democrática: o direito de expressão é libertado do poder do dinheiro. A pluralidade da informação não pode representar o caminho para a sua capitalização, e vai garantida pela soberania popular a fimde multiplicar a discussão, o confronto de opiniões, as decisões. O direito de expressão não se assegura somente ao indivíduo, mas também se direciona ao exercício coletivo, excluindo toda pretensão capitalista de exploração e toda tentativa de assujeitá-lo. O direito de expressão se afirma como potência constituinte, aberta à legitimação do comum.

2) Os “bancos”, as “finanças”, foram transformadas durante o desenvolvimento do capitalismo em um poder à parte, controlado pelas elites industriais e políticas. No neoliberalismo ainda seu controle foi determinado e as finanças se tornaram totalmente independentes, fundando no nível global a legitimidade de sua intervenção. Na Tunísia, como tu diceste, na passagem à democracia está em jogo também uma progressão da forma de controle capitalista sobre a vida civil. O capital financeiro já está aparecendo de maneira mais agressiva. Na comunicação, enquanto a censura está definitivamente desaparecendo, novas formas de controle se apresentam.

O problema é por conseguinte aquele de bloquear esse processo, de transformar os bancos em serviço público, de modo que a alocação de fundos financeiros e a elaboração das políticas de investimento sejam decididas em comum. Os instrumentos das finanças devem colocar-se a serviço da multidão. É claro que isto implica a construção de poderes democráticos para os programas financeiros, coordenados às atividades legislativa e executiva, e logo poderes monetários expurgados daquela independência postiça e hipócrita do Banco central — que serve como instrumento do capital global. Este é um caminho difícil de percorrer.

Achamo-nos não só contra os banqueiros nacionais como também os interesses globais do capital. Mas é um caminho que se deve percorrer com grande determinação — prudentemente, mas com determinação. Assim, de fato, se lança uma pedra primeira para uma sublevação global contra o neoliberalismo e o capitalismo financeiro, uma sublevação mais madura!

O New York Times se deu conta imediatamente: “a small revolution” [uma pequena revolução], como aquela tunisiana, pode inflamar não só o norte da África, mas o mundo árabe como um todo. É preciso, por isso, ter em mente, ao abordá-la, que um autocrata pode fazer concessões (ao povo mas sobretudo aos bancos e às empresas multinacionais) mais facilmente do que poderia fazer um líder democrático porém fraco — como aquele que ao fim os tunisianos elegerão. Eis porque o prognóstico americano. Eis a consequência de nossa hipótese: não é possível hoje imaginar uma revolução democrática que não realize, antes de qualquer outra operação, uma nacionalização dos bancos, uma reapropriação dos lucros, ao que se deve seguir a instauração de um direito comum. Somente assim a potência da multidão pode constituir-se.

Ao fim da qual se faz essa agência financeira, democraticamente gerida, que pode propiciar um Welfare à população tunisiana, contra a precariedade, estabelecendo uma renda garantida, a possibilidade de uma educação completa e de uma assistência de saúde adequada a cada cidadão. Hoje não há liberdade que não passe pelo comum. Expressivamente a ditadura privatizou tudo o que na Tunísia podia fazê-lo — é preciso portanto retomá-lo.

Caro A, só sobre o comum e sobre a gestão comum depende agora o futuro de vossa geração e de vossos filhos. Certo, o desastre que herdaste não se cancela de um golpe só — assim que as nuvens que seguem a insurreição se dissipem, serão [o comum e a gestão comum] a prioridade ao redor da qual se concentrar e decidir. Mas o dispositivo de um governo constituinte não pode senão proteger o comum. Não largar a proposta do comum (esta é também a tua preocupação, companheiro A.) aos islâmicos. É sobre uma falsa propaganda do comum que desenvolve a atividade deles.

3) O terceiro ponto se refere à forma de governo. Como tu dizes, a revolta tunisiana foi social, nasceu da inteira sociedade que trabalha. Ben Ali tinha compreendido bem que não podia, acima de tudo, permitir à revolta social expressar-se politicamente e cada político sabia que nessa desocupação da juventude estava a bomba relógio pronta a explodir. Por quê?

A juventude — força-trabalho cognitiva — é hoje a verdadeira classe trabalhadora do pós-industrial. Porque é força-trabalho cognitiva, esta juventude não é impotente; antes, tem os meios de superar essa frustração que tem paralisado os estamentos mais pobres e antigos da população. A cultura da impotência foi quebrada com a força das ruas da Tunísia.

Então, essa juventude deve manter aberto o processo revolucionário, transformando a insurreição na máquina de governo constituinte. Não pode deixar nas mãos das velhas elites (nem socialistas nem democráticas nem islâmicas) as transformações da constituição do país. De outro lado, os tunisianos tem menos necessidade hoje de uma nova constituição do que de um processo constituinte alargado ao país inteiro — inclusive as forças armadas, os juízes, a universidade. O poder legislativo e a governança necessárias para repor em movimento o país devem ser diretamente exercitados pelos jovens e pelos grupos revolucionários, organizados em todos os lugares e nos quais seja possível e urgente.

Mas tudo isso se pode fazer se puder evitar, pelo maior tempo possível (segundo aqueles projetos iluministas de constituição democrática do qual falávamos, esse tempo não podia ser inferior a uma década), a fixação de formas de representação estável. A agilidade do poder global, de seus bancos, de suas instituições centrais, é verdadeiramente grande: não terão dificuldade, esses senhores, de achar (e pagar) alguns socialistas ou alguns islâmicos para determinar o equilíbrio a favor deles! A insurreição foi ágil e deve achar tanta agilidade quanto ao mover-se contra o poder global e sua emanação mediterrânea, que já estão se concentrando contra o perigo extremo da insurreição tunisiana e sua expansão ao Magreb [norte da África]. Recordamos (não era a propósito a sua preocupação, companheiro A.?): se não construirmos comitês de ação constituinte, serão os islâmicos que, radicais ou moderados, retomarão a política nas mesquitas. Entretanto, mais será a política democrática e constituinte, quanto mais for laica…

Tchau, continuemos a trocar informações. Respiram-se ares novos e, em algum tempo, por todo lugar. Esperando pela Argélia!

Toni Negri.

P.S.: Se abres os jornais econômicos ocidentais, estão aqueles que, à direita, primeiro de tudo conversam sobre a queda dos títulos da dívida soberana tunisiana, da parte das agências de cálculo. A [agência de consultoria financeira] Moody´s já depreciou o título da dívida soberana tunisiana e mudou a avaliação de estável à negativa. Sobre o mesmo argumento, à esquerda, lamenta-se essa decisão porque, ao contrário, insiste-se sobre o fato que também a insurreição é… produtiva. O fim da dominação mafiosa sobre a indústria tunisiana deveria permitir uma retomada do crescimento. Mas de qual crescimento? Da pobreza, da precariedade?

Quanto à etiqueta política, à direita se multiplicam as ameaças. Atenção, cidadãos tunisianos, porque se exagerais, o exército está já a postos para a repressão. Exatamente o mesmo exército que vos ajudou a libertar-se de Ben Ali — continuam os comentadores da direita. Não aumentais o medo do vazio. Mas à esquerda, exaurido um primeiro momento de alegria, que coisa se pede agora? A hora que Ben Alì se foi, o país saberá reconstruir o seu aparato de Estado e conduzir uma transição pacífica para a Democracia? Só isto pede a esquerda?

Na realidade, de um lado e do outro, a preocupação é tão grande quanto a surpresa. Tornar-se-á a transição da Tunísia à democracia um exemplo, um laboratório, para todo o mundo muçulmano? Mas se é só isso que se quer, é realmente pouco novo; antes, é realmente velho: é simplesmente um novo colonialismo.

Caro A., não nos assustamos em pensar uma nova constituição, um novo processo constituinte, novos instrumentos da potência democrática dos cidadãos. No Magreb, na Argélia, na Tunísia e mais ainda no Egito, se está num momento de grande e profundo desenvolvimento de uma democracia construída de baixo. Contrariemos a pequeneza repressiva dos comentadores americanos e europeus.

P.P.S. Releio esta minha carta antes de mandá-la, estamos em 28 de janeiro, o Egito queima.

Antônio Negri, filósofo político e militante da Universidade Nômade, uma das lideranças do Operaísmo italiano e do movimento Autonomista nos anos 1960 e 1970 na Itália, é autor, dentre outros, de Império, Multidão, Poder Constituinte, Anomalia Selvagem Cinco Lições sobre o Império, todos com tradução em português.

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