A mobilização que você faz dentro de si

Num mundo em crise, multiplicam-se iniciativas para repensar atitudes pessoais, questionar conceitos como “conquistas” e “sucesso” e valorizar sensibilidade

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Num mundo em crise, multiplicam-se também iniciativas para repensar atitudes pessoais, questionar conceitos como “conquistas” e “sucesso” e valorizar sensibilidade

Por Katia Marko, na coluna Outro Viver | Imagem: @rafael_grampa no Ideafixa

“Quem de dentro de si não sai, vai morrer sem amar ninguém”. Essa pequena frase da música Berimbau, do poetinha Vinícius de Moraes, tem me feito refletir muito. Principalmente nestes tempos de ressignificação da vida e busca de maior liberdade. Acredito que o mundo está em transformação, mas o que será ainda não dá para saber. Porém, podemos capturar algumas experiências e ir arriscando palpites.

Quando decidi morar em uma comunidade, o maior conflito era abandonar o “eu”, ou seja, a minha casa, o meu carro, os meus interesses, o meu umbigo. E continua sendo, de alguma forma, pois não é fácil soltar condicionamentos. Vivemos em uma cultura narcisista, na qual a imagem é mais importante do que a realidade. A idéia de rendição e entrega é muito impopular, pois consideramos a vida uma luta, uma batalha. O objetivo é vencer, obter conquistas, algum sucesso. O fazer é mais importante do que o ser. O sucesso proporciona auto-estima, mas somente porque inflaciona o ego. Já o fracasso surte o efeito oposto. Nesse cenário, os termos rendição e entrega, equivalem a ser derrotado, mas, na realidade, é apenas a derrota do ego narcisista. E sem essa rendição, é difícil entregar-se ao amor.

Leonardo Boff defende que o grande desafio atual é conferir centralidade ao que é mais ancestral em nós, o afeto e a sensibilidade. “Numa palavra, importa resgatar o coração. Nele está nosso centro, nossa capacidade de sentir em profundidade, a sede dos afetos e o nicho dos valores.” Arrisco enveredar por um caminho não muito fácil, para afirmar que iniciativas cá e acolá me fazem acreditar que estamos resgatando a confiança no ser humano. Bem, na minha visão, é isso que significa as novas formas de viver que estão pipocando pelo mundo.

Notícias como a que “1200 catalães praticam a autogestão com moeda, educação e saúde próprias”, com a expansão para a França e a Itália, ou de que a  “Crise na Grécia estimula criação de comunidades sustentáveis”, ou ainda a experiência vivida pelos jovens organizados nas casas do Fora do Eixo, no Brasil, demonstram que formas alternativas estão sendo buscadas. Claro que existem problemas, contradições e insatisfeitos. E isso acontece em qualquer ação. Mas o importante é que existem pessoas que querem furar o “esquema”.

“Jamais a humanidade dispôs de tantos recursos materiais e competências técnicas e científicas (…) Mas, por outro lado, ninguém pode mais acreditar que essa acumulação de poder possa prosseguir indefinidamente, tal qual em uma lógica de progresso técnico inalterada, sem se voltar contra ela mesma e sem ameaçar a sobrevivência física e moral da humanidade”. Essas são as primeiras frases do Manifesto do Convivialismo, outra descoberta que fiz recentemente.

O seu idealizador é Alain Caillé, sociólogo fundador do MAUSS (Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais), que conseguiu reunir e fazer trabalhar junto um grupo de 64 pesquisadores e universitários procedentes do mundo inteiro, de sensibilidade altermundista, ecologista, ou oriundos do cristianismo social, como Edgar Morin, Susan George, Patrick Viveret, Serge Latouche, Elena Lassida, Jean Baptiste de Foucauld, Jean Pierre Dupuy, Jean Claude Guillebaud, entre outros. O resultado é a elaboração de uma nova base doutrinal filosófica, o convivialismo, para responder às quatro grandes crises – moral, política, econômica e ecológica – vividas pelas nossas sociedades nesse início do século XXI.

Segundo o manifesto, para além do liberalismo, do socialismo ou do comunismo, devemos inventar um convivialismo, uma convivialidade, dito em outras palavras, a arte de viver juntos mesmo nos opondo, mas sem nos massacrarmos e levando em conta a finitude e a fragilidade do mundo.

É claro que tenho a noção de que são iniciativas ínfimas, mas são passos na direção da invenção do novo. Voltando ao Leonardo Boff, vou reproduzir dez pontos cruciais, apontados no livro “Cuidar da Terra, proteger a Vida, como evitar o fim do mundo”. Segundo ele, representam experiências humanas que não podem ser desperdiçadas, pois incorporam valores que poderão alimentar novos sonhos, nutrir nossa imaginário e, principalmente, fomentar práticas alternativas.

O primeiro é reconhecer que a Terra é Mãe (Magna Mater, Pacha Mama), um superorganismo vivo, chamado Gaia, que combina todos os elementos físicos, químicos e biológicos para manter-se apta a produzir e reproduzir, mas que é finito, com recursos escassos.

O segundo é resgatar o princípio da re-ligação: todos os seres, especialmente, os vivos, são interdependentes e são expressão da vitalidade do Todo que é o sistema-Terra. Por isso todos temos um destino compartilhado e comum.

O terceiro é entender que a sustentabilidade global só será garantida mediante o respeito aos ciclos naturais, consumindo com racionalidade os recursos não renováveis e dar tempo à natureza para regenerar os renováveis.

O quarto é o valor da biodiversidade, pois é ela que garante a vida como um todo, pois propicia a cooperação de todos com todos em vista da sobrevivência comum.

O quinto é o valor das diferenças culturais, pois todas elas mostram a versatilidade da essência humana e nos enriquecem a todos, pois tudo no humano é complementar.

O sexto é exigir que a ciência se faça com consciência e seja submetida a critérios éticos para que suas conquistas beneficiam mais à vida e à humanidade que ao mercado.

O sétimo é superar o pensamento único da ciência e valorizar os saberes cotidianos, das culturas originárias e do mundo agrário porque ajudam na busca de soluções globais.

O oitavo é valorizar as virtualidades contidas no pequeno e no que vem de baixo, pois nelas podem estar contidas soluções globais, bem explicadas pelo efeito borboleta.

O nono é dar centralidade à equidade e ao bem comum, pois as conquistas humanas devem beneficiar a todos e não como atualmente, a apenas 18% da humanidade.

O décimo, o mais importante, é resgatar os direitos do coração, os afetos e a razão cordial que foram relegados pelo modelo racionalista e é onde reside o nicho dos valores.

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5 comentários para "A mobilização que você faz dentro de si"

  1. Raoni Rossi disse:

    Katia. O seu texto é lúcido e genial. Compartilho das suas convicções. Parabéns!

  2. Num mundo onde impera o individualismo, como é bom refletir sobre um convivialismo numa sociedade onde a base das relações estaria no respeito absoluto ao outro…

  3. OZEAS JORDAO disse:

    Amigos o mundo sempre esteve em transformação! Logo, nossos analises devem ser sobre percepção da qualidade das transformações.

  4. que disse:

    Na minha opinião, o ser humano, na época moderna se desviou de Gaia de forma natural devido a tecnologia, por isso tantos traumas sofridos como o desgaste do ecossistema, tornando nós mais insensíveis e apáticos quanto a Terra.
    Esse distanciamento fez do ser humano algo pior, banal. Mas me parece que a pequenas células que estão dispostas a mudar essas características do homem moderno que o desumaniza.
    Pago para ver

  5. Acho que não entendi direito uma parte. Esse pensamento de um organismo vivo, não poderia se dar de forma mais real do que cosmológica? Vejo que as profundas relações com os ecossistemas devam ser pensados como uma forma real de viver em harmonia… deveríamos relativizar mais tal questão, pois há uma diversidade enorme de cosmologias que no seu centro trata dos mitos como formas de interpretar e conviver com a natureza… não sei o quanto este argumento chega realmente a todos os povos… ele parece tão universalista como qualquer outro…

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