A imagem da política

“Todo político é corrupto”, “o homem bom é subvertido pelo sistema”… Qual discurso para o cinema político atual?

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Por Bruno Carmelo, do blog Discurso-Imagem

Este último trimestre de 2011 foi marcado por uma grande quantidade de filmes de temática política exibidos nos cinemas franceses. Há alguns meses, os festivais de Cannes e Veneza exibiam com certo orgulho seus raros “filmes políticos” do ano, fator quase obrigatório para dois festivais que não são exatamente conhecidos pelo seu engajamento (ao contrário de Berlim, por exemplo). Os filmes selecionados foram The Ides of March, de George Clooney, em Veneza, e A Conquista e L’Exercice de l’État em Cannes. Os dois primeiros tiveram recepções mornas da crítica, mas este último está classificado atualmente como um dos cinco melhores filmes do ano de acordo com a média das críticas francesas (estabelecidas semanalmente pelo site Allociné).

Seria possível comparar as diferenças entre estes três filmes, mas talvez o mais interessante seja justamente ver o que eles têm em comum. Embora A Conquista e The Ides of March não tenham empolgado a maioria dos espectadores, eles foram todos felicitados pela “pertinência” do tema e pela complexidade das relações políticas ilustradas em imagens. No caso de “O Exercício do Estado” (em tradução literal), as críticas extremamente positivas felicitavam justamente este aspecto: “Nunca a política tinha sido tratado com tanta complexidade, tanto humanismo”.

O Exercício do Estado retrata a vida cotidiana de um Ministro dos Transportes, obrigado a fazer concessões éticas e políticas para manter seu cargo. Ele é ferozmente contrário à privatização das estações de trem, mas é obrigado a fazê-lo por pressão do Primeiro-ministro. Ele não concorda com os novos cortes no orçamento, mas tem que ceder à pressão do Ministro da Economia. Todos felicitaram um filme em que (finalmente) some a ideia fácil de que “todo político é corrupto”, este tipo de atalho no pensamento popular muito propício a evitar discussões de fundo. De fato, este roteiro evita o maniqueísmo, evidenciando as relações do poder ao invés de se consagrar à integridade individual dos seus representantes. Ele também evita o simples ato de observar, aquele que não toma partido de ninguém, algo que seria considerado conformista, ou mesmo reacionário. O diretor teria conseguido portanto criar imagens fortes, criticando esta Política um um “p” maiúsculo, algo superior às práticas políticas corriqueiras.

As qualidades evidentes deste filme e as outras um pouco menos visíveis dos dois filmes anteriores permitem refletir sobre um certo tipo de valor atribuído ao cinema político contemporâneo, e seria interessante tentar de listar as principais linhas deste pensamento. Os fatores enunciados abaixo constituem evidentemente generalizações, mas toda compreensão de um conjunto é obrigada a operar por uma reflexão da média. Aviso portanto a todos que sempre argumentam que “nem todo filme é assim”, que “conhecem exceções” etc. Eis uma pequena lista média de mecanismos que parecem ser recorrentes na recepção de imagens cinematográficas sobre a política:

1) É bom ser militante, engajado, mas não partidário

George Clooney apresentou The Ides of March dizendo desde o princípio que seu filme “não tratava nem de republicanos, nem de democratas”. Pierre Schoeller, diretor do Exercício do Estado, afirmou que seu protagonista poderia ser tanto de direita quanto de esquerda. Mesmo no Brasil, Tropa de Elite  e Tropa de Elite 2 foram felicitados por retratarem mecanismos de poder vistos como “universais” ou “naturais”, como preferirem, mas de qualquer modo suficientemente abrangentes para englobarem qualquer vertente política. Isso porque, diferentemente de alguns séculos atrás, falar de política é considerado uma coisa nobre, mas falar de políticos não o é. Defender uns em detrimento de outros seria pior ainda, algo qualificado sistematicamente de propaganda política, de panfletagem – como é geralmente o caso da recepção dos filmes de Michael Moore.

Críticos e espectadores lembram nestes casos de Leni Riefenstahl, diretora pró-nazista responsável pelas imagens grandiloquentes de Hitler, outros falam em proselitismo, em liberdade de pensamento, outros gritam que o dinheiro público não deveria ser investido em obras partidárias (veja a polêmica em torno de Lula – Filho do Brasil, financiado logicamente apenas pela iniciativa privada). Refletir sobre a política é portanto permitido, mas é preciso que ela se situe num nível de certo modo abstrato, descolado da realidade imediata, para não dar a impressão de favorecer um dos dois (ou mais) lados retratados – A Conquista, sobre a eleição de Sarkozy na França, foi atacado exatamente por estas razões.

2) A estética parece incompatível com o discurso (político)

Curiosamente, nenhum texto dentre as dezenas publicadas (alguns deles com três ou quatro páginas inteiras de revista, como Cahiers du Cinéma e Positif) sobre os filmes franceses citados anteriormente analisou a imagem cinematográfica. Qual plano, qual enquadramento, qual luz e quais efeitos de montagem foram escolhidos para retratar estas tais relações políticas? Não se sabe. Resta pensar que, para a integridade da crítica local, a estética não importa necessariamente para um filme (algo improvável, visto o estetismo típico dos Cahiers), ou então estima-se que a escolha das imagens não é o fator principal, ou mesmo não é particularmente compatível com a discussão política.

De certo modo, na maioria destes filmes a forma se submete claramente ao conteúdo, e se esforça para passar despercebida, para não chamar atenção, a tal ponto que a grande maioria das qualidades atribuídas a todos estes filmes acima, inclusive aos brasileiros, poderia ser limitada ao roteiro, talvez mesmo à ideia inicial, nos quais as relações de poder já existiam. O espectador atento, aquele que se lembra não somente de Riefenstahl mas também dos debates Collor-Lula organizados pela Rede Globo em 1989, sabe que a escolha de ângulos, luz, montagem e outras ferramentas da linguagem cinematográfica são essenciais para se compreender o discurso produzido.

De certo modo, o cinema político (como o cinema documentário) é considerado como um produto audiovisual de natureza distinta do cinema “comum” – comercial ou de diversão, como preferirem –, no qual a forma e a verossimilhança da imagem são julgados com rigor pelos críticos e espectadores, rigorosamente. O cinema político parece “servir a outra finalidade”, se diferenciando portanto pela presença assumida de um discurso – argumento mais do que questionável desde que a escola de Frankfurt e filósofos anteriores dissecaram a sociedade de consumo, mostrando claramente que o discurso existe em qualquer forma de imagem ou de prática social.

3) A política sem ideologia é politicamente correta

Por fim, o que se resulta dos dois itens acima é a ideia de que, inicialmente, existem temas mais prestigiosos, mais importantes ou “pertinentes”, do que outros. É considerado socialmente mais nobre falar dos laços políticos do que de uma história de amor, mais importante denunciar a pobreza em países subdesenvolvidos do que realizar um filme de ação ou suspense. Os temas moralmente respeitosos (mas não tabus) são mais valorizados não apenas nas conversas públicas, mas também no cinema levado ao público, e feito com financiamento público. Ironicamente, a segunda conclusão constitui uma contradição: a política deve ser discutida, mas não deve ferir ninguém em especial, ou então ferir a todos de maneira igualitária e perfeitamente democrática. No caso em que não se fere ninguém existe A Conquista, obra paternalista que acaba por compreender que “todo político tem suas fraquezas”. No caso em que se fere a todos, existem as obras que atiram para todos os lados (Tropa de Elite) ou aquelas que observam friamente, criticando o sistema sem criticar as pessoas de maneira determinista, estilo mito do “bom selvagem corrompido pela sociedade” (O Exercício do Estado, Os Nomes do Amor, The Ides of March).

Como o presidente francês de direita Nicolas Sarkozy, que felicitava alguns meses atrás o movimento de maio de 1968 dizendo que “foi importante, mas agora é preciso virar a página e passar a outra coisa”, este tipo de “valor político” aplicado ao cinema atual institui a regra um tanto hipócrita e consensual segundo a qual é “importante” ser politizado, mas comedidamente; militar por uma ideia (de justiça, de moral, etc.), mas não por uma pessoa ou partido. O cinema político pode ser filosófico, mas precisa permanecer associal, atemporal, o suficiente para “fornecer um amplo material de reflexão” sem fornecer ao mesmo tempo suas chaves de leitura.

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L’Exercice de l’État (2011), filme francês dirigido por Pierre Schoeller.

La Conquête (2011), filme francês dirigido por Xavier Durringer.

The Ides of March (2011), filme norte-americano dirigido por George Clooney.

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2 comentários para "A imagem da política"

  1. Milton Guedes Guimaraes disse:

    Tudo bem e quando esses filmes chegarão ao Brasil, quebrando o monopólio de Hollywood? É uma vergonha todos os filmes tem a procedência dos EUA, com exceção de alguns “gatos pingados” produzidos aqui. Por que o governo nao manda quebrar esse monopólio e deixa o público fazer suas escolhas?

  2. Raul disse:

    Olá Bruno,
    Que bela leitura da produção crítica em torno desses filmes!
    De todos esses, vi apenas Ides of March. Acho que não concordo que o filme recaia no mito do bom selvagem de forma ingênua. É verdade que ele narra a trajetória de um sujeito idealista transformado em psicopata; mas, mais do que apresentar um sistema ou uma sociedade que o corrompe, vejo retratados ali seres humanos muito complexos – diversos deles também munidos de ideais – mas que se corrompem no seu dia a dia exatamente por serem seres humanos, imperfeitos, complexos e cheios de fraquezas.
    Algo que me chamou muito a atenção em The Ides of March, mas que eu não tenho base teórica para refletir profundamente sobre, foi o papel das personagens femininas (Molly principalmente) no filme. O personagem pareceu ter sido criado de forma muito utilitária, para exercer uma função. Tentam pintá-lo com uma pseudo-complexidade e terminam por enquadrá-la no clichê machista do que seria uma ‘mulher moderna’ – parece forte, mas no fundo é fraca.
    Como disse, não tenho recursos pra analisar melhor isso. Mas me chamou a atenção e me pareceu bastante problemático.

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