A arte de morrer

Crônica em Varanasi, onde os hindus cremam e libertam seus mortos em rito festivo. É preciso catarse e luto para reabrir a vida – mas o Ocidente, insípido, não compreende

Em Varanasi, os degraus são cheios de vida e de morte. As cremações ardem sem cessar, a todas as horas do dia e da noite, todos os dias do ano, até 200, 300 corpos por dia

Em Varanasi, os degraus são cheios de vida e de morte. As cremações ardem sem cessar, a todas as horas do dia e da noite, todos os dias do ano, até 200, 300 corpos por dia

.

Crônica em Varanasi, onde os hindus cremam e libertam seus mortos em rito festivo. É preciso catarse e luto para reabrir a vida — mas o Ocidente, insípido, não compreende

Por Maria Bitarello

Um dos momentos mais importantes em “Bacantes”, na montagem do Teatro Oficina a partir do texto de Eurípedes, é o estraçalhamento do corpo de Penteu. Um ato indissociável da entrega de Penteu a seu fim. De certa forma, é a consumação da tragédia, o ato em que o antagonista compreende e aceita seu papel. A cena é violenta e bela. Desse ritual de morte, todos são convidados a participar. Primeiro, do estraçalhamento, depois, do banquete onde Penteu será comido pelas bacantes, pelos tebanos, por todos nós; o momento da festa. Assim como todos ali presentes, Penteu percebe a situação em que se encontra, reconhece o inescapável – a morte, ali, pelas mãos delas – e abre os braços. Não resiste. Recebe. E morre.

Em dezembro, antes do fim da temporada de “Bacantes”, voltei a Varanasi, na Índia – a mais importante das cidades sagradas hindus e uma das mais antigas do mundo – e me lembrei o quão insípidos são os rituais de morte em muitas culturas. Dentre elas a nossa, a católica, no Brasil: o velório, o enterro, a missa de sétimo dia. E o que tanto me toca nas cremações em Varanasi é a participação ativa dos familiares no ritual de despedida do ente morto e, por fim, de destruição de seu corpo, nosso veículo de sensações e emoções em vida. Não vou aqui entrar nas questões patriarcais do hinduísmo e no desconfortável fato de as mulheres não poderem participar desses rituais fúnebres – esse será assunto pra outro dia, outro texto.

Acredito que viver plenamente os ritos de morte nos liberta pra vida. Privados da catarse e do luto, podemos passar a vida arrastando caixões, apegados ao que foi e não é mais. No fundo, cada morte é uma nova bifurcação no caminho onde podemos reafirmar, aqui e agora, nosso compromisso com a vida, com os vivos. E as cremações em Varanasi ritualizam essa decisão interior numa ação muito importante. Ao final de tudo, depois dos dias de preparação do corpo, luto da família, choro e cantos toados em coro, purificação nas águas sagradas do Rio Ganges, depois da pira, das toras de madeira, das cinzas e dos ossos jogados ao rio, depois de tudo, tudo mesmo, o protagonista da cerimônia (pode ser o filho primogênito ou o filho caçula, dependendo de quem morreu) joga atrás de si um jarro com as águas do Ganges, por cima do ombro, sobre as brasas finais do fogo fúnebre.

E pronto. Ele segue, sem olhar pra trás. Pra não prender o morto aqui entre os vivos, pra deixá-lo atravessar o portal aberto ali em Varanasi. E assim, nós também, os vivos, não carregamos fantasmas. Cada um segue em seu respectivo reino, cada qual do seu lado do portal. Até chegar nossa vez de fazer a passagem. E quando essa hora chegar, nós também merecemos uma travessia sem rabo preso. É preciso, portanto, saber morrer, mas também deixar morrer. Existe um livro muito bonito sobre essa arte, “O livro tibetano do viver e do morrer”, de Sogyal Rinpoche, cuja leitura eu recomendo. Uma vez que a morte é natural e inevitável, preparar-se pra ela não é mórbido, mas sadio. Tanto pra sua quanto pra dos demais. Com sorte, penso eu, dependendo de como formos, poderemos participar ativamente dessa última e absoluta experiência da vida.

Se você for à Índia, não deixe de conhecer Varanasi. Mesmo. Uma cidade inteira que adora Shiva, o deus da destruição e, logo, do renascimento, da transformação. As águas do Ganges, o rio sagrado do hinduísmo que na mitologia nasce dos cabelos de Shiva, podem oscilar em até 70m de altura, foi o que me informaram. Durante as monções, a cidade é invadida pelas águas e não se vê os degraus dos ghats à beira rio e que decoram toda a margem da cidade antiga. Quando expostos, os degraus são cheios de vida e de morte. As cremações em Manikarnika Ghat ardem sem cessar, a todas as horas do dia e da noite, todos os dias do ano, até 200, 300 corpos por dia. Ali ao lado, ao nascer do sol, do barco, vemos os peregrinos que vêm se banhar em busca de moksha, a libertação do ciclo de reencarnações. Aos poucos chegam os lavadores de roupas. Crianças. Pássaros. Cachorros. Vacas, muitas vacas. Sadhus, os monges ascetas. Vida, morte, excrementos, tudo junto. É de uma intensidade para a qual eu ainda não encontrei paralelo em outro lugar. E é maravilhoso.

Andando pelo ghat, um sadhu sinaliza pra eu me sentar a seu lado. Aceito o convite. Ele aponta pra mim, levanta dois dedos no ar, depois pro chão. Você, segunda vez, Varanasi. Eu concordo com a cabeça, balançando-a com malemolência, de um lado pro outro, como se faz na Índia. Na sequência, aponto pra minha têmpora e depois pra ele. Eu me lembro de você, digo com mímicas. E lembro mesmo. Fotografei-o na minha última vinda. Ele fumava um baseadão sentado numa das estreitas ruelas da cidade, naquela época encharcadas.

Ali, à beira do rio, ele me oferece outro baseado. Ganja, diz. Digo que não com a cabeça e mostro meu tabaco convencional. Duas crianças estão sentadas a seu lado, um menino e uma menina. Ele segue meu olhar na direção delas, olha de volta pra mim. Seu olhar é penetrante e surpreendentemente generoso – os sadhus não são sempre gentis. Em volta do pescoço, dezenas de penduricalhos com caveiras, japamalas, cores laranja, amarelo. Muitas pulseiras e anéis. Ele fuma seu baseado sem pressa; me fita entre tragadas. A testa pintada com as listras cinzas, de adoração a Shiva. Os pés descalços dobrados sobre as coxas. Uma bolsa a tiracolo que ele me mostra: no home. Sem casa, mora na rua, com as crianças, ele aponta. Não me pede dinheiro. Eu aponto pra elas e pra ele, perguntando com o olhar: são seus filhos? Ele concorda com a balançada indiana lateral de cabeça. Mama, finish. Only baba. Diz sem lamento, sem súplica, sem drama. Olhar calmo, como o das crianças. Ele levanta as duas mãos pro alto, no gesto de adoração a Shiva, indicando que a mãe não está mais aqui.

É isso. Mamãe, acabou. Só papai. E tudo bem esquecer, superar e até ser feliz de novo; é inevitável. Hoje, eu bem que ando acreditando que participar do ato de destruição do corpo da pessoa que se vai é uma etapa vital dessa virada. Que só depois dela pode haver festa. E o rito festivo ou a festa ritualizada é o que se vive em Varanasi. É o que vivemos no teatro.

Leia Também:

Um comentario para "A arte de morrer"

  1. josé mário ferraz disse:

    Chegar à conclusão de que morrer é tão natural quanto nascer é impossível ao ignorante por exigir elevação espiritual inexistente na fase ainda de bicho em que se encontra a humanidade em sua matança. Poucos a superaram, razão pela qual estão de parabéns. Falar nisso, que tal usar o dinheiro do futebola para fazer fornos crematórios no lugar dos cemitérios?

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *