Líbia: revolução além da crise

O desafio dos revolucionários líbios ainda é enorme, face à brutalidade da repressão. Seja como for, nada será como antes e é isso que importa.

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Por Hugo Albuquerque, de O Descurvo

Desde que esse processo revolucionário multitudinário tomou conta do Mundo Árabe com a Revolução dos Jasmins, insistimos que se referir aos atuais acontecimentos como fruto de mera degradação na condição de vida das pessoas, quem sabe uma consequência direta dos efeitos da Crise Mundial, trata-se de um equívoco fortíssimo.

Não, nem a Tunísia, tampouco os países afetados pelo efeito dominó, são os mais pobres, desiguais ou politicamente opressivos do continente africano ou do mundo, embora eles sejam pobres, desiguais e opressivos. Antes de mais nada, é preciso ponderar o que disparou essa fantástica explosão do desejo e entender como ele interferiu no campo social. Enfim, uma economia política formalista, incapaz de considerar o desejo, jamais será capaz de produzir uma análise precisa da questão.

O fato é que mesmo que a Crise Mundial tenha agravado as condições de vida da região, fatores demográficos — que propiciam uma enorme quantidade de jovens naqueles países, por exemplo — e políticos — a irrupção, finalmente, de um modelo de militância capaz de fazer multidão, alternativo ao enferrujado nacionalismo árabe ou ao fundamentalismo islâmico e suas ambiguidades — conseguiram reverter um quadro que, há pouco menos de um ano, era de mais perfeita servidão.

A bola da vez é a Líbia: país com as melhores taxas de qualidade de vida da África — iguais aos dos melhores países latino-americanos —,  onde o extremismo religioso amarga a irrelevância e em relação ao qual os analistas internacionais supunham que jamais seria afetada pelas atuais circunstâncias. No entanto, a Líbia se vê diante de uma revolução que vem a se unir com a multiplicidade de revoluções do continente. A tirania local sob o comando do controverso coronel Gaddafi mistura socialismo autoritário do Leste Europeu, em moldes árabes, com um bocado do nacionalismo nasserista e boas doses de histrionices. Neste exato momento, essa tirania tem protagonizado a mais dura reação vista à Revolução Árabe até agora, ao mesmo tempo em que desmistifica a lenda da viabilidade da “boa ditadura”: regime opressivo que produziria boas “condições objetivas” de vida.

Se a história nos ensina que nenhuma forma de socialismo autoritário é sustentável — se é que podemos considerá-las como um socialismo, haja vista que não são os trabalhadores que controlam os meios de produção —-, o caso suscita e reforça a natureza libertária do processo em curso.

Embora a ditadura de Gaddafi tenha sido reabilitada pelo Ocidente — seja por ter aderido à Guerra ao Terror norte-americana, seja pela repressão dos imigrantes no Mediterrâneo ao lado dos europeus —, a revolta reforça que os árabes não estão mais dispostos a tolerar nem o imperialismo, nem as degenerações autoritárias “contra-hegemônicas”, que surgiram em sua decorrência — reconciliadas ou não com o Ocidente.

Se a situação de submissão real daqueles países ao sistema internacional não será mais tolerada, também não há espaço para um novo Nasser (e muito menos para um novo Sadat) , o que é maravilhoso.

Apesar de tudo, o desafio dos revolucionários líbios ainda é enorme, face à brutalidade da repressão. Seja como for, nada será como antes e é isso que importa.

Hugo Albuquerque edita o blogue de análise política O Descurvo

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