Dívida Pública, verdades e mitos

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Dizer que ela consome metade do Orçamento é grande imprecisão. Estudá-la a fundo permite compreender novas dinâmicas de captura de riquezas do capitalismo.

Por Bruno Cava no Quadrado dos Loucos

Esse gráfico circulou bastante nas redes. Representa a porcentagem por área de investimento, em relação ao orçamento da União projetado para 2012. Nele, estão contidos os gastos federais planejados pelo governo para o ano, o que ainda depende da aprovação do congresso nacional.

Salta aos olhos a fatia da dívida, com quase metade do total de 2,2 trilhões de reais. Desse bolão, a fatia da dívida dá um trilhão de reais (um milhão de milhões), o que corresponde a 23% do PIB brasileiro, avaliado em R$ 4,4 trilhões (dez. 2011, por paridade de compra). Com base nesse gráfico, o esquerdismo saiu espalhando que Dilma governa para os banqueiros e que nunca antes na história desse país eles lucraram tanto à custa do trabalhador. Que eles vão amealhar 50% da arrecadação, enquanto coube à saúde apenas 3,98% e à cultura, 0,09% (um milésimo do orçamento). No fundo no fundo, até socorre alguma razão a declarações desse naipe, mas por razões bem outras. Às vezes, no afã de sentenciar o governo de morte ideológica, os oposicionistas isolam a bola pra fora do campo. Disparates, com uma oposição assim, quem precisa de governismo?

É que, nessa fábula de um trilhão de reais, não foram incluídos somente os juros da dívida, mas também as amortizações e o refinanciamento. Refinanciamento ou rolagem é a novação da dívida: uma operação contábil que substitui créditos antigos por novos. O governo adia o pagamento renovando o empréstimo, o que ocorre por meio do lançamento de títulos novos. A rolagem da dívida depende da aceitação dos credores, do concerto do governo com bancos e financeiras, que podem exigir condições mais vantajosas para o refinanciamento, em função de conjuntura e barganha. A necessidade de rolar os débitos confere a eles poder de retaliação, quando desagradados por medidas impopulares: maior controle dos fluxos financeiros, reduções da taxa básica, investimentos sociais demais, ou a tributação progressiva sobre fortunas (tributo inexistente no país) ou operações financeiras (como a CPMF, esse imposto sensacional cuja principal vítima eram, adivinhe, os bancos e as financeiras). Amortização, por sua vez, é outro nome para o pagamento periódico do saldo devedor, reduzindo a débito e cortando o efeito bola de neve. Além disso, é preciso calcular o valor real dos juros, abatendo-se a inflação do valor nominal. Pois se os juros fossem iguais à inflação, o empréstimo não produziria lucro. Sobre um empréstimo indexado pela taxa básica do governo (ou seja, a meta trimestral definida pelo índice SELIC) são cobrados juros de 11,0 % ao ano (jan. 2012, Copom). Debitando uma inflação de 6,5% (2011, pelo IPCA), resulta um juro corrigido de 4,5%. Sim, esses cálculos embutem critérios que podem ser problematizados e há nuances. Apesar disso, independente do método de cálculo, em nenhuma hipótese se pode concluir que, do orçamento geral da união, 47% são transferidos ao deus dará do mercado financeiro.

Nem perto disso, a ver.

O estado da dívida brasileira, em janeiro de 2012, é estimado em 2,3 trilhões de reais. Desse montante, a dívida considerada “externa” acumula 516 bilhões de reais, compensada todavia por uma reserva internacional em dólares, equivalente a R$ 640 bi. Isso é bom? Em termos. Porque boa parte do saldo “externo” (relação entre dívida e reserva) se obteve através da emissão de títulos da dívida pública interna, tomados por emprestadores privados de “dentro”. Nas duas últimas décadas, a dívida foi por assim dizer interiorizada.

Os credores “internos” atualmente fazem jus a mais de R$ 1,8 trilhões do débito público. Esse é o bicho. Dá 41% do PIB. Que é muito, sem dúvida, mas ainda assim distante das maiores dívidas públicas do mundo. Um pouco maior que a argentina ou mexicana. Na Europa, os países estão endividados até a espinha: Grécia, Itália e Irlanda, os casos mais críticos, possuem dívidas públicas acima de 100% do PIB, em iminente insolvência. A dos Estados Unidos beira os 100% e a do Japão ultrapassa 200%, ainda que sejam estados mais solváveis que os europeus. Tampouco a corrente dívida interna é a maior da história do Brasil. Em 1994, no lançamento do Plano Real, ela correspondia a 20% do PIB. Sob a bandeira do combate à inflação, o governo FHC adotou uma política de sobrevalorização da moeda, com a estratégia da âncora cambial. Pra isso se sustentar, entre outras medidas, eram sistematicamente emitidos títulos da dívida pública a juros altíssimos, a fim de atrair moeda forte dos consultores, gestores e padrinhos do capital globalizado (aka mercados). Conquanto o neoliberalismo até hoje impute o endividamento aos investimentos públicos (previdência, funcionalismo, estatais, saúde, educação etc), — que seriam um “luxo” para a realidade brasileira, — sua causa principal foi a necessidade de lastrear o real mediante um permanente superávit primário. Como consequência, em 1999, a dívida interna chegou a 40% do PIB, e continuou subindo, proporcionalmente, até o pico próximo de 60%, em 2003, vindo a cair em ritmo constante para 50%, em 2006, e 43%, em 2009.

Considerando o total da dívida interna (R$ 1,8 trilhões) e uma taxa média de juros reais de 4,5% ao ano, — 11,0% da SELIC menos 6,5% da inflação/IPCA, — resulta dessa conta de multiplicação o valor de 81 bilhões de reais, para pagamento de juros pelo governo. Na prática, no entanto, são pagos juros acima da taxa SELIC. Isso acontece por causa do dispositivo do spread, isto é, uma margem flutuante ao redor da taxa básica. Demais, vários papéis não se baseiam pela SELIC — há os pré-fixados na emissão, os indexados por outras variáveis etc —, bem como os pagamentos vencem em datas dispersas pelo ano, e sucedem flutuações de várias naturezas em índices e mensurações, e ainda outros fatores menos significativos e não considerados. Vale então majorar a primeira conta de R$ 80 bi, digamos, em 25%. Computados os efeitos, que sejam R$ 100 bi, que fechemos em 100 bilhões de reais para o bem da argumentação. É um bom valor como ordem de grandeza do que é distribuído anualmente aos rentistas da dívida interna, como lucro real. O leitor repare que se aplicássemos juros nominais, não-corrigidos pela inflação, se chegaria a quase R$ 200 bi.

A nossa estimativa chegou a um percentual de 4,6% do orçamento da união (R$ 100 bi sobre R$ 2,2 tri), repassados a título de juros reais da dívida interna. As estimativas de mão mais pesada que se encontram pelas redes falam em R$ 160 bi (7% do orçamento). Apesar da imprecisão, dá pra se ter uma idéia que está em questão um valor bem inferior aos 47% (mal) interpretados do gráfico, embora ainda seja muitíssimo. Escandalosamente mais do que os 3,18% de previsão total para a educação. Cada redução de meio ponto percentual da taxa SELIC implica, por conseguinte, um corte de cerca de R$ 10 bilhões do lucro dos rentistas, —- essas pessoas muito concretas que jogam golfe, voam de jatinho e bebem uísques que até poderiam votar, e muito dedicadas à política, também tratadas sinedoquicamente por “mercados”. Não à toa o estardalhaço quando o Copom não decide exatamente como haviam combinado entre si, isto é, com seus parceiros pelos governos e bancos centrais.

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O que se pretendeu colocar com toda a matemática deste texto árido, além de polemizar com argumentos acometidos de esquerdismo?

Em primeiro lugar, como é fundamental para a esquerda dissecar e explicar a economia política de seu tempo, como Marx já propunha no século 19. Isto hoje passa por um entendimento mais global do sistema financeiro, ou melhor, dos processos de financeirização. Em vez de tentar glosar todos os acontecimentos, atrás da primeira opinião que confirme o que supostamente já se sabia; compreender e aprender a língua dos gaviões. Trata-se menos ainda de dançar ao redor da fogueira da crise mundial, se limitando a profetizar em tintas vermelhas o apocalipse econômico. A crise é lugar de disputa e pode ser torcida para qualquer direção. O capital não é uma entidade de sete cabeças sentada num trono de marfim, mas uma relação bastante epidérmica com a gente, constitutiva dos sujeitos e relações sociais, do dia a dia. É preciso se livrar dos vícios do economês e destrinchar explicações não-econômicas para a economia, com perspectivas mais arejadas, com pontos de fuga para uma outra política. Mais ou menos como propõe o filósofo Michel Foucault, pra quem a economia é antes de tudo “a ciência dos comportamentos”.

Afinal, não só a economia: a vida é financeirizada. Nesse sentido, os mecanismos e dinâmicas da dívida pública têm servido para socializar o débito. A dívida pública está no núcleo do processo de financeirização, cabeça a cabeça com o endividamento privado das famílias. Antes a questão da dívida externa praticamente induzia a esquerda às teorias da dependência e à agenda anti-imperialista, mas agora a primazia da dívida interna sugere que o colonizador nunca esteve tão dentro. O imperialismo se disseminou em uma cauda longa de micro-explorações mistificada pelo economês, num âmbito simultaneamente global, nacional e local. Uma nova ordem global, financeirizada e pós-imperialista. O que os filósofos políticos Antônio Negri e Michael Hardt chamam Império, no livro de mesmo nome. A financeirização faz a fronteira entre ricos e pobres, entre credores e devedores, interiorizar-se e aprofundar-se pelo tecido social. A disseminação de algum crédito e alguma renda a todos está chegando casada com uma socialização bem mais profunda da dívida. Pública ou privada, mas dívida, relação de poder que capitaliza o futuro para dominar o presente. E a partir da relação da dívida, por dentro de sua articulação política e comportamental, reproduz-se a divisão de classe entre os 99% e o 1% da população global. A revolução, de fato, não virá da economia.

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12 comentários para "Dívida Pública, verdades e mitos"

  1. Marcus disse:

    JC, não se pode dar voz a esses esquerdistas usuários de iPhone. Eles só absorvem aquilo que lhes convém. O sistema que eles tato sonham já se mostrou falido em diversas eras da civilização. A pergunta que deve ser feita é: Todos devem ter acesso a tudo? Se a resposta for sim, o que fazer com o resto do boi após a retirada do filé e da picanha? E com a classe econômica dos aviões, que passará a andar vazia, pois estarão todos na primeira classe? Os rentistas são pessoas inteligentes e que pensam no futuro, não só o futuro deles como o do restante da população pobre, pois viabilizam o desenvolvimento dos países emprestando seu suado dinheiro para os Governos utilizarem (conhecem a fábula do grilo e das formigas?). O problema é que de vez em quando um esquerdista caviar chega ao poder e enche os próprios bolsos até não caber mais, e na saída ainda coloca a culpa naquele que viabilizou o dinheiro.

  2. תוספי תזונה disse:

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  3. Adriana Silva Souza disse:

    Falou, falou e não disse nada mesmo. Quem é Bruno? Eu prefiro confiar em quem conhece bem a sistemática do governo que divulgou tais dados. A Fatorelli já foi convidada para fazer a auditoria the dívidas de outros países, como o Equador, pelo Presidente, viaja pelo mundo falando sobre isso. Eu só acredito no governo após a auditoria cidadã que é nosso direito. E eu não tenho partido.

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  5. JC disse:

    Segundo
    Nosso amigo matheus coloca um monte de numeros inveridicos desta tal Maria
    1-O Brasil não gastou 380 Bilhões Ou 36 % do orçamento
    Isto é uma confusão de numeros
    O Brasil arrecadou perto de 1 trilhão em impostos em 2011
    Mas sabe quanto é gasto para pagar a divida ??
    apenas o superavit fiscal , uns 127 Bi
    Sabe o que são os 380 Bi ??? è a necessidade de financiamento que são os juros( por volta de 240 BI) + os titulos que vencem – o dinheiro do superavit fiscal
    O que faz o governo ???
    Não paga os titulos que vencem , não paga a totalidade dos juros
    gasta 127 Bi com a divida e o resto 880 BI são gastos com a Maquina , e investimentos ,saude , educação etc..
    Portanto se o governo não pangasse um tostão para o mercado , sobraria apenas os 127 Bi que são 12, 7% (mais ou menos ) da arrecadação
    A esquerdalia , por ignorancia ou mal caratismo , ao invés de de falar a verdade , soma todo o juro e ainda os titulos que deveria ser pagos no ano ( mas são pagos com a colocação de outros titulos no mercado )
    2- A divida externa dos Governos é uns 60 Bilhões de dolares , o resto da divida de 282 Bi é de empresas privadas , e são elas que pagam os juros

  6. JC disse:

    O que se nota , nos comentarios , é a ignorancia ( ou ma fé ) da esquerdalia
    .
    Primeiro , o artigo fala que foi somado o amortização e Refinanciamento,
    aos juros
    Nosso amigo Matheus, pergunta sobre amortização , ma cala sobre refinanciamento ( por que sera ?? )
    Ora mais de 20 % da divida vencem todo ano , e ela é refinanciada ,portanto não sai um tostão do governo para isso
    Simplesmente são colocados novos titulos , no mesmo valor dos antigos.

  7. Matheus disse:

    Ao ver esse monte de equações no artigo, é até difícil entender porque o governo se esforça tanto para atingir superávits primários que superam os 2,5% do PIB, gasto que é utilizado para pagamento dos JUROS da dívida pública.
    Além disso, estudiosos no assunto estimam um gasto anual muito maior. Não se trata de um “meme” da internet, ao contrário do que o autor do artigo diz:
    http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=15085&cod_canal=41
    “IHU On-Line – No que se constitui a dívida pública brasileira?
    Maria Lucia Fattorelli – Hoje, a dívida pública brasileira é dividida em duas partes: externa e interna. A dívida externa estava em 282 bilhões de dólares em dezembro de 2009. Já a dívida interna estava em mais de dois trilhões de reais no mesmo período. Se somarmos as duas dívidas, chegamos perto de três trilhões de reais. Esta dívida está consumindo a maior parte dos recursos da União. No último ano, os gastos com a dívida consumiram 380 bilhões de reais, que correspondeu a 36% de todo o orçamento da União, sendo disparado o maior gasto. Enquanto isso, foram destinados em recursos 4,8% para a saúde e, 2,8% para a educação. A dívida pública brasileira está muito elevada, consumindo uma grande quantidade de recursos e deixa toda a sociedade sacrificada.
    Recentemente, o governo anunciou mais um corte de dez bilhões de reais para gastos públicos. Mas, enquanto isso, os juros estão subindo. É importante lembrarmos que a dívida pode ser um importante financiamento para o Estado, só que, no caso brasileiro e nas investigações da CPI, apuramos que ela é meramente de juros sobre juros. Desde o final da década de 1970, quando houve a alta unilateral das taxas internacionais, esta é uma dívida que cresce em função dos elevados juros. Muitas vezes, mesmo com muito sacrifício, não se chega a cumprir todo o pagamento dos juros, e uma parte deles vai se incorporando ao estoque.”

  8. Maurício disse:

    Um belo e prolixo relato para defender uma equação indefensável, na qual um Estado deve privilegiar uma “dívida financeira” em detrimento de sua dívida social. Precisamos urgentemente fugir desse suicídio econômico, mas como os governos são aliciados e corrompidos pelos setores mais vetustos, e nossa sociedade é ignara e passiva, fica muito difícil mudarmos essa realidade. Lembro quando o Nestor Kirshner ofertou ao FMI algo que parecia o Holocausto, para os economicistas dogmáticos como o missivista acima. E o governo argentino conseguiu melhorar não só o perfil da dívida, como em relação ao PIB e orçamento argentino. Capitalismo é risco. Ou era prá ser. Aqui, não. O risco é da sociedade, de se ver cada vez mais cativa dessa torpeza macroeconômica. O Brasil tem tradição em ser um país cuja mentalidade dominante é de subserviência ( o missivista provavelmente chamaria de “esquerdista”), que vive a ler tablóides e jornais cujos rabos estão muito bem presos pelos seus anunciantes banqueiros. Chamam-na gentilmente de “livre imprensa”.

  9. Jorge Santana disse:

    Não se pode esquecer do imposto cobrado em cima desse lucro, de 4,5%, que se altera conforme os prazos dos investimentos… Isso é dinheiro que volta para os cofres públicos… A conta ficaria mais ou menos assim:
    – Até 180 dias 11% (taxa Selic) menos a somatória de IPCA + IR = 11- ( 6,5 + 2,47) = 2,03 líquido a.a
    – De 180 a 360 dias = 11 – ( 6,5 + 2,2) = 2,3% a.a
    – De 360 a 720 dias = 11 – ( 6,5 + 1,92) = 2,58% a.a
    – Acima de 720 dias = 11 – (6,5 + 1,65) = 2,85% a.a
    Teríamos, caso TODOS os rentistas fossem acima de 720 dias (2 anos), um total de 51,3 BI do orçamento destinado aos rentistas… 36,5% a menos que o cálculo inicial, de 81 BI (desconsiderei o spread no cálculo, por não ter ciência de como funcionam seus cálculos – vc teria isso em mãos?).
    Abraços!

  10. Matheus disse:

    Falou, falou, falou e não disse nada. Por que as amortizações são excluídas do pagamento da dívida pública, se elas também são pagas pelos contribuintes? A idéia do gráfico é mostrar qual a porcentagem da arrecadação é transferida para o setor financeiro, via dívida pública. Se os fatos levam a crer que os governos de FHC, Lula e Dilma serviam à burguesia financeira, por que rejeitar essa conclusão? É claro que para um “negriano-hardtiano” é uma coisa terrível mostrar que um governo com discurso reformista na verdade socializa as dívidas, custos e prejuízos, e privatiza os lucros, postos nas mesas da negociações patrimonialistas entre os políticos e empresários que se veem como donos do Estado.

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