França, diversidade cosmética

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Sociólogo franco argelino sustenta: banido por princípios republicanos, racismo ressurge no dia-a-dia. Mas ele ressalta: revoltas árabes podem sensibilizar periferias europeias

Por Pedro Chadaverian, no Outra Economia

Encoberto sob o “véu” dos valores republicanos, o mito da diversidade francesa se dirige para uma encruzilhada. A extrema-direita desponta mais forte e perigosa do que nunca como opção eleitoral (Marine Le Pen investe na imagem de “Paz e Amor”). A Primavera Árabe, em estágio de impasse, coloca a questão migratória na Europa no olho do furacão, tornando-se como moeda de troca na formação de governo e incitação à xenofobia em debates eleitorais. O governo Sarkozy desponta como um dos artífices para delimitar a livre circulação de pessoas no Espaço Schengen. A crise econômica e o desemprego parecem estar longe de serem efetivamente combatidos.  De fato, a diversidade está longe de ter, em solo francês, e mesmo europeu, um peso similar aos três preceitos que passaram a caracterizar a sociedade moderna desde 1789.

 

Para abordar essa realidade e a possível desconstrução desse mito, o sociólogo franco-argelino El Yamine Soum, 32 anos, especialista em temas relacionados à diversidade e etnicidade foi entrevistado pelo professor de Economia da Ufscar (Universidade Federal de São Carlos) Pedro Chadarevian, que colaborou com Opera Mundi. Também especializado em questões raciais no mercado de trabalho, outros artigos e intervenções de Chadarevian podem ser encontrados em seu blog Outra Economia.

Soum é professor de Relações Internacionais no Instituto Internacional do Pensamento Islâmico em Paris. Ele também tem uma série de publicações em livros na França, Espanha, EUA e México. Também é co-autor, ao lado do sociólogo francês Vincent Geisser, de um livro sobre a diversidade na política (Discriminar para melhor Reinar, em português). É figura carimbada em intervenções na mídia e em conferências relacionadas ao tema. Trabalha também para programas de cooperação na área patrimonial e de turismo com vários países, entre eles: Mali, Chile e Vietnã. Segue a entrevista:

Com frequência, é dito que, na França, não existe racismo. Porém, a segregação racial residencial, assim como a do mercado de trabalho, é marcante no país. A diversidade é, então, um assunto do momento?

O racismo infelizmente permeia todas as sociedades e a França está longe de se ver livre desse fenômeno. A questão da diversidade – o que significa, em francês, dizer entre os dentes “árabe” e “preto” –, é um assunto do momento, mas, sobretudo, um assunto polêmico.

A campanha presidencial que se aproxima vai, certamente, reservar um grande espaço para esse tema, principalmente para a questão da presença muçulmana na França. É também uma excelente estratégia de distração: ocupando o espaço midiático com esses assuntos, uma parte da classe política francesa demonstra sua incapacidade em resolver os problemas dos franceses.

Ao contrário do que ocorre nos EUA e no Brasil, aqueles que sofrem racismo na França não têm um movimento nacional bem organizado. Como mobilizar os jovens provenientes da imigração na luta contra a discriminação?

Na França, a tradição republicana exige que não se fale de etnias ou de raças. É um mecanismo muito sutil porque, na verdade, os debates, ao mesmo tempo midiáticos, políticos e acadêmicos, são marcados pela etnização. Há muitos agentes que se mobilizam contra as discriminações, algumas associações que, por vezes, são trampolins políticos para os fundadores: o famoso “eu” por um nós.

Outros agentes se mobilizam de um ponto de vista econômico, tentando criar redes de apoio mútuo e treinamento. Depois, há as mobilizações de algumas instituições porque o direito europeu exige mais legislações novas sobre o assunto, essas são as diretrizes europeias transponíveis ao direito francês.

Enfim, há alguns anos, as empresas se envolvem na promoção da diversidade nas suas políticas por várias razões, geralmente econômicas e para melhorar a sua imagem. Acredito que são os agentes que mais atingem o público jovem, há uma série de agentes culturais, como os cantores, os rappers que denunciam a discriminação.

A batalha da constatação está ganha, temos um número considerável de estudos que demonstram a realidade e a persistência da discriminação no sistema francês. Resta agora encontrar soluções, o que não é uma tarefa fácil.

Arquivo pessoal

El Yamine Soum tem uma extensa bibliografia a respeito de temas como etnicidade e diversidade.

O risco de avanço da extrema-direita parece cada vez mais real na França, especialmente depois da crise econômica de 2008. Isso faz com que o caminho até a presidência fique mais difícil para a esquerda. Essa é realmente uma má notícia para os movimentos sociais de luta contra o racismo na França?

Os movimentos de luta contra o racismo são numerosos. Alguns, como o SOS Racisme, que é um satélite do Partido Socialista francês, não têm mais legitimidade na situação e, sobretudo, muitos agentes denunciaram seu vínculo com países estrangeiros! Há também o MRAP, mais estabelecido, mas um pouco velho em sua concepção.

Por fim, a luta contra o racismo foi paralisada pelas iniciativas que vieram de cima e querem ter controle sobre a juventude herdeira do império colonial francês. Hoje em dia, é muito difícil falar de movimentos sociais de luta contra o racismo, houve um esgotamento. Seria necessário supervisionar as evoluções daqui em diante. Há uma associação que tenta lutar contra os preconceitos que se chama Les Indivisibles (Os Indivisíveis), fundada por Rokhaya Diallo, comentarista da televisão francesa.

Podemos tentar estabelecer uma ligação entre o levante dos subúrbios na França (em 2005) e a Revolução do Jasmim no mundo árabe (2010-2011)? Os jovens árabes sofrem, dos dois lados do Mediterrâneo, com o desemprego, a repressão policial, a discriminação…

Sim, mas estamos em duas realidades diferentes. Na França, eu não tenho certeza de que a maioria dos rebelados era de árabes, alguns analistas falam de uma revolta plural, com um forte elemento de pessoas da África negra. Para além da questão étnica e racial, é, sobretudo, uma ruptura de geração que ocorre na França. Há o sentimento de que a juventude está quase abandonada pelos mais velhos que “patrimonializaram” a França, seja na política, na economia, no setor imobiliário, etc.

A revolta no mundo árabe está historicamente ligada à constituição do Estado de Israel. A qual ponto o advento da democracia na região poderá mudar a política ocidental para a Palestina?

A questão palestina revela uma cisão entre dois mundos. Não é por acaso se as prefeituras ricas da França ostentam seu apoio a Israel e as prefeituras mais pobres penduram o retrato de Salah Hamouri, um franco-palestino detido em prisões israelenses. Há mecanismos de identificação pelo mundo, porque essa questão é gritante no que se refere a injustiças e revela aquelas injustiças que nos tocam nas nossas sociedades.

Não acho que os dirigentes israelenses, como uma parte dos dirigentes europeus, desejem uma democratização na margem sul do Mediterrâneo e, no entanto, é o destino do mundo. Uma democratização dos países árabes colocará fim aos silêncios cúmplices ocidentais ou ainda à lógica de colocar países árabes sob tutela do Norte, principalmente para as questões energéticas.

No Brasil, como na Turquia, foi possível superar as ditaduras militares. São exemplos interessantes para os países árabes. Mesmo que, no momento, o Brasil seja tímido na diplomacia quanto a esse assunto.

Para voltar à questão palestina, a democratização dos países árabes irá colocar os dirigentes israelenses diante da História: a paz ou a busca da colonização e o desprezo do direito internacional.

Aliás, uma das primeiras experiências democráticas do mundo árabe veio da Palestina com a organização das eleições livres. Mas o resultado das urnas foi recusado imediatamente, e ainda recebeu uma mãozinha do Hamas.

A imprensa ocidental insiste no caráter “espontâneo” da revolta no mundo árabe. No entanto, sempre são necessários líderes e movimentos sociais organizados para que a ameaça ao poder estabelecido seja concreta. A esquerda e os novos nacionalistas árabes parecem ter um papel importante lá. Estamos diante do renascimento do “Nasserismo” revolucionário?

A herança de Nasser é controversa, principalmente por seu militarismo sem sucesso e sua má gestão da experiência da República Árabe Unida, entre 1958 e 1961, cujo saldo foi uma anexação egípcia da Síria. Por outro lado, ele colocou as bases de um orgulho árabe e acelerou a ideia de união dos povos árabes.

Nos movimentos de contestação, há sobretudo uma junção entre os militantes politizados, bem de esquerda, e do movimento social com pouca ideologia e slogans simples: “democracia”, “Fora Mubarak ou Ben Ali”, “fim da corrupção”, “respeito e dignidade”.

Existe, contudo, um sentimento árabe e de unidade nas situações difíceis e nas ditaduras. Os povos reagiram por mimetismo às revoltas, e a noção de ser árabe é bastante avivada de maneira virtual por meio das novas tecnologias e dos canais árabes.

As ideologias pan-árabe e pan-islâmica são encobertas em benefício de um engajamento pós-moderno, distanciado e simples em suas formulações.

A esquerda árabe e marxista foi em parte esmagada pelos islâmicos. Aliás, um certo número de militantes do islã político são antigos marxistas.

A França sempre impediu, por diferentes meios, um debate mais aprofundado sobre a condição socioeconômica dos seus negros, árabes e mestiços. Entretanto, existem alternativas e essas estatísticas mostram uma desigualdade racial impressionante. O que se pode afirmar concretamente hoje em dia em relação à demografia, à pobreza, ao desemprego da população não branca francesa?

Ao contrário da situação brasileira, na França é proibido estabelecer estatísticas com base em critérios étnicos ou religiosos. O passado da França de Vichy é muito presente para se ter um debate sereno sobre a questão.

Existem estudos com base nas variáveis de origens que demonstram a persistência da discriminação, principalmente para os árabes e negros da França. Podemos afirmar claramente que os homens árabes da França são sem dúvida muito discriminados nas esferas política e econômica.

Um estudo recente de Huges Lagrange, que demonstra uma ligação entre a origem e a delinquência, gerou polêmica. Ele afirma que os negros, principalmente do Mali, estão mais propensos a se tornarem delinquentes. Esse estudo, cujos resultados estão sujeitos à polêmica, parte de uma análise das estruturas familiares do oeste da África.

O que é certo é que ainda é muito comum a polícia abordar mais esses imigrantes do que outras pessoas, com base na aparência.

A diversidade se tornará um dia um valor republicano da mesma ordem que a igualdade, a fraternidade e a liberdade? Quais são as políticas de discriminação positiva na França atualmente?

Não penso que isso seja um progresso, pois, no momento, a noção de diversidade põe em guetos as populações árabe e negra porque é uma diversidade cosmética e de comunicação. Isso cria uma subcategoria de cidadãos que lembra os muçulmanos na Argélia colonial, onde eles tinham um status inferior ao dos cristãos e judeus.  Seria necessário haver um comportamento e discursos mais sólidos sobre as discriminações.

Quanto à discriminação positiva, é difícil porque a constituição afirma no seu primeiro artigo: “A França garante a igualdade perante a lei de todos os cidadãos sem distinção de origem, raça ou religião”. A partir dessa constatação, é necessário inovar e contornar esse espírito. Em primeiro lugar, acho que é punindo os discursos racistas e estigmatizantes de uma parte da elite política e midiática francesa que poderemos avançar.

Karl Marx dizia: “Quando, no topo do poder, toca-se violino, como não esperar que aqueles que estão embaixo se ponham a dançar?”

Há alguma chance de que a Primavera Árabe contamine o debate sobre a integração social e econômica dos jovens provenientes da imigração no interior da Europa ocidental?

Há dois níveis de análise. No nível político, instrumentalizamos essa questão dizendo “atenção à ameaça islâmica e às ondas de imigrantes que devem jorrar em direção a nós na Europa”. Mais ainda, uma parte das elites políticas continuou sustentando as ditaduras agonizantes!

No nível da base e das populações árabes, é uma visão positiva de seus países de origem. Assistimos a diversos debates, conferências, animação nos blogs etc. Assistimos também a uma efervescência política.

Além disso, no nível europeu, quando vemos a situação dos jovens na Grécia, em Portugal e na Espanha, isso levanta verdadeiras questões sobre as elites políticas europeias e poderíamos testemunhar revoltas, se a crise econômica e de gerações crescer.

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