Povos originários diante do vírus, mortes e destruição

Novo relatório revela um 2020 trágico: 182 indígenas foram assassinados. Invasões a territórios aumentaram 137% em relação a 2018. Ao menos 900 morreram por complicações da covid. Cimi denuncia “tática de guerra” de Bolsonaro

A comunidade Huni Kuī do Centro Huwá Karu Yuxibu, em Rio Branco, no Acre, teve 100 de seus 200 hectares queimados em 2019
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Por Marco Weissheimer, no Sul21

O segundo ano do governo de Jair Bolsonaro foi um período trágico para os povos indígenas, com o agravamento de um cenário de mortes, violência, violação de direitos, territórios e vidas. Essa é a conclusão do Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil (dados de 2020), divulgado nesta quinta-feira (28) pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). O relatório define 2020 como um ano trágico para os povos originários do país: “A grave crise sanitária provocada pela pandemia do coronavírus, ao contrário do que se poderia esperar, não impediu que grileiros, garimpeiros, madeireiros e outros invasores intensificassem ainda mais suas investidas sobre as terras indígenas”. O documento foi lançado pelo Cimi em um evento online que está disponível no Youtube.

A responsabilidade do governo Bolsonaro pela constituição deste cenário é uma mistura de ação (estimulando atividades predatórias em territórios indígenas) e omissão em estabelecer um plano coordenado de proteção às comunidades indígenas, em meio à pandemia de covid-19. Essa mistura de omissão, desinformação e negligência por parte do governo Bolsonaro “representou uma verdadeira tragédia para os povos indígenas”, aponta o relatório. “Em muitos casos, o vírus que chegou às aldeias e provocou mortes foi levado para dentro dos territórios indígenas por invasores que seguiram atuando ilegalmente nestas áreas em plena pandemia, livres das ações de fiscalização e proteção que são atribuição constitucional e deveriam ter sido efetivadas pelo poder Executivo”, denuncia o documento elaborado pelo Cimi.

Segundo o Relatório, em 2020, os casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio” aumentaram, em relação ao número (que já era alarmante) registrado no primeiro ano do governo Bolsonaro. Foram 263 casos desse tipo, em 2020, contra 256 em 2019 e 111 em 2018. Em relação a 2018, o acréscimo foi de 137%. Esses invasores, em geral, aponta o documento, são “madeireiros, garimpeiros, caçadores e pescadores ilegais, fazendeiros e grileiros, que invadem as terras indígenas para se apropriar ilegalmente da madeira, devastar rios inteiros em busca de ouro e outros minérios, além de desmatar e queimar largas áreas para a abertura de pastagens”. Na avaliação do Conselho Indigenista Missionário, esses grupos e indivíduos agem com a “certeza da conivência– muitas vezes explícita – do governo, cuja atuação na área ambiental foi sintetizada pela célebre frase do então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles: era preciso aproveitar a pandemia para “passar a boiada” da desregulamentação”.

O caso dos povos Yanomami, Ye’kwana e Munduruku, cita ainda o Relatório, exemplifica a estreita relação entre a ação dos invasores, a omissão do Estado e o agravamento da crise sanitária. Na Terra Indígena Yanomami, “onde é estimada a presença ilegal de cerca de 20 mil garimpeiros, os invasores devastam o território, provocam conflitos, praticam atos de violência contra os indígenas e, ainda, atuam como vetores do coronavírus – num território onde há também a presença de indígenas em isolamento voluntário”.

Demarcações de terras indígenas estão paralisadas no governo Bolsonaro (Foto: Tiago Miotto/Cimi)

Em muitas aldeias, destaca o documento, a pandemia levou as vidas de anciões e anciãs que eram verdadeiros guardiões da cultura, da história e dos saberes de seus povos, representando uma perda cultural inestimável. Segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), mais de 43 mil indígenas foram contaminados pela Covid-19 e pelo menos 900 morreram por complicações decorrentes da doença em 2020.

O “passar da boiada” materializou-se, segundo o relatório, em medidas como o Projeto de Lei (PL) 191, apresentado pelo governo ao Congresso Nacional em fevereiro de 2020, e a Instrução Normativa (IN) 09, publicada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em abril. “Enquanto o PL 191/2020 prevê a abertura das terras indígenas para a mineração, a exploração de gás e petróleo e a construção de hidrelétricas, entre outras atividades, a IN 09/2020 passou a permitir a certificação de propriedades privadas sobre terras indígenas não homologadas – o que inclui terras em estágio avançado de demarcação e áreas com restrição de uso devido à presença de povos isolados”.

Em sobrevoo realizado em maio de 2020, em Roraima, Greenpeace registrou invasão de garimpeiros na Terra Indígena Yanomami. (Foto: Chico Batata/Greenpeace)

Assassinato de indígenas

O documento do Cimi também chama a atenção para o considerável aumento dos assassinatos de indígenas no Brasil. “Em 2020, 182 indígenas foram assassinados – um número 61% maior do que o registrado em 2019, quando foram contabilizados 113 assassinatos”. “Embora nem todos os tipos de violência tenham apresentado aumento em relação a 2019, acrescenta o relatório, o cômputo geral das categorias ‘violência contra a pessoa’ e ‘violência contra o patrimônio indígena’, em 2020, foi o maior dos últimos cinco anos. No mesmo período, os casos de ‘violência por omissão do poder público’ registrados em 2020 só foram menores que os de 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro”.

Em 2020, os dados de “Violência contra a Pessoa”, sistematizados no Relatório, foram os seguintes: abuso de poder (14); ameaça de morte (17); ameaças várias (34); assassinatos (182); homicídio culposo (16); lesões corporais dolosas (8); racismo e discriminação étnico cultural (15); tentativa de assassinato (13); e violência sexual (5). Os registros totalizam 304 casos de violência praticadas contra a pessoa indígena em 2020, contra 277 casos em 2019. Os estados com o maior número de assassinatos de indígenas em 2020, segundo os dados obtidos junto à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e a secretarias estaduais de saúde, foram Roraima (66), Amazonas (41) e Mato Grosso do Sul (34).

O garimpo avança de modo devastador na Terra Indígena Munduruku, impactando o povo, os rios e a floresta, que foi desmatada em mais de 240 hectares apenas entre os meses de janeiro e abril de 2020, um aumento de 57% relação ao mesmo período do ano anterior. (Foto: Marcos Amend/Greenpeace)

Com base na Lei de Acesso à Informação (LAI), o Cimi também obteve da Sesai dados parciais de suicídio e mortalidade na infância indígena. Em 2020, foram registrados 110 suicídios de indígenas em todo o país. Os estados do Amazonas (42) e Mato Grosso do Sul (28) registraram as maiores ocorrências. Em 2019, foram registrados 133 suicídios. Ainda segundo os dados da Sesai, foram registrados 776 óbitos de crianças de 0 a 5 anos em 2020. Também aqui os estados com maior número de registros foram  Amazonas (250 casos), Roraima (162) e Mato Grosso (87). ‘Tática de guerra contra os povos indígenas’

“É sempre com tristeza e pesar que o Cimi faz essa denúncia. É mais um momento de angústia onde a gente tenta colocar para fora os dados que recebemos e as angústias dos povos que chegam até nós. Nosso objetivo é chamar a atenção dos poderes e da sociedade para que as invasões e esse processo genocida sejam paralisados”, disse Roberto Liebgott, coordenador do Cimi Sul, no ato de lançamento do relatório. Para Liebgott, o governo brasileiro adotou uma espécie de tática de guerra contra os povos indígenas. “A violência neste governo vem sendo padrão na relação que se estabelece com os povos indígenas. A impressão que fica é que o Estado que, anteriormente, era compelido a promover ações de prevenção e fiscalização, mesmo que com omissão e negligência, hoje age no sentido contrário. Age para incentivar, promover e até financiar a violência contra os povos indígenas. Ele incita a prática de crimes contra o próprio patrimônio, uma vez que as terras indígenas são patrimonio da União. É uma antipolítica que a cada dia vai promovendo um pouco mais o genocídio final”, denunciou.

Roberto Antonio Liebgott, coordenador do Cimi Sul. (Foto: Joana Berwanger/Sul21)

A denúncia divulgada nesta quinta-feira, acrescentou o coordenador do Cimi Sul, está embasada em um conjunto de dados e informações que foram recolhidas dos prórpios povos indpigenas, de instituições públicas como o Ministério Público Federal e secretarias estaduais. “A covid acabou virando uma porta aberta para que as invasões se intensificassem. Nunca se invadiu tanto territórios indígenas. A cada dia cada vez mais territórios foram sendo invadidos. 263 terras indígenas sofreram invasões de diferentes tipos, via garimpo ilegal, desmatamento ou loteamento ilegal de terras. A covid também se intenfisicou dentro dos territórios pela abertura sistematica das regras das instruções normativas. Há um movimento dentro do Estado para corroer os direitos indígenas. Tivemos 900 mortes pela covid em um ano. A pandemia, além de ter levado vidas pelo contágio dos vurus, abriu espaço para que invasores cometessem outros tipos de crimes. Ao todo, foram 182 assassinatos de indígenas em 2020. Esses dados demonstram que os povos indígenas estão sendo atacados como se o governo brasileiro tivesse lançado uma guerra contra eles e seus direitos”, concluiu Roberto Liebgott.

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