Marginais numa literatura que precisamos amar

O ar humano, demasiado humano, de Charles Bukowski está presente na estética particular de autores como Wesley Barbosa e Paulo Junior, na lateral esquerda da produção editorial brasileira

wesley barbosa

Wesley Barbosa autografa “O diabo na mesa dos fundos”. Livro foi o quinto publicado pela editora Selo Povo, da Editora Literatura Marginal (EML), do Ferréz. O autor já está trabalhando na sua segunda obra.

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Por Bruno Cirillo

Já dizia mestre Cândido, parafraseando Drummond: “É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.” A literatura brasileira, vista pelo grande crítico como “galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas”, só pode ser amada pelos brasileiros, porque “se não o fizermos, ninguém o fará por nós”.

Os livros de contos de Wesley Barbosa (O diabo na mesa dos fundos) e Paulo Junior (São Bernardo sitiada) são uma boa amostra do que tem sido feito ao largo das grandes editoras. Impressos com a insígnia de casas jovens, ambos trazem vozes das ruas, a linguagem afiada dos botecos, das esquinas, da prosa mais corriqueira e desbocada, ignorando e rejeitando, por princípio estético, tons eruditos ou cosmopolitas. Se Lima Barreto retratou a hipocrisia do seu tempo, também objeto de estudo de Machado de Assis, este mais sutil, os cronistas da literatura marginal de hoje em dia trabalham com o resultado dessa hipocrisia: violência e morte.

Barbosa escreve para o seu tempo (contos curtos, concisos e brutais), do seu lugar (a periferia de São Paulo), com personagens extremamente realistas. Lúcida voz que surge, já na 7ª série, de uma escola pública de Itapecerica da Serra, estranhado por todos os amigos, solitário, transitando entre a sala de aula e a biblioteca. “O ato de escrever: matar um acadêmico por dia, uma forma de me manter vivo e controlar minha loucura por meio das palavras”, explica. Numa época em que o amadorismo literário se embaraça em prosas fragmentadas, egocêntricas e às vezes incompreensíveis, revelando autores frágeis e deprimidos, Barbosa é como o arbusto que resiste no meio de um cruel temporal.

dmfSeu primeiro conto, “Parada para o almoço”, engancha de cara o leitor. Um homem elegante oferece pagar o almoço para o rapaz franzino, sem saber que ele é, na verdade, o dono do restaurante. Com a sensibilidade aguçada e o fator camaleão dos escritores, inclusive no desenvolvimento do eu lírico feminino, quando escreve em primeira pessoa como se fosse “A rainha da zona”, Barbosa mantém o fôlego até o final do livro. Boa parte do que se lê pode ser interpretado não como obra individual, mas um coletivo encarnado nas letras. O conto que dá o título é uma horrenda história de assassinato, para lembrarmos que as coisas vão mal.

“A maioria das histórias, dos contos de O diabo na mesa dos fundos, são memórias da infância, das leituras dos filósofos e romancistas”, conta Barbosa, que tem predileção por Dostoievski e considera Ulisses, da Odisseia, como o seu primeiro herói. “Aprendi a admirar muitos escritores e guardar seus nomes na memória”, conta o autor em “Os escritores me criaram”:

– Vadio! – gritavam. – Vadio! Vai trabalhar.

Escrito ao longo de seis meses, em 2012, o livro de Barbosa foi o quinto publicado pela editora Selo Povo, segmento da Editora Literatura Marginal (EML), do Ferréz. O autor já está trabalhando na sua segunda obra.

O professor de literatura brasileira contemporânea na Sorbonne, Leonardo Tonus, lembra que o termo literatura marginal foi criado em manchete da revista Caros Amigos, em 2011, sob curadoria do Ferréz. “Mais do que uma questão estética, esta terminologia expunha na época a dimensão social e simbólica de uma produção cultural excluída do campo literário nacional”, ele diz, citando a estética hiperealista como característica fundamental dessa vertente, que ganhou força com a popularização dos saraus na periferia de São Paulo a partir dos anos 1990. “É uma literatura voltada cada vez mais para a cotidianidade do sujeito que também se expressa por uma escolha linguística menos acadêmica, rompendo com padrões eurocêntricos”, acrescenta.

São Bernardo sitiada

As editoras Edith e Nós, em uma coedição, lançaram na última Festa Literária de Paraty (Flip) o livro de contos do jornalista Paulo Junior, vencedor do Prêmio Toca de Literatura 2017, São Bernardo sitiada, que estará disponível para venda a partir deste mês. A história do título, logo no início, revela o talento do autor para metáforas, descrevendo um cenário brutal de maneira abstrata, recorrendo a cores, texturas e imagens aleatórias para expressar o ambiente em que se encontra. O leitor precisa ter o mínimo de sensibilidade poética se quiser extrair dali os sentidos mais profundos. Esse recurso estilístico é menos utilizado nos outros contos, de uma estética mais concreta.

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Paulo Junior escreveu parte das histórias em oficinas com o escritor Ronaldo Bressane, autor das orelhas do livro – oficinas que Junior reconhece como emuladores da escrita do anfitrião -; a outra parte foi criada em meio a reuniões com outros escribas sob as asas de Marcelino Freire, o poeta pernambucano. “Nunca tinha levado a sério a ideia de oficinas de escrita, só de pensar naquela turma competindo quem lê Hemingway no original ou qual vai ser a primeira intervenção onde alguém vai dizer que aquilo é meio, sei lá, kafkiano”, ironiza ele em um dos contos, quando conta que resolveu aderir aos cursos após um episódio de fracasso amoroso.

Uma das qualidades do autor é a capacidade de acelerar e diminuir o tempo das narrativas, revelando um apego pela forma, sem perder jamais as sacadas lúdicas e o ritmo quase falado em cenas que poderiam, na pena de outro autor, se prolongar em detalhes e descrições mais densas, precisas e detalhistas: “A rua das Estribeiras parece a perna ralada de um motoboy que caiu na marginal.” Sua clara intenção é passar sensações suburbanas, e não fazer tricô à moda do século 19.

Assim como em O diabo na mesa dos fundos, roubos e assassinatos são recorrentes em São Bernardo sitiada. Por exemplo, em “A última cena”, dois ladrões ficam presos em um elevador enquanto a moreninha do 12 trepa com o surfista chapado do 34 nas escadas do prédio. Eles são alvejados por um policial que também morre baleado na troca de tiros. “Moreninha goza de susto. O surfista, pau pra fora, tropeça no conhaque antes de chegar à cena do crime.” Metalinguagem: a história vira script de teatro nas mãos da moreninha. Ela fica famosa, mas somente na sua própria imaginação.

O melhor conto do livro ficou pro final. Linda, indubitável referência à Linda King, mulher do Bukowski, rouba a navalha criminosa dos outros contos e deixa um corte ainda mais profundo no peito do narrador. É quase como se ali estivesse a verdadeira justificativa para o trabalho de escritor. Ali também Paulo Junior mostra todas as frustrações vividas por jornalistas, escritores, enfim, toda a patuleia da escrita sem retaguardas. O velho Buck vem à tona, escancarado: o heroísmo está no aprendizado dos percalços suburbanos e na mais inflexível dureza editorial. Pra piorar, uma mulher despedaça o coração de quem recolhe suas lembranças como se fossem água escorrendo pelos dedos, irreversível. E o Palmeiras apanhando no campeonato – Linda era corintiana.

O amor é um cão dos diabos, mas rende boas páginas.

Antes de morrer, neste ano, Antonio Cândido declarou que não lia nada novo havia vinte anos. Ele preferia os autores consagrados. Talvez quisesse dizer que devemos estar atentos aos romances para entender que a grande literatura pretende ser imortal. Não à maneira de um arbusto em chamas, mas como árvore capaz de atravessar os séculos, em nome da raça humana. “Cada geração tem o seu dever. O nosso dever era político. E o dever da atual geração? Ter saudade. Vocês pegaram um rabo de foguete danado.”

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