Jirau: a surpreendente revolta dos peões

Esquecidos pela esquerda e pelos ambientalistas, operários rebelaram-se por direitos e dignidade. Eles não usam black-tie – mas frequentam o Twitter e o Facebook. Por Cesar Sanson, no Cepat

O maior canteiro de obras do país, localizado no sítio do Jirau, cidade de Porto Velho em Rondônia, na selva amazônica brasileira, ardeu em chamas no dia 15 de março e em poucas horas virou cinzas. A destruição do canteiro de obras foi resultado de um levante operário. 22 mil trabalhadores estavam envolvidos na construção da usina que forma o complexo hidrelétrico do Madeira.

Os acontecimentos em Jirau são significativos porque é a maior obra em andamento do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC e síntese do modelo desenvolvimentista que reedita o projeto de um Brasil grandioso como à epoca dos governos de Getúlio Vargas (1930-1945), Juscelino Kubitschek (1955-1960) e o período militar (1964-1985). Um modelo baseado em grandes obras, sobretudo de exploração energética com vistas a suprir o gigantismo consumista de energia de uma nação emergente exportadora de commodities.

Jirau é significativo por outro aspecto, situa-se na Amazônia legal, região em que se desbrava a última fronteira do capitalismo brasileiro. É na Amazônia legal que se trava a luta para amansar os grandes rios – Madeira, Xingu, Tapajós, Teles Pires – e sujeitá-los ao projeto desenvolvimentista. Jirau, nessa perspectiva, também é importante porque é revelador de uma concepção de desenvolvimento que dá as costas para a questão ambiental. Jirau é um filme já visto – Itaipu, Balbina, Tucuruí – e antecipa Belo Monte.

A questão, porém, mais impressionante de Jirau é a questão social. A explosão da revolta operária contesta o modelo do Brasil moderno. Direitos desrespeitados, truculência e autoritarismo das empreiteiras, sofrimento imposto aos trabalhadores é o outro lado da história que ninguém viu e percebeu. Empreiteiras, sindicatos e governo ficaram surpresos com a revolta que paralisou o acelerado andamento do projeto.

Jirau se insere na lógica da modernização conservadora e manifesta todas as contradições do país, ou seja, por um lado revela a pujança e o vigor do crescimento econômico, por outro, produz no seu entorno exploração e miséria. Jirau diz respeito ao Brasil potência – 8º PIB da economia mundial e o 73º IDH – incapaz de mitigar os efeitos do seu gigantismo.

Em Jirau a questão social e a questão ambiental estão relegadas em segundo plano. Jirau coloca em xeque o modelo desenvolvimentista e também o governo de esquerda de Dilma Rousseff. Jirau reproduz os mesmos erros dos militares onde o social não entra e menos ainda o ambiental.

Jirau interpela também o movimento social, a esquerda militante, as pastorais, os sindicatos, os ambientalistas. A repercussão dos acontecimentos de Jirau foram poucas e esparsas. Os sites de organizações sociais, dos movimentos, das ONGs pouco falaram de Jirau. A revolta operária em Jirau também pouco sensibilizou os ambientalistas e suas organizações. Céleres em denunciar, organizar manifestos e repercutir agressões ao meio ambiente, as organizações ambientalistas pouco falaram da questão social de Jirau. Percebe-se uma grande dificuldade do movimento ambientalista em conectar os temas sociais aos ambientais. A abordagem faz-se geralmente de forma isolada. Compreender, o que acontece em Jirau auxilia na compreensão do que vem se transformando o Brasil e contribui para uma análise autocrítica da esquerda.

A questão social. Jirau vivia sob tensão reprimida

Milhares de vagas do canteiro de obra da usina hidrelétrica de Jirau foram preenchidas por migrantes que receberam promessas de “gatos” – agentes que intermediam mão-de-obra. As construtoras recorrem às mesmas práticas de recrutamento de trabalhadores dos tempos do “Brasil Grande”, nos anos 1970, quando o País viveu um surto de desenvolvimento econômico no período do regime militar.

Porém, os “gatos” dos anos 2000 sofisticaram os mecanismos de exploração, cobrando taxa para garantir o emprego e responsabilizando os próprios trabalhadores pelo pagamento do seu deslocamento e alojamento até a contratação definitiva. Milhares começaram trabalhando sentindo-se enganados. O ganho médio de um trabalhador de Jirau gira em torno de R$ 1.000,00.

No canteiro de obra surgiram outros problemas: não pagamento de horas extras; falta de pagamento de benefícios e participação dos lucros; diferenciação de salários entre as empreiteiras; truculência dos seguranças; falta de pagamento da “hora itínere” – tempo gasto pelo trabalhador sem alojamento para chegar a um local de trabalho distante; custos alto de medicamentos; desrepeito ao cumprimento da “embaixada” – período em que o trabalhador visita a família, entre outros. Uma disputa entre sindicatos ligados à CUT e à Força Sindical também teria contribuido na deflagração dos conflitos.

A luta por respeito e dignidade

A revolta de Jirau, entretanto, não se deu apenas por melhores condições de trabalho e salários. Relatos colhidos pelo Ministério Público do Trabalho de Rondônia dão conta de que parte importante das reivindicações dos trabalhadores é por respeito e dignidade. Entre as reclamações ouvidas pelo Ministério do Trabalho encontram-se:

1 – Fim da truculência de seguranças e encarregados – xingamentos, empurrões, cárcere privado temporário;

2 – Tratamento respeitoso aos trabalhadores que chegarem aos alojamentos alcoolizados. A dependência de álcool é vista como uma doença;

3 – Respeito na relação entre o “sala fria” e o ”peão”, sem assédio moral. Em Jirau, “sala fria” é o funcionário que trabalha em salas com ar-condicionado;

4 – Pagamento por “hora itínere” – o tempo de viagem para canteiros de obras fora do perímetro urbano (só para quem não mora em alojamentos).

5 – Serviços eficientes nos refeitórios, para evitar que o tempo da fila do bandejão não consuma boa parte do período do almoço. Refeições adequadas e alojamentos higiênicos;

6 – Garantia aos que trabalham em locais isolados e distantes de casa do pagamento e do cumprimento da “embaixada” – período em que o trabalhador visita a família;

7 – Cumprimento das promessas feitas pelo agenciador de trabalho;

8 – Pagamento de hora extra;

9 – Pagamento de cesta básica que leve em conta os preços do comércio local;

10 – Indicação de representantes da empresa para ouvir denúncias contra outros funcionários.

Muitas das reclamações relacionam-se às exigências por respeito. As novas gerações de trabalhadores são do tempo da universalização do ensino e das febres das lan houses e do celular. Ligados de alguma forma ao “mundo” de jovens de outras classes sociais e lugares por meio da Internet e do celular, demonstram personalidade e consciência de seus direitos. A diferença dos “peões” dos anos 1990 manifesta-se também no orgulho de se vestir bem.

O caos social no entorno de Jirau

A questão social de Jirau não se resume aos problemas vivenciados no canteiro de obras, extrapola para os seus arredores. A região das obras das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, em Rondônia, registra uma explosão de criminalidade e de casos de exploração sexual de crianças e adolescentes. O aumento dos problemas supera o ritmo do crescimento populacional.

“Jirau é um sinal de alerta ao governo e seus empresários”, diz nota da Aliança dos Rios da Amazônia, composta pelos Movimento Xingu Vivo para Sempre, Aliança Tapajós Vivo, Movimento Rio Madeira Vivo e Movimento Teles Pires Vivo. Segundo os movimentos, “Jirau concentra todos os problemas possíveis: em ritmo descontrolado, trouxe à região o ‘desenvolvimento’ da prostituição, do uso de drogas entre jovens pescadores e ribeirinhos, da especulação imobiliária, da elevação dos preços dos alimentos, das doenças sem atendimento, e de violências de todos os tipos”.

Empreiteiras, governo e sindicatos. Reação tardia

As empreiteiras, o governo e os sindicatos supreenderam-se com a revolta em Jirau. Não esperavam os acontecimentos e depois de uma tentativa de desqualificar o caráter da rebelião de lutas por direitos, correm agora atrás do prejuízo. A procura por soluções rápidas não é apenas por sensibilidade para com a questão social. O governo teme sobretudo que Jirau repita-se em outros canteiros de obras do PAC. Destaque-se que 80 mil operários da construção civil estavam parados no mês de março.

Pacto pelo PAC

Temendo novas rebeliões, o governo passou a articular uma agenda preventiva. Articulou uma reunião com as centrais sindicais, empresas concessionárias e Ministério Público do Trabalho para tentar chegar a um pacto e impedir um colapso no principal programa de investimentos do governo. A grande preocupação do governo é com a proximidade da Copa do Mundo e das Olimpíadas, daí a necessidade de estabelecer regras mínimas para as grandes obras a serem cumpridas pelas empreiteiras.

 

Revolta de Jirau não sensibiliza esquerda e ambientalistas

O pouco interesse que a revolta de Jirau provocou no debate da esquerda brasileira também é reveladora que parte dessa esquerda pensa da mesma forma que o governo. Setores majoritários da esquerda acreditam que o crescimento econômico é a varinha de condão para a resolução de todos os problemas. Particularmente da pobreza. A equação é conhecida. O crescimento econômico produziria um círculo virtuoso: produção-emprego-consumo.

Essa esquerda é tributária de uma intepretação marxista que se aproxima do liberalismo. Ambos – marxismo e liberalismo – bebem na fonte da racionalidade produtivista que vêem a natureza como fonte inesgotável de crescimento econômico. Essa concepção não se coaduna mais com a emergência da crise climática.

Parte da esquerda não se dá conta de que embora a sociedade industrial ainda seja preponderante, a essência da forma de organizar a sua produção é empurrada cada vez mais para a periferia do núcleo propulsor do novo capitalismo – a economia do imaterial, a new economy, onde a biodiversidade assume uma nova dimensão.

Os ambientalistas, por outro lado, também deram pouca atenção para os acontecimentos de Jirau. Diferentemente de determinada esquerda que olha prioritariamente a questão social, muitos ambientalistas têm olhos apenas para a questão ambiental. Como a revolta de Jirau foi sobretudo uma questão social, não se viu as organizações ambientalistas repercutirem e se posicionarem sobre os fatos. Fosse um desastre ambiental que tivésse ocorrido em Jirau, qual teria sido a postura dos ambientalistas?

Se é um fato que a esquerda tradicional não conecta o social com o ambiental, também é um fato que parcela significativa do movimento ambientalista não articula o ambiental com o social.

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Cesar Sanson é pesquisador do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT.

 

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Um comentario para "Jirau: a surpreendente revolta dos peões"

  1. JULIO disse:

    Otima matéria
    divulguem muito mesmo
    abcs
    jb

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