Por que lutam os estudantes chilenos

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Nova manifestação maciça marcada para hoje, em Santiago. Em pauta, reverter a privatização e mercantilização do ensino, adotadas por Pinochet e mantidas nos governos civis

Por João Peres, na Rede Brasil Atual

São dias pouco agradáveis para o presidente do Chile, Sebastián Piñera. Além de ter sido obrigado a anunciar medidas para tentar frear os movimentos, ele enfrenta, nesta segunda-feira (11), protestos dos trabalhadores do setor mineral, principal atividade econômica nacional. Os operários querem garantias de que não haverá privatização da Codelco, a estatal do cobre.

O momento coloca em xeque a visão de um “Chile-maravilha”, comprada por parte da sociedade brasileira e dos países ricos. Os estudantes querem colocar a nu um sistema educacional que consideram desigual e excludente.

“O crescimento do mercado de educação superior fez com que aparecessem muitas diferenças entre os estudantes e entre as instituições”, afirma Germain Dantas, presidente da Federação de Estudantes da Universidade Federico Santa Maria, uma instituição privada de Valparaíso, e integrante da Confederação de Estudantes do Chile. “Há um uso maciço de recursos que não assegura a qualidade.”

Ele refere-se ao sistema adotado durante a ditadura de Augusto Pinochet (que governou de 1973 a 1990). No início da década de 1980, o governo decidiu promover a abertura ao modelo privado de educação. A visão era de que a criação de uma rede particular forte provocaria uma melhoria das escolas públicas. A lógica era simples: receberiam mais financiamento as unidades que conseguissem atrair mais estudantes, supondo-se que uma quantidade maior seria a consequência de um ensino de mais qualidade.

Os alunos passaram a escolher. Se quisessem seguir em uma escola pública, poderiam. Se quisessem migrar ao ensino privado, receberiam uma espécie de vale-educação, ou seja, a escola é subsidiada por cada estudante que recebe. “Em vez de funcionar como um instrumento para acabar com a desigualdade, a educação se transformou em um elemento para reproduzi-la”, lamenta Jaime Gajardo, presidente do Colégio de Professores do Chile, entidade que reúne 100 mil docentes de todos os níveis educacionais.

No sistema universitário, a situação se complicou ainda mais. Tanto nas instituições públicas quanto privadas é preciso pagar matrículas e mensalidades. Os juros fazem com que as dívidas, que inicialmente vão do equivalente a R$ 10 mil a R$ 15 mil, atinjam valores quatro ou cinco vezes maiores. Até esta semana, mesmo quem perdia o emprego deveria seguir pagando o crédito educacional.

Herança

Esta é uma das questões centrais: a Concertação, aliança de partidos que governou o Chile da redemocratização até o ano passado, não fez esforços para reformar o sistema. Pelo contrário, criou medidas na tentativa de aperfeiçoá-lo, acreditando que juros um pouco mais baixos ou um número maior de bolsas resolveriam a questão. “Hoje em dia estamos vendo as consequências disso. Você reforma algumas coisas, mas não muda o substancial. Ao não mudar o substancial, os problemas remanescentes explodem, afloram inevitavelmente”, diz Gajardo.

A conta que hoje se cobra foi apresentada pela primeira vez em 2006, quando centenas de milhares de estudantes secundaristas foram às ruas, na chamada Revolta dos Pinguins. O que se queria era o fim da municipalização do ensino, o fim do lucro nos colégios privados, a gratuidade da prova de seleção universitária e a anulação da lei do período Pinochet, que criava as várias categorias de escolas. A presidenta Michelle Bachelet aceitou convocar uma comissão que, no fim das contas, não deu espaço às reivindicações centrais dos jovens.

O movimento volta agora e, segundo lideranças da mobilização, vê com total descrédito uma solução negociada entre Executivo e Legislativo. “Isso não terá solução na política tradicional. Estamos reivindicando uma série de saídas que não estão previstas na política tradicional, como o plebiscito, que são medidas mais democráticas e que incluem a sociedade”, avisa o estudante Dantas.

Pagando o pato

Piñera havia avisado que este seria o ano da educação. Os estudantes foram às ruas reforçar a mensagem. Cientes de que o caminho do presidente era o de incentivo ao atual modelo, acharam melhor deixar claro que acreditam na ruptura e na formulação de um novo sistema. Quis a soma de fatores que o cansaço se tornasse público e vasto durante o governo conservador.

Em uma demonstração de pouca habilidade política, o ministro da Educação, Joaquín Lavín, determinou, pouco antes da segunda jornada de protestos por todo o país, que as escolas tomadas por estudantes antecipassem as férias de meio de ano. Ele próprio admitia que eram 206 unidades apenas na região metropolitana de Santiago.

“O ano escolar significa um certo número de horas de classes que devem ser respeitadas. Está em jogo também o subsídio que têm de receber os colégios e seus mantenedores”, ameaçava, indicando também que os estudantes teriam aulas até janeiro para repor o atraso caso não respeitassem a medida.

A resposta foi simples. Dois dias depois, o Chile assistiu à sua maior manifestação em quase três décadas. Em um protesto bem humorado, os alunos sugeriram que Lavín tomasse “o caminho da praia”, uma alusão a um pedido de demissão.

Secundaristas e universitários consideram que o ministro não tem mais condições de negociar uma solução para a crise. “É uma jogada política extremamente maquiavélica. Não resolve. É má política. (Nós) nos opomos a isso, assim como os estudantes secundários, afetados por essa medida, recusaram cumpri-la e seguem mobilizados”, afirma Dantas.

Piñera assumiu a negociação em pronunciamento em cadeia de rádio e TV na última semana. Anunciou um pacote de medidas no valor de US$ 4 bilhões (R$ 6,3 bilhões) para tentar encontrar uma solução. Prometeu aumentar o número de bolsas aos mais pobres e reduzir os juros de financiamento das universidades.

Não se comprometeu, no entanto, com as causas centrais: o fim da municipalização, ou seja, dar um novo caminho ao ensino em 40% das escolas do país; acabar com o sistema que dá ao país uma formação desigual e voltada exclusivamente ao mercado, deixando de lado a formação cidadã; e a estatização do ensino universitário. Como Bachelet em 2006, Piñera corre o risco de ver o movimento crescer.

“Há diferentes visões de como deve ser a educação. Há que se abrir a todas essas visões, e que se realize um plebiscito para definir qual a visão que vai prevalecer. Não pode seguir o que se vê hoje em dia, que é um governo que quer impor sua visão a todo o resto da sociedade”, pondera Gajardo.

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2 comentários para "Por que lutam os estudantes chilenos"

  1. O momento atual pelo qual passa o Chile é só uma demonstração de que o fantasma de Pinochet continua a assombrar o país. O incensado longo período de governança do Consertación nada mais fez do que dar face humana ao modelo herdado da ditadura, uma verdadeira concatenação de erros semelhante aos cometidos pela centro-esquerda europeia. O que se vê hoje, inequivocamente, é o esgotamento desse modelo. O que já começou há poucos anos com a crise da previdência – privada e apontada por Bush como “exemplo para a América” – e agora se estende para a questão educacional, a luta laboral propriamente dita e também a luta dos mapuches no sul do país – lembrando que a Lei Antiterrorismo de Pinochet ainda vige no país.
    Piñera não passa de um demagogo com senso de oportunidade que aproveitou bem a crise no Consertación – provocada pela democracia cristã, que insistia em indicar o candidato da coalizão embora não tivesse quadros para tanto – para se eleger, mas agora tem uma bomba complexa demais para desarmar: primeiro veio o terremoto horrível que arrasou o país, uma tragédia aumentada pela má condição de vários prédios pelo país – construídos segundo as normas e os interesses das imobiliárias, uma vez que o Estado se omitiu da regulamentação e fiscalização das construções e do mercado imobiliário chileno como um todo -, agora, ele recebe a segunda onda do esgotamento do modelo econômico do país. É evidente que ele não está preparado para lidar com isso. Nem ele, nem o seu anódino ministro da educação Joaquín Lavín – candidato derrotado à presidência há alguns anos atrás. A conversa no Chile só está começando, acreditem.

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