“Eu conheço os presos da Alter do Chão”

Da cidade do Pará onde a polícia tenta incriminar quatro jovens pelo incêndio na Amazônia, uma jornalista relata: eles são quem mais defende a floresta. Agora, aparecem na TV algemados e de cabelo raspado. É uma cortina de fumaça criminosa

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Por Patricia Kalil, no Envolverde

Sou jornalista e moro em Alter do Chão. Trabalho na área ambiental, conheço pessoalmente tanto os brigadistas que foram presos, como o Projeto Saúde e Alegria e seus funcionários. Todos moramos aqui e atuamos, principalmente, na região.

Quatro amigos meus foram presos [agora, soltos provisoriamente em recém decisão da justiça], quatro pessoas da minha convivência na vila, quatro pessoas que vi ao longo desses anos envolvidos em uma lista de projetos e ações para cuidar e promover Alter. Tenho imagens de Daniel e João catando lixos nas praias na manhã de sábado, de Gustavo e Marcelo apoiando a promoção de festivais de música na vila, de todos eles participando de ações educativas para crianças e jovens ribeirinhos. Voluntariamente. De repente, da noite para o dia, os heróis da vila estão sendo  tachados de criminosos, caluniados (art 138 do Código Penal) e difamados (art 139) em memes nas redes sociais locais como se fossem os cabeça de uma quadrilha de desmiolados incendiários. Sob os olhos de autoridades.

Apareceram ontem na TV algemados, com seus cabelos raspados como criminosos cumprindo pena em um dos presídios mais perigosos do país. Sim, eles estão no Pará. Aqui, nos presídios teve gente degolada esse ano e no ano passado também. Muita gente. Só que os brigadistas são suspeitos, não são criminosos. São quatro paulistas de famílias de classe média e classe média alta, formados em economia, jornalismo, audiovisual e turismo. Homens, brancos e héteros presos e difamados.

Vamos ao enredo, pois no faroeste amazônico parece que a Lei vem depois. Segundo a polícia, os quatro rapazes foram presos porque são considerados suspeitos. São considerados suspeitos porque, entre todas as outras coisas que fazem, os jovens montaram uma Brigada de Incêndio para apoiar voluntariamente o Corpo de Bombeiros. Atuavam em parceria com os órgãos de segurança pública, com a prefeitura, com o governo. Eles são os que mais falavam e defendiam o trabalho sério de segurança pública em Alter.

Montar uma brigada não é fácil, conseguir voluntários menos ainda. Eu mesma nunca me meti no meio da mata, sem equipamento, para apagar incêndio florestal. Imagina respirar fumaça voluntariamente, sair com o corpo possivelmente queimado do jeito que sou atrapalhada, voltar pra casa totalmente esgotada? Chamem os bombeiros, que são treinados, tem preparo emocional e físico para o perigo e recebem para isso. É o que eu penso. O problema é que falta bombeiros no Pará. O 4GBM tem 50 funcionários para combate a fogo numa área de 313.957.940 km2 de 11 municípios vizinhos: Belterra, Mojuí dos Campos, Alenquer, Curuá, Óbidos, Oriximiná, Faro, Juruti, Monte Alegre, Prainha e Almeirim. A própria organização estimula a criação de brigadas em todas as comunidades.

Este ano, a Brigada de Alter abriu uma vaquinha virtual para arrecadar doações com o objetivo de comprar equipamentos de segurança para os voluntários. Por boa comunicação e timing, conseguiram mais apoio que o esperado. Quando o fogo atingiu Alter em setembro, muitas pessoas de fora ficaram sabendo que a vila tinha uma Brigada e estavam com campanha de crowdfunding no ar. Conseguiram doações por causa da repercussão do grande incêndio em Alter e isso, em tese, foi o que despertou suspeitas.

Mas quais suspeitas? Eles são suspeitos de terem todos enlouquecido ao mesmo tempo, de liderarem uma quadrilha de incêndio que tocava fogo em Alter –pelo alarde do governo federal no twitter ontem, parecia que eles tocavam fogo em toda Amazônia para pedir dinheiro de ONGs estrangeiras. A história parece bastante estapafúrdia, até porque sabemos que nenhum deles vive disso, nem os presos, nem os outros membros da Brigada. Todos tem seus trabalhos e são respeitados por isso. Não foram apresentadas quaisquer provas, apenas diálogos fora de contexto com a WWF, organização que atua na Amazonia e resolveu apoiar a Brigada na compra de equipamentos. O Projeto Saúde Alegria, que teve seus equipamentos apreendidos no mesmo dia, tem reputação internacional, atuam com famílias ribeirinhas há 30 anos. Nas comunidades, o PSA é querido por todos. Tiveram seus equipamentos apreendidos porque no enredo, um dos membros da Brigada, trabalhava no escritório do projeto em Santarém.

O fato é: Daniel Gutierrez, 36 anos, João Romano, 27 anos, Marcelo Cwerner, 36 anos e Gustavo Fernandes, 35 anos, estão presos. Há dois dias. Hoje começa o terceiro dia: |||. Por isso é cada vez mais urgente falar do devido processo legal que tem sido atropelado com uma grosseria escandalosa no país, em uma perseguição contra ambientalistas e ongueiros.

A Constituição do Brasil foi feita para que todos seguissem. Nela, concordamos que ninguém pode ser considerado culpado até que se tenha passado por um processo e que um julgamento final dê o veredito. Até lá, perante a Justiça, vale a presunção de inocência (ou princípio da não-culpabilidade), algo que deveria ser levado mais a sério pela mídia sensacionalista.

A lei também fala sobre prisão preventiva. Conforme artigo 312 Código de Processo Penal, pessoas só podem ser presas preventivamente quando apresentam ameaça à ordem pública, econômica, de fuga do país quando há prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. Não é o caso, os quatro são meramente investigados, não há denúncia e não há prova concreta de que tenham cometido qualquer crime. Todos têm residência fixa, todos trabalham, todos atuam em parceria com a polícia, inclusive. A cortina de fumaça para desviar o foco da notícia da semana? Qual foi? Novos dados do INPE de que até agora, em 11 meses de governo, quase 10 mil km2 da Amazônia foram destruídos, o que é mais ou menos igual a 1,3 milhão de campos de futebol derrubados e queimados de maneira criminosa (https://bit.ly/2QXdOxe). Se não dá para mandar embora o novo diretor do INPE, que façamos um escândalo? Será que vai colar por alguns dias? No mesmo momento, nesses dias, Anistia Internacional apresentou relatório do avanço ilegal em áreas protegidas da pecuária bovina na Amazônia (https://bit.ly/2OOWYyb). Invasão de floresta nacional, de parque nacional e de terra indígena. Essas são as notícias da semana. Foco no que precisamos dar foco. Vamos cobrar sim declarações e ações do governo sobre isso. Brigada. De tudo.

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