Walter Benjamin: fetiche cultural ou subversão?

Uma grande estudiosa do filósofo critica tendência a convertê-lo em objeto de consumo, enxerga ecos de seu pensamento em Eduardo Coutinho e vê no produtivismo acadêmico atual a morte da criação e da alegria

Por Paulo Carvalho, no Suplemento Pernambuco

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Uma grande estudiosa do filósofo critica tendência a convertê-lo em objeto de consumo, enxerga ecos de seu pensamento em Eduardo Coutinho e vê no produtivismo acadêmico atual a morte da criação e da alegria

Por Paulo Carvalho, no Suplemento Pernambuco

Para Jeanne Marie Gagnebin, uma das mais reconhecidas e admiradas pesquisadoras da obra de Walter Benjamin, deveríamos resistir à tentação de transformar os escritos do pensador alemão em mais um fetiche, em mais um “bem cultural” circulando em um sistema de consumismo cego, de mera acumulação, cuja lógica esvaziada foi justamente o alvo de um pensamento essencialmente questionador, crítico e subversivo. Gagnebin conversou com o “Pernambuco” sobre o seu mais recente livro, “Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin”, publicado pela Editora 34, em que aborda temas centrais em Benjamin tais como a escrita, a morte, a transmissão, a atenção e a dispersão, o messianismo e a experiência histórica na modernidade.

De origem suíça, mas residente no Brasil desde 1978, Gagnebin faz parte de uma tradição de estudos benjaminianos brasileiros, reconhecida inclusive na Alemanha, cuja densidade afirma o dever de também tentar “nos ler e nos criticar”, para além de conhecer os demais comentadores de Benjamin. Na entrevista, a pesquisadora critica duramente a produção acadêmica voltada exclusivamente para Currículo Lattes e reafirma o papel central dos professores no despertar intelectual dos novos acadêmicos. Gagnebin é autora dentre outros de “Walter Benjamin: os cacos da história” (Brasiliense, 1982), “História e narração em Walter Benjamin” (Perspectiva, 1994), “Sete aulas sobre linguagem, memória e história” (Imago, 1997) e “Lembrar escrever esquecer” (Editora 34, 2006).

entrevista

No texto “Estética e experiência histórica em Walter Benjamin” a senhora fala sobre o risco de reduzir o filósofo a “belos livros de Walter Benjamin”.  Gostaria que a senhora comentasse sobre como o mercado editorial de língua portuguesa trata o pensamento benjaminiano hoje.  Ainda temos muitos problemas em torno das traduções? Há comentaristas que a senhora gostaria de ver traduzidos com mais urgência? (Acompanhando as notas do seu livro penso ter algumas indicações para essa resposta…) Algumas traduções já editadas precisam ser refeitas ou revisadas?

São muitas questões juntas! As obras de Walter Benjamin demoraram a cair no domínio público porque ele morreu durante a Segunda Guerra: são 70 anos de prazo depois da morte, neste caso. Até o fim de 2010, a Editora Suhrkamp, em Frankfurt, detinha os direitos autorais sobre obra e traduções, exigindo que todas obras de Benjamin fossem traduzidas segundo e seguindo a ordem das Gesammelte Schriften dessa editora (“Escritos reunidos” – não são “Obras completas” porque muita coisa se perdeu e talvez possa ser encontrada ainda!). Isso complicou muito as traduções. Em Portugal, João Barrento traduziu muitos desses volumes, republicados hoje na Editora Autêntica.

São boas traduções, mas seguem essa ordem imposta pela Editora Suhrkamp, que não é necessariamente a mais sensata. A partir de janeiro de 2011, temos um “boom” de traduções de W. Benjamin no Brasil. De maneira desconectada, repetindo textos, muitas vezes. É estranho que não se consiga chegar a um acordo, mas esse é um problema maior: o de uma discussão intelectual maior entre os vários pesquisadores e tradutores de Benjamin. Pessoalmente, tento ajudar na edição crítica empreendida pela Editora 34. O próximo volume deve trazer textos ligados à filosofia da história, com notas críticas. A Editora Brasiliense está tentando reeditar os três volumes pioneiros publicados nos anos 80 com revisões. Infelizmente, até agora, me parece que essa revisão poderia ter ficado mais cuidadosa.

Pessoalmente, gostaria muito de ver uma tradução literária bonita tanto da Infância em Berlim por volta de 1900 como do primeiro esboço desse texto, a Crônica berlinense. E também da Correspondência de Benjamin, mas isso demora muito.

Devemos cuidar para não cair nem no extremo do valor mercadológico de obras conhecidas (há, por exemplo, duas edições recentes da segunda versão, finalmente reencontrada no arquivo Max Horkheimer, do ensaio sobre “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, me parece demais!) nem no outro extremo: a erudição pela erudição. É imprescindível tentar sempre fazer traduções anotadas que indicam o contexto político e histórico dos textos. Em suma: tentar não transformar Benjamin em mais um fetiche cultural, mas cuidar do aspecto questionador, inquieto, sim, subversivo do seu pensamento. Todo seu pensamento lutou contra essa fetichização da cultura e da escrita.

Em relação aos comentadores. Primeiro, acho que devemos, no Brasil, cuidar de ler melhor a nós mesmos: há já uma tradição benjaminiana brasileira, reconhecida até na Alemanha, deveríamos tentar nos ler e nos criticar (cordialmente, mas nos criticar sim) mais. No meu último livro, cito várias obras de referência em alemão, é bem verdade. Aí não sei se devemos traduzi-las… Ou insistir para que mais estudiosos estudem alemão e possam ler toda essa literatura em alemão! Agora, o volume Walter Benjamin, Memória, organizado por Uwe Steiner para o centenário de Benjamin em 1992 , poderia ser bem traduzido com seus ensaios quase “clássicos” de grandes comentadores.

Espero que ainda neste ano saia, pela Editora 34, a tradução de um belo livro sobre W. Benjamin do poeta catalão Vicente Valero: Experiência e Pobreza. Walter Benjamin em Ibiza.

Em 2012, numa fala sua aqui no Recife, achei interessante com a senhora criticava algumas apropriações que fazemos de conceitos de Benjamin. A senhora falava sobre a noção, achatada, que se costuma ter do conceito de “melancolia” em Benjamin. Também comentou o nosso uso do termo “povo”, que não levaria em conta a ambiguidade desta palavra. Pareceu-me que a sensibilidade benjaminiana por vezes estava um tanto distante de nós, os brasileiros, ou, nós, os falantes de língua portuguesa. A pergunta que faço é: o que significa pensar Benjamin no contexto social, político, cultural brasileiro de hoje? O que seria exatamente na abordagem de temas históricos e artísticos brasileiros oferecer ao pensamento de Benjamin o mesmo tratamento que seu pensamento oferecia às ruínas do seu tempo?

Essa questão, no fundo, não diz somente respeito à “apropriação”, para retomar sua palavra, da obra e dos conceitos de Benjamin, mas é uma questão hermenêutica muito mais ampla. Ela se coloca cada vez que lemos ou estudamos textos escritos numa outra época e, igualmente, como você ressalta, em outra língua, porque se pensa de maneira diferente segundo as línguas que se fala… Por exemplo, se pensa diferente se você tem três gêneros (masculino, feminino, neutro) ou dois (masculino, feminino) ou nenhum. Ou se se fala do “ser” segundo a modalidade de “ser” e de “estar”, ou somente de sein ou d’être. Cada língua tem seus pressupostos metafísicos… e, também, históricos. A palavra “Volk” (povo) em alemão não pode ser usada mais de maneira inocente depois do nazismo e de ter ainda, na memória auditiva e afetiva, a voz de Hitler.

Agora, essas considerações podem até se estender a falas e textos da mesma língua e da mesma época. A filosofia pode nos ajudar a tomar sempre um certo recuo em relação ao uso dos conceitos, também das metáforas ou simplesmente das palavras comuns. É um cuidado interpretativo e crítico porque as nossas palavras não são simplesmente “instrumentos’, mas carregam junto associações históricas e semânticas (sem falar das inconscientes!) e visões do mundo como diziam os Românticos alemães.

Então, desculpe, mas não tenho certeza que devemos hoje, no Brasil, ter “o mesmo tratamento” em relação a temas artísticos ou históricos que Benjamin. Parece-me difícil, justamente porque é tão diferente. O que podemos, sim, reter de sua reflexão é a atenção pelas ações e expressões dos “oprimidos”, para usar uma palavra dele, isto é, expressões de resistência, de busca de outros caminhos, de esperança de outros mundos, também de desesperança. E a desconfiança em relação ao modelo atual, impositivo, de sucesso e de felicidade a qualquer preço, num sistema de consumismo cego e de exploração cada vez maior. Essas exigências são do pensamento de esquerda em geral. Benjamin também tem uma atenção singular pelo detalhe e pela espessura material da linguagem; ele mostra igualmente uma grande desconfiança em relação às construções totalizantes, mesmo “dialéticas”… Esse lado “filológico” seu me parece geralmente pouco valorizado e merece ser ressaltado, porque vai contra uma pressa e uma voracidade muitas vezes confundidas com “brilhantismo” intelectual.

Confesso que foi muitíssimo deleitoso ler o comentário da senhora sobre a imagem de Jeff Wall. Pergunto se a senhora gostaria de comentar algum outro trabalho contemporâneo em que enxerga aberturas para uma aproximação benjaminiana. Gostaria de falar um pouco da sua relação com a produção artística contemporânea?

Costumo falar para meus alunos que na discussão/briga entre Adorno e Benjamin sobre a perda da “aura” e a função utópica ou alienante do cinema, ambos podem nos ajudar: Adorno para entender o que é a “indústria cultural” que reina soberana na nossa sociedade; e Benjamin para entender as tentativas de práticas culturais e artísticas contemporâneas que se caracterizam muito mais pela “experimentação” do que pela criação de uma “obra” acabada e singular. Penso notadamente em todas as práticas como instalações, performances, atividades teatrais ou circenses ou cinematográficas lúdicas e efêmeras. A partir notadamente de suas reflexões sobre o teatro “épico” de Brecht, mas também sobre o teatro de crianças proletárias (que ele conheceu a partir de sua amiga Asja Lacis), Benjamin tentou pensar mais em termos de “ordenação experimental” (Versuchanordnung) do que em termos mais clássicos de “obra de arte” (Kunstwerk).

Isso certamente nos ajuda a pensar as práticas artísticas contemporâneas que não podem mais ser lidas somente à luz de uma estética do belo e do sublime, mas que também apontam para algo como exercícios de alteridade e de transformação.

Pessoalmente, não sou especialista nem em artes plásticas, nem em cinema. Gosto muito de um cineasta chinês, já bastante famoso apesar da juventude, Jia Zhangke (indico um livro recente de Walter Salles e Jean-Michel Frodon, O mundo de Jia Zhangke, CosacNaify, 2014). Quando vejo seus filmes, rodados geralmente com câmera digital, ágeis, ternos e cruéis, sinto um “ar de família” com Benjamin. É um cinema documentário e de ficção, fala de pessoas comuns, anônimas, do conflito entre a tradição milenar e a modernidade acelerada, do campo que desparece e das megacidades, falam da tradição que vai desparecendo, mas que continua pesando como chumbo (como em Kafka), da memória afetiva e corporal, de tentativas de solidariedade, de tentativas de sobrevivência, de “linhas de fuga” que às vezes dão certo, na maioria das vezes não dão. São filmes ternos e contundentes sem grandes efeitos nem grandes discursos (daí talvez a importância de uma câmera mais leve). Há neles um gesto de atenção e de esperança triste que me lembra os textos e também a situação histórica de Benjamin, essa catástrofe que muda de semblante, mas que continua sob o manto da normalidade. “A construção histórica é dedicada à memória dos sem nomes” (“Dem Gedächtinis der Namenlosen ist die historische Konstruktion geweiht.” Walter Benjamin, Gesammelte Schriften I-3, p. 1243, Suhrkamp Verlag, Frankfurt/Main, 1974) diz Benjamin; talvez essa frase também possa definir práticas artísticas como o cinema de Jia Zhangke.

Mais perto de nós, claro, também penso num filme como Cabra marcado para morrer de Eduardo Coutinho, um grande filme sobre lutas, memória e transmissão, tentativas de soterrar essas lutas e essa memória.

No texto sobre “Limiar: entre a vida e a morte”, a senhora fala a respeito da digressão (pensar por “desvio”), um pensamento em que se abandone a “soberania do sujeito do pensar”,  e que possa, enfim, “pensar devagar”.   O que significa “pensar devagar” no contexto da academia brasileira hoje? Se os pesquisadores e professores são pressionados por certa lógica produtivista, a quem restou o papel de “pensar devagar”, hoje, no Brasil?

Pois é, ficamos todos escravos dos curricula Lattes e da contabilidade da Capes. Pode-se entender que essas avaliações todas tiveram origem numa tentativa de reduzir algumas práticas de malandragem e de picaretagem na vida acadêmica. Não sei se o conseguiram. Agora, também participam do produtivismo e da aceleração que caracterizam o capitalismo concorrencial. Em termos marxistas clássicos, é o triunfo do valor de troca sobre o de uso (para que tantas revistas, tantos artigos, até tantos livros que ninguém lê, mas que contam pontos na carreira de alguém?). A ciência se tonou uma indústria, uma “empresa”, um Betrieb como já diziam Adorno e Horkheimer nas primeiras páginas da Dialética do Esclarecimento.

Em termos de ensino no Brasil, uma vantagem consiste no fato que, graças ao CV Lattes, há uma certa “transparência” sobre a vida acadêmica das pessoas. Mas é uma transparência opaca, porque não diz respeito nem à qualidade dos textos escritos nem à qualidade do ensino, a meu ver fundamental na atuação de um professor. Temos cada vez mais pesquisadores bastante restritos na sua temática (o que permite especialização, certamente, mas não necessariamente comunicação e transmissão dos saberes adquiridos) e cada vez menos professores felizes em ensinar, que saibam entusiasmar seus alunos e, ao mesmo tempo, exigir deles um esforço de questionamento e de aprofundamento. Ora, me parece que disso que o ensino brasileiro mais precisa desde o ensino fundamental até a pós-graduação: a alegria e a exigência no ensino e no aprendizado.

Sei que posso fazer essas críticas porque sou uma velha professora respeitada, em particular graças ao seu CV Lattes! Agora, para mim, o ensino da filosofia deveria ousar resistir a essa acumulação e a essa pressa, justamente porque é busca, crítica, proposta e inventividade, porque não sabe com certeza aonde vai, aonde o logos pode nos levar como diz Sócrates. Há vários anos escrevi um pequeno texto sobre isso, acho que saiu na internet sob o título “o métodos desviante” que insiste nessa paciência da filosofia, um conceito emprestado tanto a Hegel (“a paciência do conceito”) como a Lyotard. Justamente porque o pensamento filosófico não se esgota na comprovação de sua “utilidade”, mas tateia para também pensar aquilo que ainda não foi pensado, que espera por ser reconhecido e conhecido, por ser nomeado, ele não pode — nem deve, me parece — obedecer a essa pressão sem criticá-la. Se tiver que obedecer, quando um jovem colega presta concurso, por exemplo, que o faça para “salvar sua pele”, mas não confunda essa atitude com atitude científica! Falo da filosofia, mas imagino que literatura e outras disciplinas ditas de “ciências humanas” também poderiam concordar com essa crítica. E também das ciências ditas “hard”.

Há alguns anos, o psicanalista Renato Mezan publicou um artigo na Folha de São Paulo, intitulado “O fetiche da quantidade”1, no qual conta como, em 1994, um professor de Princeton, Andrew Wiles, conseguiu, mais de três séculos depois de sua formulação, demonstrar um teorema de um matemático francês, o “théorème de Fermat”, cuja demonstração tinha ficado perdida. A universidade de Princeton ofereceu ao pesquisador tanto tempo quanto precisava para se consagrar exclusivamente a esta pesquisa. Ele encontrou a solução depois de sete anos… Sem artigo nem relatório intermediários, portanto!

Será que não é mais possível escrever um belo livro (vamos dizer em seis ou sete anos) porque deve-se redigir três artigos por ano ou mesmo por semestre? E que não se possa “perder tempo” com uma classe até os alunos todos despertarem e começarem a pensar por si mesmos? Não é preciso saber de filosofia ou de literatura para saber o quanto a errância e a “perda” de tempo são imprescindíveis para inventividade no pensar.

A senhora faz uma crítica dura a Agamben, na nota da página 55. Fala que a aproximação entre a noção de “mera vida” e “vida nua” pode ter sido apressada. Essa relação é angular no principal projeto de Agamben, que é o seu “Homo sacer”. Essa oposição já foi discutida anteriormente? A senhora gostaria de se estender um pouco mais sobre essa crítica?

Queira desculpar, mas acho minha crítica uma observação filológica bem educada, nenhuma crítica tão dura assim. E completo dizendo que aprecio muito o pensamento de Giorgio Agamben, em particular toda discussão sobre poder e exclusão no Homo sacer. Agora, Agamben cita muitas fontes, de Heidegger a Benjamin passando por Carl Schmitt ou Foucault, sem falar em sua erudição teológica e filosófica mais ampla. Então, muitas vezes, alguns conceitos devem ser retificados, o que tento fazer ao distinguir o conceito de “mera vida” em Benjamin (“blosses Leben”) do contexto da bio-política. Aqui no Brasil, pouca gente ousa simplesmente questionar os textos de Agamben. Ele mereceria uma leitura mais crítica. Por exemplo, na Alemanha, Sigrid Weigel (no livro Die Kreatur, das Heilige, die Bilder, Fischer Verlag, 2008) ou na França Georges Didi-Huberman (no livro Survivance des lucioles, Editions de Minuit, 2009) têm críticas muito mais virulentas!

A centralidade da escrita no pensamento filosófico é um dos temas que atravessa vários textos, e mais centralmente “Do conceito de Darstellung em Walter Benjamin (ou verdade e beleza)”.  Essa perspectiva coloca o pensamento filosófico muito próximo da poesia, como também aproxima a poesia da filosofia. Isso parece soar muito intimidador para quem está começando a escrever, ou tem um projeto de uma tese acadêmica pela frente, não é? Gostaria de falar da sua experiência pessoal com a escrita?

Mais uma questão que se desdobra em muitas! As relações entre poesia ou literatura e filosofia são estreitas e complicadas desde de início, desde que Platão nomeia um outro gênero de logos, de discurso, de “filosofia’ em oposição às outras práticas discursivas de sua época, como a poesia de Homero e a retórica. Essa oposição é difícil porque pressupõe uma força argumentativa e lógica que consiga convencer pelo reconhecimento da verdade, em oposição à força da beleza poética e retórica. Ao mesmo tempo, Platão por assim dizer inventa um novo gênero literário, o diálogo, mesmo que seja um diálogo filosófico, ele também lança mão da beleza literária e de histórias míticas para convencer seu interlocutor, no caminho comum da busca do conhecimento. Mesma ambiguidade em relação à escrita: se ele parece condená-la (na “Carta VII” e no fim do Fedro), ele no entanto é um dos maiores escritores que já existiu e nos deixou uma obra escrita – os Diálogos, justamente – maravilhosa.

Acho que é um preconceito filosófico comum pensar que a filosofia não trabalha com estilo ou gênero literário, mas que seria um discurso transparente que “diz a verdade”. Há vários gêneros literários na filosofia, inconfundíveis entre si, e sempre ligados àquilo que tentam dizer: diálogo, tratado, ensaio, meditação, discurso metodológico, sistema…

Não são somente os escritores (literários) que dão importância à sua escrita no sentido de um cuidado com palavras, metáforas, música ou ritmo do texto. Vejam como escrevem um Sérgio Buarque de Holanda ou um Gilberto Freyre, o “estilo” não é nunca indiferente, nem a apresentação dos problemas neutra. Justamente porque nossa linguagem – e mais ainda nossa escrita – é limitada, simplesmente porque nunca consegue realmente “dizer o real”, devemos cuidar dela cada vez mais, explorar seus recursos e seus limites.

Não acho isso intimidante, pelo contrário: tira dos ombros dos pesquisadores a fantasia de ter que alcançar o único verdadeiro através das suas palavras. A limitação da linguagem e da escrita obriga a inventar cada vez mais palavras, mais figuras, mais argumentos, mais textos para dizer melhor. Se tivéssemos uma linguagem perfeita, não precisaríamos mais nem falar nem escrever!

Tive na minha infância um aprendizado das palavras e da escrita (com meu pai, acho, nem consigo lembrar) que desde do início era ligado à beleza (da poesia) e à comunicação. Tive sorte porque nunca percebi na escrita esse instrumento de disciplina e de opressão que um aprendizado mais tradicional pode significar. Leitura e livros foram momentos de descoberta da amplitude do mundo. Então, sempre gostei de escrever, acho que muitos gostariam muito mais de escrever se houvesse esse aprendizado da linguagem, da escrita, da leitura como um aprendizado da múltipla beleza do mundo e de sua possível tradução em palavras.

A senhora acompanha a produção do pesquisador Jonathan Crary? Em seu Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura(2013) ele observa, em oposição a Benjamin, que  a distração moderna não seria uma ruptura com “tipos estáveis e naturais de percepção contínua” (p. 74), mas um efeito da tentativa de produzir estados não distraídos em sujeitos. Ainda que Benjamin tenha sugerido que “disrupção inerente ao choque e à distração traz a possibilidade de novos modos de percepção” ( p. 74), o mesmo Benjamin, segundo Crary, “sempre pressupunha uma dualidade fundamental, em que a contemplação absorta, purificada dos estímulos excessivos da modernidade, era o outro termo”. (p. 74) Para Crary distração e concentração não se estabelecem como polos opostos, mas como um continuum “no qual as duas fluem incessantemente de uma para outra, como parte de um campo social em que os mesmos imperativos e forças incitam ambas”.

Penso que na página 110 de Limiar, aura e rememoraçãoa senhora atinge Crary em cheio ao afirmar que o impulso lúdico e mimético não seria definido como uma falta de atenção, mas sim como outro desempenho da atenção.  A senhora concorda com essa leitura?

Caro Paulo, concordo, sim, com sua leitura…, mas lhe confesso que não conheço Jonathan Crary, nunca li nenhuma linha dele. Portanto, agradeço muito pela indicação, mas não posso responder mais a respeito!

Quando se deu seu primeiro contato com Benjamin? Gostaria de falar sobre essas primeiras leituras? Quais as passagens de Benjamin continuam hoje enigmáticas e centrais para a senhora?

O primeiro texto de W. Benjamin que li foram as teses “Sobre o conceito de história”, último escrito de Benjamin datado de 1939/1940.. Isso foi num curso de alemão medieval, em Genebra, nos anos 1970. Benjamin foi redescoberto pela esquerda, em particular pelo movimento estudantil, nestes anos justamente porque ele era um pensador ligado a Marx, mas não dogmático, nunca foi do Partido Comunista, já tinha percebido os problemas do stalinismo quando foi a Moscou visitar sua amiga Asja Lacis. Ele tinha uma concepção “materialista” (como ele dizia) da história, mas ele questionou profundamente a crença dogmática no progresso, tão importante e tão paralisante (segundo ele) na social-democracia e nos partidos comunistas ortodoxos. A vitória do nazismo exigia outra reflexão que essa “fé” cega no progresso, essa visão determinista da história.

No rastro do movimento estudantil e das críticas crescentes aos partidos comunistas oficiais (em particular depois do sufocamento da “primavera tcheca” em agosto de 1968 pelas tropas da União Soviética), um pensador como Benjamin ajudava (e ainda ajuda!) a pensar história e historiografia em oposição à historiografia “dominante”, isto é, dos dominadores, sem, no entanto, cair num falso otimismo progressista.

O professor de língua e literatura alemã medieval, Karl Bertau, estava escrevendo uma obra de historiografia da Idade Média, justamente. Lemos muitos teóricos de esquerda, principalmente Walter Benjamin, nos perguntando sobre essa atividade: como o historiador do presente escreve e reescreve a história do passado? Em vista de que futuro? Com que tipo de lembrança? Qual é a memória, qual é a transmissão que sustenta sua escrita? Questões candentes até hoje e que são também altamente políticas – como percebemos, por exemplo, com o relatório da Comissão Nacional da Verdade e a discussão desse documento.

Continuo achando as “teses” um texto fantástico, mas difícil. Participei do Benjamin-Handbuch (Metzler Verlag, 2006) com um ensaio sobre as “teses”, a convite de colegas alemães, mas não sei se compreendi realmente esse texto fulgurante e obscuro, que, aliás, Benjamin nunca pensou em publicar tal qual, era muito mais um esboço que escreveu para si mesmo, no limiar da Segunda Guerra, antes de desistir de viver. Também outros textos, como A origem do drama barroco alemão, também continuam um “pedreira” para mim, apesar de várias leituras.

Esse meu último livro é uma tentativa de esclarecimento e de questionamento depois de vários anos de estudo e ensino. Ele também significa para mim uma homenagem a todos que, aqui no Brasil, tentam lembrar o passado, cuidar da memória dos mortos e desaparecidos, e afirmar que a história pode ser outra.

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