Na Ocupação Mandela, a cara das elites brasileiras

Há uma semana, 600 famílias que ocupavam um terreno vazio por 40 anos, eram expulsas e humilhadas. Circunstâncias expõem brutalidade de nossas relações sociais

Por Raquel Balbina Teixeira, Giulliane de Almeida Brandão e Arthur Menicucci, na Ponte

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Há uma semana, 600 famílias que haviam ocupado um terreno vazio por 40 anos, eram expulsas e humilhadas. Circunstâncias, omitidas pela mídia expõem brutalidade de nossas relações sociais

Por Raquel Balbina Teixeira, Giulliane de Almeida Brandão e Arthur Menicucci, na Ponte

A Comunidade Nelson Mandela é composta por cerca 1,2 mil pessoas, sendo 450 crianças e adolescentes. As 600 famílias ocupavam uma área abandonada há 40 anos em Campinas. Na madrugada do dia 28 de março iniciou-se o processo de reintegração do terreno, por meio da ordem judicial, que incluiu um efetivo de 500 policiais militares e da Guarda Municipal. Iniciou-se as negociações para saída das famílias.

A Comunidade começou o processo de organização para o momento da reintegração de posse sem saber ao certo qual o desfecho que aquele dia teria. A princípio, havia a promessa do proprietário de disponibilizar 15 caminhões para a retirada dos móveis e pertences dos barracos. Foram dez meses de sonhos e esperanças nas construções das casas, em busca do direito à moradia.

Foto: Giulliane Brandão

Foto: Giulliane Brandão

A negociação começou por volta de 4h30 com discussões entre parlamentares, advogados populares e quase nenhum representante da Prefeitura de Campinas. A primeira memória que tomou conta de todos os envolvidos foi a premeditada possibilidade de ocorrer um novo massacre como o do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP).

Diante de um efetivo tão grande de policiais e ao analisar que quem estava do lado oposto da polícia eram crianças, mulheres e gestantes, os moradores optaram pela saída deste campo de batalha para preservar sua integridade física. A retirada dos móveis, dos pertences e das pessoas da Comunidade teve início por volta das 9h.

O prefeito de Campinas, Jonas Donizette, que até esta publicação se recusa a buscar soluções para as famílias desabrigadas, mantém a mesma política do governador Geraldo Alckmin: proteger a propriedade privada em detrimento dos direitos fundamentais à moradia de 600 famílias.

Às 18h, mais de 12 horas depois do início das negociações pela desocupação, centenas de moradores da comunidade permaneciam nas ruas ao redor da Ocupação Mandela, com seus pertences amontoados e espalhados, sem alimentação, sem banheiro, sem banho e sem nenhuma informação sobre o destino que os aguardava. E, mesmo diante de tamanha desumanidade, ainda restavam forças aos moradores do Mandela para cantar à resistência daquela Comunidade.

Já passava da meia-noite quando foi retirada de dentro da ocupação a maior parte dos móveis, muitos dos quais pelos próprios moradores. Ao fundo, viam-se os barracos que queimavam, gerando uma leve claridade para retirada dos móveis que ainda restavam. Eram os pertences das famílias mais vulneráveis, idosos, mulheres grávidas, casais com filhos recém-nascidos.

A fumaça já não incomodava mais. O que atormentava era a ineficiência deliberada do Poder Público e a incógnita: para onde ir?

O prefeito Jonas Donizette resolveu desobedecer às leis e não garantiu lugar para dormir e nem para guardar os pertences das famílias retiradas das suas casas. Onde passar a noite? O que significa perder tudo?

Sem abrigo, as famílias foram para outras duas comunidades, a Joana D’arc, em Campinas, e a Vila Soma, em Sumaré. Outro grupo dormiu em duas igrejas que ficam próximas da Ocupação Mandela. Já os pertences foram colocados em um contêiner.

Houve ainda quem, sem escolha, mesmo com o fogo que queimava todas as casas, permaneceu no Mandela para proteger os seus bens. Isso porque parte do combinado com o proprietário do terreno foi descumprido.

Dos 15 caminhões que foram prometidos, apenas sete apareceram, número insuficiente para garantir o transporte dos pertences dos moradores. Com o fim do transporte, muitas coisas ficaram para trás, inclusive os moradores, que dormiram no terreno, sem ao menos um teto, pois os barracos foram destruídos pelas máquinas e pelo fogo. Adultos e crianças adoeceram por conta da situação.

O Juiz da 1ª Vara do Foro Regional da Vila Mimosa da Comarca de Campinas não estabeleceu nenhum dos procedimentos legais para uma solução pacífica e negociada, já requerida pela Defensoria Pública de Campinas, diante das possibilidades previamente anunciadas de violações a direitos fundamentais da população vulnerável.

Como bem pontuou a Defensoria Pública, a medida judicial que determinou a reintegração de posse sem nenhuma garantia às famílias que residiam naquele terreno há mais de dez meses gerou aquilo que já havia sido anunciado: pessoas nas ruas, com os pertences que sobraram, seus filhos dormindo nas calçadas.

“O acolhimento da proposta realizada pelos moradores para desocupação mostra-se necessário não só para que as crianças completem o ano letivo, mas, também, porque o município, conforme esclarecimentos prestados pela Secretaria Municipal de Assistência Social e Segurança Alimentar, possui apenas 10 vagas em Albergue (SAMIM) e com reintegração muitas famílias ficarão em situação de rua”, apontou a Defensoria.

Foto: Giulliane Brandão

Foto: Giulliane Brandão

O terreno localizado entre o Jardim Capivari, o Bairro Ipiranga e a região do Jardim Yeda, era uma propriedade particular que estava abandonada há mais de 40 anos. Lá, 600 famílias construíram seus barracos e estabeleceram moradia durante dez meses.

A instabilidade gerada para essas famílias é incomensurável, afinal, são 282 crianças (65 bebês com até um ano, 30 crianças menores de dois anos e 187 crianças de dois a dez anos), 141 adolescentes, 28 gestantes, 24 idosos, 05 cadeirantes e centenas de adultos, afetados pelo desemprego e pela crise econômica.

Assistimos, estarrecidos, a um processo de reintegração de posse que evidencia a insuficiência do Estado e suas prioridades para com a população. Pensar no significado da palavra “desumanização” remete diretamente ao cheiro, ao frio, ao calor, ao medo, à insegurança de se ver cercado por policiais, sem local para levar os poucos pertences que restaram da luta por moradia, de ter em seus braços filhos com fome e não poder aquecê-los em uma cama em local seguro.

O massacre oriundo da violência física não ocorreu, foi possível negociar a não entrada da polícia na ocupação. A saída com um mínimo de dignidade e com a cabeça erguida. Por outro lado, o massacre social, a humilhação, o terror psicológico, esse não foi evitado. Todos os culpados possuem nomes, casas e durante esses quatro dias de incertezas, dormiram todas as noites em suas camas macias e quentes e não possuem nenhum arrependimento da barbárie que causaram.

A empatia é palavra pouco praticada, o que a Ocupação do Mandela nos prova é a necessidade de conjugarmos novos verbos que levem o povo à rua.

“Viva a luta da Comunidade Nelson Mandela!”

“Enquanto morar for um privilégio, ocupar é um dever!”

“Que barulho é esse, parece um trovão, é o Nelson Mandela querendo atenção!”

“Pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem não pode com a formiga não assanha o formigueiro!”

Outro lado

A Ponte Jornalismo enviou e-mail para a assessoria de imprensa da Prefeitura de Campinas a respeito das denúncias apresentadas neste artigo, mas não obteve resposta até a sua publicação.

* Raquel Balbina Teixeira, Advogada Popular

* Giulliane de Almeida Brandão, Conselheira Tutelar

* Arthur Menicucci, Jornalista

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