Nas quebradas, derrubar muros não é vandalismo — é resistência

O dia em que os moradores do Moinho, em S.Paulo, liquidaram a cerca que os isolava do resto da cidade

Por Leonardo Sakamoto, em seu blog

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O dia em que os moradores do Moinho, em S.Paulo, liquidaram a cerca que os isolava do resto da cidade

Por Leonardo Sakamoto, em seu blog

Com marretas em punho, moradores da favela do Moinho, na região central de São Paulo, derrubaram parte de um muro de contenção em torno da comunidade para criar uma nova rota de fuga neste domingo (5). Erguido em 2011, após um incêndio atingir o local, sob a justificativa de ser uma medida de segurança, ele é visto por moradores como uma forma de conter o avanço da própria comunidade sob outros imóveis da região – que se tornou alvo de incorporadoras nos últimos anos.

Ao invés de muros, os moradores exigem regularização fundiária e urbanização com participação popular nas decisões. Acreditam que essa é a solução para os incêndios “espontâneos” que atingiram a favela em 2011 e 2012. Lembrando que, em São Paulo, as favelas em locais de interesse imobiliário cismam em pegar fogo sozinhas.

Tirei a foto de um buraco no muro da USP, que circunda a universidade, observando a favela do Jardim São Remo, tempos atrás. E por que a USP possui um muro? Talvez para as plantas não fugirem – sabe como são danadas essas ervas daninhas. Talvez para impedir a horda de bárbaros de entrarem e atrapalharem esse templo dos “homens e mulheres de bem”, que consideram privado um bem público. Na época em que estudava e trabalhava por lá, tinha vergonha louca disso. A USP é um orgulho para a nação e aos domingos você pode contemplá-la de bicicleta na ciclofaixa que passa por seu portão, mas não tem coragem de entrar. Sempre de longe, é claro, e sem tocar – por favor. Vai que quebra.

O castelo em que a USP se tornou quando, em nome da segurança, fechou-se para São Paulo aos domingos, é similar a outros encastelamentos que surgiram com o objetivo de segregar. A cidade possui uma área mais rica e urbanizada em seu chamado “centro expandido”, cercada pelos rios Tietê e Pinheiros, e uma periferia mais pobre. Os moradores da área protegida pelas muralhas vivem em relativo conforto e segurança em comparação com quem mora do lado de fora, que sobrevive trabalhando para o burgo. A Idade Média é aqui e agora.

São Paulo, ao longo dos séculos, foi se aprimorando na arquitetura e no urbanismo da exclusão. O tema não é exatamente novo e ocupou espaço na mídia, por exemplo, quando gênios resolveram implantar no complexo viário da avenida Paulista as chamadas rampas antimendigo: grandes blocos de concreto que impedem o povo de rua de montar sua casinha imaginária para se proteger do tempo e do mundo. E proteger, dessa forma, a “gente de bem” – menos pelo número de assaltos nas longas pausas dos congestionamentos e mais pela agressão terrível ao senso estético do paulistano (sic).

As mudanças no traçado da futura linha 6-laranja metrô após reclamações de moradores do rico bairro de Higienópolis teve o objetivo claro de excluir, mais do que aproximar, alimentando mais ainda a ignorância que gera a intolerância, o medo e as cercas eletrificadas que circundam casas e apartamentos de luxo. Cercas que se voltam contar seu criadores e tornam a vida de quem está lá dentro também uma prisão.

Logo após a fundação da vila de São Paulo de Piratininga, José de Anchieta, com a ajuda de índios catequizados, ergueu um muro de taipa e estacas para ajudar a mantê-la “segura de todo o embate”, como descreveu o próprio jesuíta. Sim, São Paulo já foi uma cidade fisicamente murada. Os indesejados eram índios carijós e tupis, entre outros, que não haviam se convertido à fé cristã e, por diversas vezes, tentaram tomar o arraial, como na fracassada invasão de 10 de julho de 1562.

Ao longo dos anos, a vila se expandiu para além da cerca de barro, que caiu de velha. Vieram os bandeirantes – hoje considerados heróis paulistas (cada lugar tem o herói que merece) -, que caçaram, mataram e escravizaram milhares de índios sertão adentro.

Da África foram trazidos negros, que tiveram de suportar árduos trabalhos nas fazendas do interior ou o açoite de comerciantes e artesãos na capital.

No início do século 19, a cidade tornou-se reduto de estudantes de direito, que fizeram poemas sobre a morte e discursos pela liberdade. Depois cheirou a café torrado e a fumaça de chaminé, odores misturados ao suor de imigrantes, camponeses e operários.

Mas, apesar da frenética transformação do pequeno burgo quinhentista em uma das maiores e mais populosas metrópoles do mundo, centro financeiro e comercial da América do Sul, o espírito do muro de taipa se manteve. Ele, às vezes, se materializa na forma de barreiras de contenção para o “próprio bem” de uma comunidade, por mais que aumente as chances das pessoas morrerem queimadas por falta de saídas em caso de incêndio. Na maior parte do tempo, contudo, permanece invisível, impedindo o acesso dos excluídos à cidadania plena do burgo paulistano. Seja impedindo sua mobilidade, empurrando-os para morar de forma insalubre nas franjas da cidade, negando educação e saúde de qualidade, seja tratando pobres como lixo em espaços públicos centrais, deixando claro que eles não são bem-vindos por lá.

Por isso, a imagem dos moradores marretando o muro é, em si, libertadora. Ao colocarem abaixo aquele pedaço de cimento e blocos estão, em verdade, rasgando o outro muro, invisível, esse muito mais alto e forte, que os separa de sua cidadania. Reafirmam, com isso, para o restante da sociedade que, não só existem, como não irão desistir até que sejam atendidos em suas justas demandas.

Li na internet comentários que afirmavam ser a derrubada do muro da favela do Moinho uma ação de vandalismo público. A meu ver, foi um ato de resistência. Interessante como a liberdade e a dignidade de uns se tornam o medo de outros, não?

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