Na quebrada, não é Uber — é Ubra!

Moradores da periferia paulistana criam serviço de transporte que chega a locais rejeitadas pelo concorrente, com motoristas do bairro e respeito à cultura local

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Criadores da Ubra afirmam que não ter receio de que surjam concorrentes

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Dois moradores da periferia paulistana criam serviço de transporte que chega a locais rejeitadas pelo concorrente — com  motoristas do bairro e respeito à cultura local

Por Felipe Souza, na BBC

Ruas estreitas, ladeiras e algumas vias de terra. “Ninguém quer subir o morro. Nem a Uber para ganhar dinheiro”, conta Henrique Deloste, líder comunitário da Brasilândia, distrito da periferia da zona norte de São Paulo.

A gigante dona do popular aplicativo “que liga motoristas a passageiros” vetou o acesso a diversas regiões de São Paulo. É o caso de Brasilândia e das favelas de Paraisópolis e Heliópolis, as duas maiores da cidade – localizadas na zona sul.

Quem tenta pedir um carro num desses bairros vê o recado saltar na tela: “Infelizmente, a Uber não está disponível na sua área no momento”. A empresa informou que isso ocorre nas regiões “com desafios de segurança pública”.

Mas a grande demanda de passageiros no extremo norte da capital inspirou o tatuador Emerson Lima, de 40 anos, e o motorista Alvimar da Silva, de 48, a criar a Ubra (União da Brasilândia). Mas, ao contrário da gigante americana com sede na Califórnia (EUA), a estrutura criada pela dupla é bem mais simples.

Uma folha de madeirite divide o salão mal iluminado. Duas cadeiras, mesa e um sofá compõem a sala de espera dos motoristas. Um celular com WhatsApp e um telefone fixo fazem às vezes de central telefônica. E tudo funciona.

Mensagem de erro enviada a passageiro em bairro onde o Uber não entra

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“Ubra, boa tarde. Barra Funda? Vou calcular aqui e te aviso”, diz Emerson a uma cliente que liga perguntando o valor de uma corrida do seu trabalho, na Barra Funda, até o Elisa Maria, bairro da Brasilândia.

“Vai ficar R$ 35 e o motorista chega em uma hora”, comunica Emerson. Mas a cliente desiste da viagem por considerar que o tempo de espera era muito longo. “Relaxa, quando ela chegar aqui perto vai ligar de novo porque ninguém sobe a nossa quebrada”, diz um dos motoristas na espera.

A Ubra foi criada há 20 dias. Hoje, já são seis motoristas e a intenção é ampliar a frota nas próximas semanas. “A demanda está muito grande e a gente já está perdendo corrida. A área tem uma carência grave de transporte, principalmente à noite”, afirma Emerson enquanto atende outro cliente pelo celular.

A prefeitura informou que soube recentemente sobre o serviço prestado pela Ubra. A Secretaria Municipal de Transportes informou em nota que “tem interesse em aumentar o número de empresas que operam na cidade, sobretudo em locais onde o sistema viário ainda é pouco aproveitado pelo transporte individual de passageiros”.

Por outro lado, a administração municipal afirmou que a empresa ainda não foi credenciada no Conselho Municipal de Uso do Viário (CMUV) e não pode transportar passageiros. A pasta alertou que, desta forma, a “empresa e os motoristas estarão sujeitos à fiscalização e às sanções cabíveis, que incluem apreensão dos veículos e multa.”

Demanda noturna e função social

Os criadores da Ubra afirmam que já têm 40 clientes fiéis, que são levados com frequência para fazer compras e até mesmo para consultas médicas. Mas é durante a madrugada que os moradores entrevistados pela BBC Brasil dizem que a Ubra faz a diferença.

A operadora de caixa Aline Alves de Souza, de 27 anos é uma das mulheres que moram na Brasilândia e, graças à Ubra, não tem mais medo de voltar de festas na madrugada.

“Quando vou para a balada, fecho com a Ubra a ida e a volta por R$ 40. Esses dias, minha filha também passou mal de madrugada e eles me levaram e buscaram muito rápido”, afirmou.

Panfleto da Ubra

Sócios dizem ter entregue mais de 5 mil planfletos para divulgar o serviço

Os criadores da empresa dizem que cobram preço semelhante ao de seu concorrente. Cada quilômetro rodado custa R$ 2 contra cerca de R$ 1,80 da Uber – que ainda cobra uma taxa municipal. Eles aceitam dinheiro e cartões de débito e crédito.

Enquanto a Uber tem um sistema automatizado, o preço das corridas da Ubra é calculado apenas pela distância medida no site do Google Maps. Mas nem sempre os motoristas cobram o preço cheio.

“Nós temos um papel a cumprir na quebrada. É um trabalho social, não é só cobrar o (preço) que deu. Eu levo mulher em presídio, transporto deficiente físico e idoso para fazer consulta. Muitas vezes, cobro menos. Algumas, eu ainda espero para levar o cliente de volta sem cobrar o tempo parado”, conta Alvimar da Silva, co-fundador da Ubra, que também atua como motorista.

Escola Uber

Hoje empresário e concorrente, Alvimar define como uma escola o período de oito meses em que trabalhou no Uber.

“Oferecemos um serviço de qualidade para fidelizar os passageiros. Só permitimos carros em ótimas condições e com ar condicionado. Além disso, os motoristas são todos de confiança. Só nossos amigos do bairro”, relata.

A própria Uber vê com bons olhos a chegada da pequena concorrente. “Novos serviços são ótimos para consumidores e para as cidades. Competição encoraja uma melhora constante de qualidade”, disse a empresa em comunicado à BBC Brasil.

A dupla que administra o novo negócio não tem uma assessoria de comunicação, mas seu discurso é bem parecido ao usado pelos porta-vozes da gigante californiana quando chegou ao Brasil.

“Queremos legalizar o nosso serviço para trabalhar conforme a lei, pagar todos os impostos. Eu já tenho um advogado vendo toda essa papelada. A Brasilândia tem 400 mil habitantes e eu tenho certeza que eles (prefeitura) não vão permitir que um trabalho social tão importante como esse seja encerrado”, diz Emerson Lima.

Guia para motoristas

A dupla de empresários diz que não tem medo de que surjam concorrentes na região. E até fala que empresários de fora não se dariam bem caso tentassem fazer o trabalho no bairro sem a ajuda dos moradores.

“Não é qualquer um que sabe andar no morro. Nossos motoristas usam carro prata para não chamar a atenção e andam com o vidro abaixado. Em alguns pontos, eles são orientados a tirar o cinto de segurança, colocar o cotovelo para fora da janela e fazer cara de mau. Tudo o que a gente aprendeu na quebrada”, relata Emerson.

Além de atender os telefonemas, ele é responsável pela divulgação do novo serviço no bairro. “Eu já distribuí mais de 5 mil panfletos. Eu levei em todos os lugares onde a Uber não chega: bar, escola de samba, oficina mecânica e até fluxo de baile funk”, conta.

Outros bairros

O empresário Alvimar diz que o crescimento de seu negócio deve inspirar moradores de outras regiões a fazer o mesmo. Mas ele diz que não quer operar em outros bairros.

“É cada um na sua área. Eu tenho certeza que essa modalidade vai expandir. Eu posso até orientar, mas eu não vou me meter em lugares que eu não conheço”, afirma o fundador da Ubra.

Ele diz que também vai limitar o número de motoristas da empresa para manter a qualidade. Alvimar ainda diz ter certeza de que o serviço não será barrado pela prefeitura e que, se isso ocorrer, pode haver reação dos moradores da região.

Alvimar, um dos fundadores da Ubra, com uma cliente

Alvimar trabalhou durante oito meses como motorista da Uber antes de criar a Ubra

“Tenho certeza que a população vai para as ruas. Porque nós estamos fazendo o bem para pessoas que estão esquecidas. Se a Uber e os taxistas subissem o morro, eu nunca teria feito isso porque não teria mercado”, afirmou Alvimar.

Para o fundador da empresa, a criação de um serviço de transporte para atender algumas áreas específicas da periferia representa o descaso na região. “Aqui é assim. Nem TV a cabo chega, e por isso todo mundo faz gato (clandestino). Se a gente não fizer com nossas próprias mãos, ninguém faz pela gente.”

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