Ermínia Maricato: em SP, drama e potência do Brasil

Em carta a futuro prefeito ou prefeita, a grande urbanista expõe drama de nossas prefeituras. Capturadas pelo poder, só mobilização social pode resgatá-las

Por Erminia Maricatu, em seu blog

Pintura de Renato Neves

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Em carta a futuro prefeito — ou prefeita — a grande urbanista expõe drama de nossas prefeituras. Capturadas pelo poder, só apelo à mobilização social pode resgatá-las

Por Erminia Maricato, em seu blog | Imagem: Renato Neves

Seguindo o que é de praxe eu me congratulo com V.S. pela vitória eleitoral na mais importante cidade do país tomada aqui como polo econômico e político.

Antes de mais nada é preciso lembrar que São Paulo é uma metrópole formada por 39 municipalidades e V.S. foi eleita para governar um município. Mas ele é tão mais importante que os demais que é frequente a mídia e cidadãos dirigirem ao prefeito de São Paulo as demandas de toda a metrópole. A mobilidade é um exemplo: o município de São Paulo concentra 70% do emprego de toda a metrópole e grande parte dos trabalhadores, em especial os mais pobres, vem dos municípios vizinhos. Muitos deles funcionam como municípios dormitórios. A longa e desumana viagem diária nos trbillings_saibamais_1ansportes coletivos será, frequentemente, cobrada de V.S.. Se V.S. tiver sensibilidade para a vergonhosa desigualdade social que marca o país e para a ocupação predatória ao meio ambiente que predomina em nossa metrópole (onde aproximadamente 2 milhões de pessoas moram em área de proteção dos mananciais por absoluta falta de opção de alternativa residencial) seu sono estará comprometido.

Entretanto, se adotar uma postura mais realista em relação aos poderes que comandam “a cidade” e sua representação construída pelo aparato ideológico, em especial pelo mercado imobiliário, os quatro anos de gestão serão mais leves e poderão até render um salto significativo na carreira política. Há algum tempo atrás constatei que São Paulo concentrava 23% dos chefes de família, de todo o Brasil, que ganhavam mais de 20 salários mínimos. É a mais forte classe média do país e, quase com certeza, a mais conservadora. Ela é dominada pela ideologia do condomínio e totalmente ignorante sobre a realidade social, ambiental e institucional da metrópole. Nesse caso concentre-se no urbanismo do espetáculo, apoie as PPPs que sugam os recursos públicos para alimentar a reprodução dos capitais contrariando o discurso para o qual foram criadas. “Revitalize”, “modernize”, “reestruture”, faça “operações urbanas” ou coisa do gênero mas nunca saia dessa “cidade” do panelaço, ou dessa “casa grande”, pois para a opinião pública e o senso comum o resto não tem a menor importância. Muito menos o fato de termos uma metrópole desgovernada com 39 municipalidades atirando para diferentes lados e um governador ignorando a necessidade de contrariar interesses paroquiais de deputados, vereadores e prefeitos para implementar uma política de mobilidade mais eficiente, uma política de saneamento que planeje o presente e o futuro do serviço de água, esgoto, destinação do lixocorrego e, especialmente, a drenagem que recupere os cursos de água e combata mais eficazmente as enchentes e as epidemias provocadas pelo famoso mosquito. O controle sobre o uso do solo e, portanto, sobre a propriedade privada para que ela cumpra sua função social e ambiental (previstas na Constituição Federal e no Estatuto da Cidade) é o maior desafio para os municípios e para a metrópole. Planos não faltam e leis idem (veja o recente Estatuto da Metrópole).

Mas nem tudo é desgoverno, leis ignoradas, inclusive pelo Judiciário e Ministério Público, e elites que desconhecem a realidade próxima.

V.S. poderá dar continuidade a algumas iniciativas inovadoras que tiveram lugar na cidade de São Paulo em anos recentes.

5cc81f3a-7321-47fe-95f6-c4efbaee37d6A multiplicação das ciclovias e dos corredores de ônibus (que chegam a 500 km neste início de 2016), a diminuição da velocidade dos automóveis, a abertura da Avenida Paulista aos domingos para lazer (e outras 16 vias de bairro), o bilhete único mensal, a gratuidade da tarifa para certas faixas da população entre outras medidas, se continuadas, podem mudar uma das faces mais violentas da cidade. A diminuição de óbitos e acidentes no trânsito, a diminuição do tempo de viagem diária no transporte coletivo, a diminuição de viagens motorizadas e poluidoras são fatos que impactam positivamente a saúde mental e física da população como mostram pesquisas sobre o assunto. Certamente há muito por avançar mas desafiar o automóvel com seu poder absoluto e central na mobilidade urbana no Brasil não é pouco. Merece continuar.

O desbaratamento da quadrilha que funcionava na aprovação de projetos e na emissão de IPTUs, acontecida há três anos foi um golpe forte na corrupção municipal. A criação da Controladoria Geral do Município e sua institucionalização foi um grande passo para eliminar, dos quadros da máquina pública, os oportunistas que querem tirar vantagem de sua posição ao invés de servir ao público como deveriam pelo cargo que ocupam. A transparência propiciada pelo Portal da Prefeitura tem permitido acompanhar informações que dizem respeito a esse e outros assuntos. É o caso do Geo Sampa, instrumento que dá acesso a 152 bancos de dados em um único mapa digital.O desbaratamento da quadrilha que funcionava na aprovação de projetos e na emissão de IPTUs, acontecida há três anos foi um golpe forte na corrupção municipal. A criação da Controladoria Geral do Município e sua institucionalização foi um grande passo para eliminar, dos quadros da máquina pública, os oportunistas que querem tirar vantagem de sua posição ao invés de servir ao público como deveriam pelo cargo que ocupam. A transparência propiciada pelo Portal da Prefeitura tem permitido acompanhar informações que dizem respeito a esse e outros assuntos. É o caso do Geo Sampa, instrumento que dá acesso a 152 bancos de dados em um único mapa digital.A multiplicação das ciclovias e dos corredores de ônibus (que chegam a 500 km neste início de 2016), a diminuição da velocidade dos automóveis, a abertura da Avenida Paulista aos domingos para lazer (e outras 16 vias de bairro), o bilhete único mensal, a gratuidade da tarifa para certas faixas da população entre outras medidas, se continuadas, podem mudar uma das faces mais violentas da cidade. A diminuição de óbitos e acidentes no trânsito, a diminuição do tempo de viagem diária no transporte coletivo, a diminuição de viagens motorizadas e poluidoras são fatos que impactam positivamente a saúde mental e física da população como mostram pesquisas sobre o assunto. Certamente há muito por avançar mas desafiar o automóvel com seu poder absoluto e central na mobilidade urbana no Brasil não é pouco. Merece continuar.

A coleta seletiva do lixo está chegando a todos os distritos. Dimin270913---coleta-de-lixo---intuir a carga de lixo que vai para descarte aumentando a carga de lixo que vai criar riqueza e emprego é uma necessidade muito óbvia, mas somente agora esse serviço foi estendido.

O município de São Paulo está mostrando como podemos contribuir para salvar o que resta da ameaçada Mata Atlântica localizada no sul da metrópole. A cidade voltou a ter zona rural de acordo com seu último Plano Diretor. A beleza da Mata Atlântica pode ser vista nas exposições que o Royal Botanic Gardens da Inglaterra está promovendo sobre a flora brasileira neste momento. Especialistas que fazem parte do quadro da prefeitura mostram que a alta biodiversidade se estende também à vida animal. E tudo isso, aliado às cachoeiras e riachos limpos está apenas a 40 km do coração da cidadoncae, acessível por ciclovia. O ecoturismo que está sendo incrementado inclui um circuito gastronômico e visita a agricultores que estão se adaptando à agricultura orgânica com apoio da prefeituracachoeira. Ao invés de proibir o uso do solo, coisa que não funcionou já que há lei nesse sentido desde 1976, trata-se de dar alternativas virtuosas a esse uso visando a preservação da mata, da água, da fauna e, visando ainda, a criação de emprego. (Esses itens extremamente virtuosos convivem com uma forma extremamente precária de moradia pobre fomentada por loteadores clandestinos, sem que a CETESB, a quem cabe a competência, na Região Metropolitana, apresente uma forma eficaz de fiscalização).

Essas e outras conquistas recentes não deveriam correr riscos de regressão numa cidade tão marcada pela pujança quanto pela desigualdade. Segurança alimentar, tempo integral nas escolas, investimentos em infraestrutura nas periferias assoladas pelos mosquitos, drenagem em áreas castigadas pelas chuvas anuais são iniciativas que devem se consolidar. Mas isso não impede o reconhecimento de que São Paulo vive um momento interessante apesar da dimensão dos problemas. Há uma multiplicação de iniciativas ligadas à arte (literatura, teatro, música, grafite) e aos direitos hsarau-da-cooperifa1umanos nas periferias. Chama atenção em especial a ampliação da luta anti preconceito racial (o correto seria dizer de cor) e de gênero (os idosos têm, nos transportes da cidade de São Paulo, um tratamento tão humano que encontramos em raras cidades do mundo). Um número inédito de estrangeiros jovens buscam a cidade para viver iniciativas inovadoras na área da cultura e o negócio dos Hostels ganha importância econômica crescente.

O carnaval próximo passado mostrou que a cidade está mudando. Centenas de milhares de paulistanos desistiram de enfrentar congestionamentos nas estradas para viver um carnaval livre e democrático nos cordões e blocos de rua. Isso está em consonância com movimentos de jovens que se apropriam dos espaços públicos como “bem comum”. As iniciativas sociais, essa energia dos jovens que rejeitam viver a estética e a alienação promovidas pela ditadura da mercadoria talvez sejam o maior patrimônio com que V.S. pode contar. Não podemos nos esquecer que cada metro quadrado de São Paulo é mercadoria que pode ser apropriada diretamente, privadamente, ou por meio de atribuição de renda aos imóveis próximos dos investimentos feitos pelos governos. A luta é desumana mas ao mesmo tempo surda e sutil: trata-se de decidir onde será aplicado cada centavo da riqueza supostamente “pública”. O financiamento de campanha e os interesses imobiliários direcionam os fundos públicos sufocando o “bem comum”. Não me refiro aqui em tirar partido ou cooptar esses movimentos o que seria imperdoável apesar de fazer parte da história do país. Movimentos devem ser livres e respeitados em sua independência embora seja doloroso a um governante enfrentá-los com todas as limitações que tem um governo em um país de tradição patrimonialista na periferia do capitalismo global. Eu proporia que V.S. tentasse desenvolver campanhas de conscientização na linha da pedagogia transformadora de Paulo Freire. Creio mesmo que seria importante investir parte do fundo público em desenvolver conhecimento e informação sobre a cidade real e buscar parcerias com a sociedade. Seriam as PPS- Parcerias Público Sociais. Os temas são muitos mas eu gostaria de sugerir alguns:

  • A importância da população acompanhar a elaboração e realização do orçamento público para tirar da influência exclusiva dos lobbies. Projetos e obras não prioritários para a cidade, que conseguimos derrotar recentemente como o Túnel da Operação Urbana Águas Espraiadas e o Aeroporto Privado em Parelheiros, Área de Proteção dos Mananciais, certamente voltarão à pauta. O Arco do Futuro, operação urbana que reúne interesses do mercado imobiliário também disputará recursos públicos com o transporte coletivo, a educação e a saúde.
  • Conhecer a história e a geografia da cidade. Conhecer seu patrimônio cultural, artístico e ambiental. Vale a pena criar uns pequenos vídeos sobre isso além de promover excursões escolares aos lugares de maior interesse. Já tive oportunidade de constatar que as crianças e jovens da periferia raramente saem de seus precários bairros. Geografia e história são ensinadas, no mais das vezes de forma alienante.
  • Outros temas importantes para campanhas sociais: preço da coleta do lixo jogado nas ruas. O destino do lixo não recolhido nos córregos e rios.
  • O que implica a coleta seletiva: diminuir o lixo descartado, criar riqueza e emprego
  • A poluição do ar e da água e suas consequências . Os córregos ocultos sobre avenidas asfaltadas.
  • A relação entre saúde e alimentação.
  • Outros, outros.

A informação desvinculada de interesses lucrativos é, sem dúvida, o maior dos “bens comuns”. Nossa população é frequentemente tratada como estúpida, raramente como parceira que pode ser sujeito na melhora do ambiente coletivo. Contribui para isso a campanha de rebaixamento da auto-estima nacional que fazem, com certa obsessão, os principais veículos de comunicação.

Finalmente quero me referir ao tema que me diz respeito.

Dediquei mais de 40 anos da vida estudando política urbana e habitacional. Além das atividades acadêmicas, pude ocupar cargos públicos que me deram uma referência bem realista sobre os interesses e conflitos que envolvem o dia a dia de uma metrópole como a nossa. O apelo que faço é o de garantir o direito à cidade a um número maior de paulistanos. Isso implica em levar à cidade esquecida, a cidade ilegal, a cidade precária e periférica investimentos em infraestrutura: mobilidade, água, esgoto, coleta de resíduos sólidos e drenagem.

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Cobre a Sabesp, cobre a Eletropaulo (esta deve melhorar a vergonhosa infraestrutura na distribuição da energia, inclusive no centro da cidade). Isto implica também em fazer a elite paulistana engolir (perdoe-me a radicalidade) projetos de habitação social nas áreas centrais de São Paulo onde os empregos se concentram. Existe uma equipe de profissionais prediofazendo um estudo sobre os edifícios vazios ociosos situados no centro de São Paulo. Quem sabe finalmente consigamos sensibilizar o Judiciário, aplicar a Lei Federal do Estatuto da Cidade e promover moradias sociais na área central da cidade.

No final de 2015 uma nova equipe de profissionais assumiu a Secretaria de Habitação e a COHAB- Companhia de Habitação do Município de São Paulo sobre a liderança do Professor da FAUUSP, João Whitaker Ferreira. Talvez eu seja suspeita para defender a continuidade dessa equipe já que muitos foram meus alunos de mestrado e doutorado além de colegas de magistério na universidade, mas vou fazê-lo. São Paulo precisa de profissionais estudiosos, engajados socialmente e desinteressados de usar os cargos públicos para usufruir vantagens econômicas para si ou para outros. Já tivemos períodos de ter orgulho da arquitetura dos conjuntos habitacionais, inseridos na cidade, construídos com baixo custo, boa qualidade e participação social. Podemos voltar a tê-lo.

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Um comentario para "Ermínia Maricato: em SP, drama e potência do Brasil"

  1. josé mário ferraz disse:

    Louvável o esforço em prol de melhor qualidade de vida para os habitantes de São Paulo ou qualquer lugar. Entretanto, como ter qualidade de vida em maio a tanto barulho proveniente de tanta gente? Do grande aglomeração, além do barulho altamente danoso à saúde, nascem infinitos outros problemas como água, ar, e comida de boa qualidade. Por que será que a ninguém ocorre uma reforma agrária que esvazie as grandes cidades? Dona Cátia Abreu, Ronaldo Caiado e os demais grandes proprietários rurais estariam a favor.

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