Temer inicia o ataque ao SUS

Ministério da Saúde propõe normas que comprometem Estratégia de Saúde da Família, um dos pilares do sistema. Mas a resistência já se movimenta

Por André Antunes, na EPSJV/Fiocruz

Temer e o ministro Ricardo Barros: estratégia e minar as bases do SUS, sem alarde

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Temer e o ministro Ricardo Barros: estratégia e minar as bases do SUS, sem alarde

Ministério da Saúde propõe normas que comprometem Estratégia de Saúde da Família, um dos pilares do sistema. Mas a resistência já se movimenta

Por André Antunes, na EPSJV/Fiocruz

Terminou em 7 de Agosto a consulta pública sobre a proposta de revisão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB). A iniciativa foi pactuada no último dia 27 de julho, durante reunião da Comissão Intergestores Tripartite (CIT). O órgão, que reúne representantes do Ministério da Saúde, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), vem, desde o final do ano passado, discutindo uma proposta de portaria para substituir a PNAB vigente, instituída em outubro de 2011.

Entidades ligadas à Saúde Coletiva, porém, têm expressado preocupação e desconfiança com relação ao conteúdo da minuta da portaria que pretende reformular a PNAB. Em nota, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes) e a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) se posicionaram contra a revisão, que, argumentam, representa uma ameaça aos princípios de universalidade, integralidade, equidade e participação social no Sistema Único de Saúde. “Causa imensa preocupação”, diz o texto da nota, “a proposição de uma reformulação da PNAB num momento de ataque aos direitos sociais estabelecidos na Constituição Federal de 1988, e de sítio fiscal imposto com a promulgação da Emenda Constitucional 95, que agravará o subfinanciamento crônico do SUS, reduzindo progressivamente seus recursos por 20 anos”. Embora considere importante uma revisão da PNAB, a professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Camila Borges concorda que o momento não é propício para uma reformulação. “Em um contexto de enxugamento de recursos, ajuste fiscal, diminuição do quadro de trabalhadores, nenhuma revisão da PNAB pode ser coerente com a lógica das necessidades de saúde da população. Nenhum dos problemas que deveriam ser resolvidos serão sanados por essa nova portaria”, avalia.

Saúde da Família: prioridade?

O principal questionamento à proposta em discussão gira em torno de alterações que, segundo a nota da Abrasco, Cebes e Ensp, revogam a prioridade do modelo assistencial da Estratégia de Saúde da Família (ESF) no âmbito do SUS. Embora o texto da revisão afirme a Saúde da Família como estratégia prioritária para expansão e consolidação da Atenção Básica, ela acaba com o mecanismo de indução financeira que incentiva a implementação das equipes de ESF pelos municípios. O repasse de recursos federais para a atenção básica hoje se dá através do Piso da Atenção Básica (PAB), que se divide em duas modalidades: o fixo, calculado com base em um valor per capita, e o variável, que condiciona os repasses federais a uma série de critérios estabelecidos no texto da PNAB atual. Entre esses critérios está a implantação, pelos gestores municipais, de equipes de Saúde da Família. A proposta de revisão coloca as equipes de ESF como apenas uma dentre outras configurações passíveis de serem contempladas com repasses federais. Outra crítica importante diz respeito à criação de uma “equipe de Atenção Básica”, na qual, ao contrário das equipes de Saúde da Família, a presença dos agentes comunitários de saúde (ACS) é opcional. E a revisão vai além, reduzindo de quatro para um o número mínimo de ACS por equipe de Saúde da Família.

ACS na mira

Segundo os analistas ouvidos pelo Portal EPSJV, as mudanças estão alinhadas a outras propostas polêmicas apresentadas recentemente pelos entes federados responsáveis pela gestão do SUS, como as portarias 958 e 959, de maio de 2016, que possibilitavam a substituição dos ACS por profissionais como o técnico em enfermagem nas equipes da Estratégia de Saúde da Família. As portarias acabaram sendo revogadas em meio ao movimento contrário às medidas organizado por entidades de representação dos ACS. Já em outubro, durante o 7º Fórum Nacional de Gestão da Atenção Básica, promovido pelo Departamento de Atenção Básica do Ministério (DAB/MS) para debater com Conass e Conasems a revisão da PNAB, surgiu a proposta de fundir os ACS e os Agentes de Combate às Endemias (ACE) em uma só categoria. Mais uma vez houve reação dos trabalhadores, que se mobilizaram para aprovar, na Câmara dos Deputados, o projeto de lei 6.436/16, que estabelece as atribuições dos ACS e dos ACE. Considerado pelas categorias uma forma de garantir segurança jurídica em meio às ameaças vindas das três esferas de gestão do SUS, o projeto se encontra atualmente na Comissão de Assuntos Sociais do Senado.

Para Camila Borges, em um contexto de escassez de recursos para a saúde pública, tendo em vista principalmente a entrada em vigor em 2018 dos dispositivos da Emenda Constitucional 95, que limita os gastos da União pelos próximos 20 anos, a tendência é que os gestores municipais optem pela implantação das equipes de atenção básica tradicionais, sem ACS. O impacto disso pode ser uma reversão do modelo assistencial na atenção básica para uma lógica biomédica, deixando de lado a perspectiva de organização da rede de atenção com base nas necessidades dos territórios e na determinação social do processo saúde-doença trazida pela Estratégia de Saúde da Família, que tem nos ACS uma peça fundamental. “Vou dar um exemplo que ouvi de um município no Nordeste: percebeu-se numa região que sempre que havia chuva forte, grande parte da comunidade tinha problema de aumento de pressão. O que os agentes comunitários, que conhecem o território, conseguiram perceber? Que a parcela dessa população que passa por esse pico de pressão arterial era aquela que morava em regiões mais propensas a desabamento, onde a moradia era mais precária. E aí o que foi o movimento a partir disso? Organizar esse diagnóstico e apresentar para o poder público como uma demanda por moradia”, diz Camila, complementando em seguida: “Esse é o diferencial da Estratégia de Saúde da Família: em vez de só ter usuário indo à unidade de saúde dizer o que dói, você amplia esse processo de trabalho e faz com que o profissional vá até às casas, até a comunidade, para que ele possa perceber coisas além da dor, além da doença. Se você transforma essa equipe numa equipe tradicional, você perde esse olhar e essa responsabilidade de um diagnóstico ampliado. Uma equipe de saúde tradicional não tem trabalhador disponível para fazer esse tipo de coisa”, alerta.

A professora da EPSJV questiona ainda outras mudanças trazidas na proposta de revisão que, segundo ela, aprofundam a lógica biomédica da atenção básica. A minuta da portaria de revisão da PNAB inclui, como atribuição de médicos, enfermeiros e dentistas o planejamento, gerenciamento e avaliação do trabalho dos agentes comunitários de saúde. “Na PNAB atual quem faz isso é só o enfermeiro. Agora você tem médico e dentista sendo somados a esse escopo de profissionais que planeja e gerencia o trabalho do ACS. Mais uma vez se está submetendo este técnico, que deveria ter um olhar ampliado, à avaliação de profissionais que trabalham numa lógica predominantemente biomédica, e que não têm formação que os capacite pra avaliar o trabalho do ACS”, pondera.

Ex-conselheira do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e representante do Cebes em um grupo de trabalho do CNS que vem, desde janeiro, discutindo a proposta de revisão da PNAB defendida pela CIT, Liu Leal acredita que a redefinição do papel dos ACS e da Estratégia de Saúde da Família na nova política pode instaurar uma perspectiva de universalização seletiva dentro da atenção básica. Ela explica que na PNAB atual o número de ACS por equipe deve ser suficiente para atender a 100% da população cadastrada, com um máximo de 750 pessoas por ACS e de 12 agentes por equipe. Já a revisão deixa isso em aberto, afirmando apenas que o número de ACS por equipe “deverá ser definido de acordo com base populacional (critérios demográficos, epidemiológicos e socioeconômicos), conforme legislação vigente”. “Com a revisão pode ser que haja equipe com apenas um ACS. E aí ele vai ter que encontrar a população que ele assiste. Ele vai optar que ele só vai ver gente acamada, por exemplo? Ele vai optar que só vai ver gente de baixa renda, de menos de um salário mínimo? Qual é o critério? Por isso é que é uma universalização seletiva”, alerta.

Liu destaca que as populações atendidas pelas equipes de Saúde da Família Ribeirinhas devem ser das mais prejudicadas. A PNAB em vigor instituiu que cada equipe de Saúde da Família na modalidade de atenção a ribeirinhos necessita ter, no mínimo, seis ACS. Se a nova proposta vingar, a presença dos ACS se torna opcional. “Nesses locais é preciso ter alguém que olhe a continuidade do cuidado, porque o barco que vai com a equipe passa de 40 em 40 dias. A ideia de ter algum trabalhador como os ACS, que fique em alerta, que monitore, que esteja ali dando os primeiros atendimentos, é fundamental. Em alguns lugares inclusive eles repactuam atribuições. O ACS pode aferir pressão? Em lugares do Norte afere, aplica injeção, faz tudo, porque é o único profissional que tem”, explica. E completa: “Imagina uma mulher grávida, por exemplo, que vai ter acesso à equipe de 40 em 40 dias e olhe lá. Com a revisão, se o gestor opta por implantar uma equipe sem ACS, pode ser que nesse período ela não tenha contato com nenhum cuidador da rede. É muito cruel”.

Focalização da atenção básica?

Somada ao questionamento do lugar da Saúde da Família e dos ACS na nova política, a outra crítica que vinha sendo feita por pesquisadores ao texto da revisão da PNAB dizia respeito à introdução da chamada “Carteira Nacional de Serviços Essenciais e Estratégicos da Atenção Básica”, documento cuja definição caberia ao Ministério da Saúde para nortear a organização da oferta de ações e serviços de saúde da atenção básica no nível municipal. Diante dos questionamentos feitos pelo CNS, entre outras instituições, ao emprego do termo “carteira” – que segundo o conselho tem um claro viés mercadológico, sendo utilizado em alguns municípios como o Rio de Janeiro para orientar contratos de gestão com organizações sociais (OS) – o termo acabou sendo substituído por “Relação Nacional de Serviços Essenciais e Estratégicos da AB” na minuta da portaria de revisão da PNAB que foi para consulta pública. Permanece, no entanto, a segmentação entre serviços “essenciais” e “estratégicos”, o que para Liu Leal é um problema. “É uma coisa estranhíssima. Como definir quais cuidados são mais essenciais e quais são mais estratégicos? Se eu não respondo à necessidade da totalidade do território, eu respondo ao quê então? Para a gente é quase um retorno ao Inamps, a um modelo centrado em procedimentos”, critica. A professora-pesquisadora da EPSJV Camila Borges também alerta para a homogeneização que um documento como esse pode trazer. “Não é o Ministério da Saúde lá em Brasília que vai ser capaz de dizer qual é o mínimo necessário no meu território. Se a lista de serviços é definida nacionalmente, num país que tem tanta desigualdade e diferença, não tem como ela contemplar isso”, aponta ela. Já a nota assinada por Abrasco, Cebes e Ensp/Fiocruz, alerta que este dispositivo, no Brasil, poderá servir a uma lógica de focalização da atenção básica, o que comprometeria a integralidade do SUS.

Pouco diálogo e pouco tempo de debate

Aliado aos questionamentos do conteúdo da revisão há também uma preocupação com o processo de elaboração da revisão da PNAB, que segundo Liu Leal vem se dando de maneira acelerada e pouco participativa. Embora considere importante a decisão de colocar o documento para consulta pública, Liu acredita que o prazo de 10 dias foi curto para um debate tão complexo. “Foi importante eles terem aberto para consulta pública porque aí a gente faz as pessoas falarem mais sobre o assunto. Mas a maioria das pessoas está ainda tentando entender o que está acontecendo porque só se teve acesso à proposta agora. Não é justo dar um prazo tão curto”, conclui.

A falta de diálogo vem sendo uma das críticas feitas por entidades de classe, trabalhadores e movimentos sociais pelo menos desde o 7º Fórum Nacional de Gestão da Atenção Básica (leia aqui matéria do Portal EPSJV sobre o evento). Segundo Liu, mesmo o GT formado dentro do Conselho Nacional de Saúde para discutir a revisão teve dificuldade para obter os documentos com as propostas que estavam sendo discutidas na Comissão Intergestores Tripartite. “Para você ter uma ideia o GT se conforma no início do ano e a gente só tem acesso formal ao documento com as propostas de revisão no final de maio. Houve um esvaziamento do espaço do conselho pelos gestores. Só agora, em julho, foi que a gente conseguiu colocar os três entes na mesa – Ministério, Conass e Conasems – para discutir com o CNS a revisão”, revela. O debate aconteceu durante reunião do pleno do CNS do dia 7 de julho, ocasião em que, segundo Liu, foi apresentado um documento com questionamentos à proposta de revisão pelo CNS, com os gestores se comprometendo a participar do GT formado pelo conselho para discutir a revisão.

Durante reunião da CIT no dia 27 de julho, porém, os gestores pactuaram a consulta pública da proposta, com alterações que responderam à parte dos questionamentos feitos pelo CNS, mas que não foram suficientes para dar conta dos principais problemas identificados pelo Conselho e por especialistas e entidades na revisão. Para Liu, a consulta pública nesse momento representou um rompimento da agenda com o CNS. “Todos os nossos questionamentos foram feitos sem que ninguém da CIT houvesse sequer apresentado formalmente as propostas.  E o que eles disseram foi que a gente estava questionando sem necessidade porque o documento que a gente estava analisando estava desatualizado, tinha muitos pontos em aberto ainda que estavam sendo discutidos. Todas as falas eram de que não existia documento estruturado a ponto de ser pactuado”, aponta. Ela teme que a revisão da PNAB já seja pactuada no dia 17 de agosto, quando está marcada uma reunião extraordinária da CIT para analisar as contribuições enviadas através da consulta pública. “Se a gente conseguir fazer uma mobilização, para constranger, para frear esse processo, que é o que a gente tem tentado fazer desde janeiro e não tem conseguido, pode ser que no dia 17 não aconteça a pactuação. Mas no contexto que a gente está vivendo eu não tenho tanta esperança nisso”, lamenta.

Outro lado

O Portal EPSJV entrou em contato com a assessoria de imprensa do Ministério da Saúde na segunda-feira (31/07) solicitando uma resposta do órgão aos questionamentos feitos por entidades como Abrasco e pelos especialistas ouvidos para essa matéria. A reportagem solicitou ainda que o Ministério listasse os argumentos que justificam a revisão da PNAB no atual contexto. Na quinta-feira (03/08), a assessoria pediu que a reportagem aguardasse as respostas, que seriam enviadas na manhã desta sexta. Até o fechamento da matéria, o Ministério não respondeu.

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