A volta do Lampião, jornal gay que aloprou a ditadura

Em documentário, a história e ousadia de publicação que desafiou censura ao denunciar, irreverente e desbocado, o conservadorismo moral e a marginalização dos homessexuais

Por Débora Lopes, na Vice

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Em documentário, a história, ousadia e percalços de publicação que desafiou censura ao denunciar, irreverente e desbocado, o conservadorismo moral e a marginalização dos homessexuais

Por Débora Lopes, na Vice

Abril de 1978, tempos de ditadura. A primeira página da edição zero do jornal Lampião da Esquina traz um editorial de apresentação enfático. Nele, as palavras: “É preciso dizer não ao gueto e, em consequência, sair dele. O que nos interessa é destruir a imagem-padrão do homossexual, segundo a qual ele é um ser que vive nas sombras, que prefere a noite, que encara sua preferência sexual como uma espécie de maldição”.

Neste mês, Lampião da Esquina, o filme, ganha as telas de São Paulo e do Rio de Janeiro durante o festival É Tudo Verdade, contando a história do jornal que sacudiu a moral e os bons costumes da sociedade brasileira durante os anos de chumbo. Produzido pela Doctela e coproduzido pelo Canal Brasil, o documentário, que estreou no último sábado (9), terá mais quatro exibições (veja as datas no final da matéria).

“O Lampião é um jornal, não é uma brincadeira de bichinhas”, esbraveja durante entrevista no filme o então editor e hoje dramaturgo de novelas Aguinaldo Silva. As entrevistas trazem também depoimentos de João Silvério Trevisan, Glauco Mattoso, Laerte e Ney Matogrosso.

“A volta do esquadrão mata-bicha”, “Repressão: essa ninguém transa”, “Louca e muito da baratinada” e “Fortíssimo babado” eram algumas das manchetes publicadas no Lampião, que desfrutava libertinamente da língua portuguesa. A publicação não só celebrava a cultura homossexual, como também denunciava crimes de ódio contra gays, mulheres, negros e índios. “Há uma linguagem da subcultura gay. E é essa que vamos usar pra falar no jornal”, relata no filme o escritor e cineasta João Silvério Trevisan, que compunha a equipe.

Dirigido pela cineasta Lívia Perez, o documentário traz 82 minutos de histórias que cercavam um dos nanicos (como eram conhecidos os jornais menores) mais polêmicos que já existiram no país. Não só por seu conteúdo, mas porque Lampião da Esquina era ousado, escandaloso – “lacrador”, poderíamos dizer em pleno 2016. “Acredito que ele tenha pautado muito do que ainda estamos discutindo hoje”, justifica a diretora. “Liberação sexual, movimento feminista, aborto, legalização das drogas, racismo e, sobretudo a possibilidade de uma mídia livre que traga perspectivas alternativas.”

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Cigarro entre os dedos, cotovelos na mesa e um entrevistado rodeado por jornalistas de bigode e camisa semiaberta. Esse era o tipo de entrevista que os repórteres do Lampião faziam – coisa absolutamente inexistente no jornalismo hoje em dia, sustentado por papos enxutos por telefone, WhatsApp e e-mail com as fontes.

As entrevistas do filme mostram o desenrolo manual da profissão na época, desde a dificuldade com gravadores enormes e a diagramação artesanal até o preconceito para conseguir distribuir o Lampião pelas bancas do Brasil.

Foi preciso muita bateção de pé para que distribuidoras e jornaleiros topassem comercializar aquela diminuta publicação com manchetes tão intrépidas. “Houve um momento em que um grupo paramilitar começou a soltar bomba em bancas [de jornal] e deixava panfletos dizendo: ‘enquanto vocês venderem tais jornais, nós vamos atacar vocês’. E lá estava o nome do Lampião”, relembra Trevisan no documentário.

Um dos entrevistados no longa, o cantor Edy Star relembra também que, obviamente, muita gente ficou incomodada. “Era muito atrevimento um jornal de viado contando casos de viado abertamente; dizendo o que estava acontecendo com as bichas, que matavam as bichas.”

O filme de Lívia vai direto ao ponto: é o tipo de documentário-padrão, sem takes artísticos ou dramalhão. O importante está ali, na contação de história dos entrevistados que fizeram do Lampião o que ele se tornou. Para ilustrar esses causos, a arte do filme faz montagens divertidas com trechos do jornal. E a trilha sonora, assinada por Paulo Azeviche, relembra canções homoeróticas brasileiras, como “Androginismo“, da dupla de irmãos Kleiton e Kledir, que nos anos 70 formavam a banda Almôndegas. “Quem é esse rapaz que tanto androginiza, que tanto me convida pra carnavalizar? Que tanto se requebra no céu de um salto alto, que usa anéis e plumas a lantejoulizar?”, diz a letra – mais que propícia.

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“Viado gosta de apanhar? Uma viagem ao mundo dos sadomasoquistas.” Foi com essa manchete que o Lampião encerrou, definitivamente, seu expediente em junho de 1981. Dos males o menor: agora, além de todas as edições devidamente digitalizadas e disponibilizadas online, temos um documentário para registrar a existência desse clássico marginal do jornalismo brasileiro. Lívia, a diretora, nos brinda com boas notícias. “O filme deve continuar participando de festivais pelo próximo ano e temos intenção de lançá-lo nos cinemas de todo Brasil”, revela. “Ele também será exibido no Canal Brasil, que além de coprodutor também licenciou o filme.” Vida eterna ao Lampião da Esquina.

Saque as datas de exibição do filme:

São Paulo

13/04 – Qua – 20h – Centro Cultural São Paulo (Rua Vergueiro, 1000)

14/04 – Qui – 14h – Itau Cultural (Avenida Paulista, 149)

Rio de Janeiro

15/04, Sex, 20h no IMS ( R. Marquês de São Vicente, 476 – Gávea)

16/04, Sáb, 18h no Itau Botafogo (Praia de Botafogo, 316 – Botafogo)

Todas as entradas do É Tudo Verdade são gratuitas, mas é preciso chegar mais cedo para conseguir lugar. Para mais informações, acesse o site do festival clicando aqui.

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Um comentario para "A volta do Lampião, jornal gay que aloprou a ditadura"

  1. Tiago Simões disse:

    Agradeço ao site por me dar ciência da existência desse documentário!

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