A curiosa relação da USP com as cotas

Universidade resistiu à reserva de vagas. Mas um fato pouco conhecido revela: desprezada pela elite em seus primórdios, ela foi salva pelos alunos de escolas públicas…

Por Haroldo Ceravolo Sereza, no Opera Mundi

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Universidade resistiu por décadas à reserva de vagas. Mas um fato pouco conhecido revela: desprezada pela elite em seus primórdios, ela foi salva pelos alunos de escolas públicas…

Por Haroldo Ceravolo Sereza, no Opera Mundi

Na última terça-feira (04/07), o conselho universitário da Universidade de São Paulo decide se adota ou não cotas raciais, como já fez, recentemente, a Unicamp. Há excelentes estudos mostrando o sucesso e as necessidades das cotas circulando no país nos últimos anos, desde que a UERJ adotou o modelo. Sabemos abundantemente do sucesso acadêmico dos alunos cotistas da UERJ – e do fracasso administrativo dos governantes do Rio. É um caso suficientemente ilustrativo de onde está de fato o problema da nossa universidade. Meu argumento, portanto, não será conjuntural: deixo para os militantes do movimento negro e para os especialistas. Meu argumento de que a USP precisa, com urgência, de cotas é histórico.

Para resolver um problema de sua formação, a USP recorreu a um método muito semelhante ao das cotas e também a bolsas de estudo para manter os alunos. O método deu certo nos anos 1930 e tem tudo para dar de novo. Por que vivemos um impasse semelhante diante da população negra.

Fiz minha graduação (ECA) e meu doutorado (FFLCH) na USP. Mas não vou invocar a minha experiência como aluno para opinar: invoco o estudo que fiz sobre um dos seus professores mais emblemáticos, Florestan Fernandes. Publiquei, em 2005, um livro, intitulado Florestan – A inteligência militante, que é uma espécie de perfil intelectual. A partir da biografia de Florestan, procurei entender os caminhos de seu pensamento, tomando o cuidado para não achar que a vida explica sempre a obra ou vice-versa. Meu intuito era entender como tal vida e tal obra foram possíveis.

Quando comecei a fazer a pesquisa, a convite da editora Boitempo, vi-me diante de uma grande paradoxo: há um lugar comum que diz que a USP foi criada para elite, que ela é uma universidade de elite e que nela não há espaço para os mais pobres. Como, então, um filho de uma empregada doméstica não alfabetizada, que teve de abandonar os estudos na terceira série do fundamental para trabalhar e que concluiu sua formação num curso de madureza conseguiu primeiro se tornar aluno e depois professor emblemático da Faculdade de Filosofia e da própria universidade? E, antes disso, como pôde perceber que esse caminho estava aberto a gente “da ralé”, como ele mesmo se definia?

A resposta estava, primeiro, em entender Florestan como um “destino ímpar”, como classificou a professora Sylvia Geminignani Garcia, num excelente livro sobre o sociólogo. E também na compreensão da trajetória da USP. Vou transcrever um longo trecho do meu livro, porque essas reflexões não são de agora e não nasceram para esse debate. Mas elas permitem entender que, se o projeto original da elite paulistana tivesse dado certo, a USP não seria a USP; as faculdades de sociologia, física, química, biologia, história, letras, etc. não seriam algumas das mais importantes produtoras de conhecimento do país, mas um clube de diletantes sem alunos.

Sim, a USP só virou USP porque a USP da elite, a USP de 1932, a USP bandeirante deu errado. E um sistema muito semelhante ao de cotas foi posto em funcionamento. Esse sistema se impôs pela necessidade e se manteve pelo sucesso: ele incluiu filhos de trabalhadores antes marginalizados na produção do conhecimento e na construção da universidade e mudou totalmente o perfil dos formandos pelas escolas de nível superior: um contingente enorme de mulheres entrou e se formou na universidade.

Porém, uma parte da questão não foi resolvida: as “cotas” do passado não foram suficientes para que a população negra fosse incluída na universidade. De certo modo, a inclusão de parte dos trabalhadores na USP e nas universidades ajudou a ampliar a distância entre brancos e negros na sociedade brasileira. O “embranquecimento” da população e sobretudo da elite apoiou-se nessa divisão de classe durantes décadas e décadas do século 20. E essa é uma das questões que fazem urgente a adoção de cotas raciais hoje.

Formandos e professores na Catedral da Sé, década de 1940

Assim, podemos dizer que a USP nunca foi totalmente uma universidade aberta para o povo, mas também, para a graça da universidade e do país, também nunca mais foi a universidade sonhada pela elite: daí, inclusive, o permanente conflito entre esses dois projetos, um mais elitista e outro mais democrático. Em minha opinião, a história mostra que, toda vez que o projeto mais democrático avança, ganha a sociedade e ganha a USP: e é isso que representa a adoção de cotas hoje.

Aqui vai essa história (volto depois desse longo trecho para comentá-lo):

Antes de narrar a volta de Florestan aos estudos e sua entrada na vida universitária, vale a pena lembrar que a Universidade de São Paulo só foi criada em 1934, e que a ELSP (Escola Livre de Sociologia e Política) de São Paulo, onde fez seu mestrado, surgiu um ano antes, quando Florestan tinha apenas treze anos. O projeto de criação da Universidade de São Paulo pela elite paulista remonta aos últimos anos da década de 1920. Embalada pelo movimento modernista, de 1922, e pela industrialização, um dos nomes mais representativos dessa elite, Júlio de Mesquita Filho, diretor do jornal O Estado de S. Paulo, propôs a criação de uma universidade que deveria tornar-se o “principal centro científico da América do Sul”.

A questão do ensino e da pesquisa em nível superior colocava-se cada vez mais fortemente em São Paulo e no Brasil, mas os problemas relacionados à educação não eram percebidos apenas nessa esfera. A educação apareceu, para os “bons homens” de São Paulo, como um caminho para responder a uma série de questões “novas” — ou, melhor dizendo, “modernas”: a influência cultural e econômica dos imigrantes, o analfabetismo, as precariedades da administração pública e o desejo de controlar também por intermédio do universo das ideias uma massa que se agitava e conquistava seus espaços por meio de movimentos reivindicatórios e mesmo de organizações políticas (a fundação do Partido Comunista do Brasil, PCB, ocorre em 1922, como é bem sabido, buscando suas bases num operariado já formado pelo discurso sindical e anarquista).

É nesse espírito que Fernando de Azevedo, um ex-seminarista e educador militante ligado ao grupo do Estado, organiza, em 1926, o inquérito sobre a instrução pública, a pedido de Júlio de Mesquita Filho. A reforma Francisco Campos, no primeiro governo Getúlio Vargas, em 1931, regulamentaria o sistema de ensino superior e abriria o caminho para a criação da Universidade de São Paulo com uma forte faculdade de filosofia, seguindo um modelo europeu e, particularmente, francês. Com a Revolução de 1930 e a derrota da “contra-revolução” de 1932, os paulistas, na definição do modernsta Sérgio Milliet, ligado à “ala cultural” do Partido Democrático e que dirigiria por longos anos a Biblioteca Municipal, passam a procurar “noutro campo a solução de seus problemas: o campo da educação e do ensino”. Segundo ele, num raciocínio que podemos estender à USP, o projeto da Escola Livre de Sociologia e Política “liga-se intimamente” à percepção de “inutilidade das guerras civis’: E, partindo do princípio de que “todo o problema da época moderna é um problema educacional”, Milliet chega a prometer:

De São Paulo não sairão mais guerras civis anárquicas; sairá, isso sim, uma revolução intelectual e científica, suscetível de mudar as concepções econômicas e sociais dos brasileiros; de fazer do nosso país uma grande potência de nação.”

Sylvia Gemignani Garcia, que estudou a formação de Florestan Fernandes, escreve que, entre a corrupção oligárquica da política, o anti-humanismo utilitarista e a ameaça das massas incultas, os liberais paulistas projetaram-se em uma concepção de universidade que permitiu a afirmação de uma independência, fundada na cultura e na ciência, contraposta à subordinação dos “coronéis” e dos imigrantes ao poder e ao dinheiro, respectivamente.

Tal necessidade política levou à doção de um critério pouco usual, pelo menos na  história brasileira, de seleção: o recrutamento, segundo o projeto, seria feito com base em critérios acadêmicos e científicos de organização, e não respondendo aos tradicionais critérios “econômicos, políticos ou doutrinários”. Daí, por exemplo, a decisão de contratar professores estrangeiros, especialmente franceses, que tanto marcaria a trajetória da Universidade de São Paulo.

Também orientaria a formação da Universidade de São Paulo a ideia de que era preciso formar uma elite para educar o povo. Na escala da organização educacional, o povo receberia o ensino primário; as classes médias, o secundário; e as elites, o superior. A Universidade de São Paulo, assim, nasceria com o objetivo de formar a elite – para então disseminar a cultura, de cima para baixo. A grande diferença é que havia os que acreditavam que essa nova elite devia ser recrutada “democraticamente”. Fernando de Azevedo, o homem que redigiu o decreto-lei de 1934 que criou a universidade, havia deixado claro qual era a sua posição: “À medida que a educação for estendendo a sua influência, despertadora de vocações, vai penetrando até as camadas mais obscuras, para aí, entre os próprios operários, descobrir ‘o grande homem, o cidadão útil’, que o Estado tem o dever de atrair, submetendo a uma prova constante as ideias e os homens, para os elevar e selecionar, segundo seu valor ou sua capacidade”.

Azevedo, um homem formado na cultura clássica, defendia também a tese de que é possível pensar uma grande civilização, como a romana, a grega e a europeia até o século XIX, sem instrução primária, “mas não se concebe nenhum desses ‘momentos de civilização’ sem as elites poderosas que as criaram”.

O sociólogo Florestan Fernandes, que foi aluno e professor da USP

A concepção liberal conservadora convivia, portanto, com essa outra concepção liberal, mais democrática e progressista, que acredita na igualdade de condições como força motriz na formação de uma intelectualidade nacional. Os dois liberalismos, no entanto, tiveram de lidar com um problema prático, e a realidade abriu espaço para que o segundo predominasse sobre o primeiro: os filhos das famílias mais tradicionais de São Paulo não viram na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), criada em 1934, um caminho para a vida intelectual e prática – eles continuaram a preferia as escolas tradicionais que foram incorporadas à USP, ou seja, a Faculdade de Medicina, a Faculdade de Direito e a Escola Politécnica, as “faculdades profissionais”. No ano da criação da USP, o número de alunos era insuficiente. Diante da ameaça, Fernando de Azevedo, com autorização de Júlio de Mesquita Filho, faz um recrutamento entre os candidatos do Instituto de Educação, onde passa de sala em sala avisando da abertura das inscrições para os exames da FFCL. O esforço deu resultado, e no primeiro ano matricularam-se 182 alunos. As aulas, muitas delas das em francês, atraíam também personalidades. O historiador Fernand Braudel lembra que “[…] na sala havia representantes do governador, amigos de Júlio de Mesquita Filho, o dono do jornal O Estado de S. Paulo, e diversos grã-finos que deixavam seus carrões estacionados na porta. Havia também intelectuais autodidatas, como Paulo Prado, um homem de enorme finesse e que possuía uma fantástica coleção de pinturas. Muitos vinham só para se distrair”.

Mas a novidade e o convescote da elite deu lugar à dura realidade: depois de um semestre, matricularam-se no ano seguinte apenas 37 alunos. Três seções – física, química e história natural –  ficaram sem qualquer aluno. Havia necessidade, portanto, de um novo “salvamento”, que ocorreu com a figura do professor comissionado. Os professores do Estado que fossem aprovados na universidade poderiam seguir o curso continuando a receber seus salários no período, mesmo afastados da sala de aula. Com isso, caso fizessem também a licenciatura, poderiam tornar-se professores do segundo grau, o que era uma porta para salários mais altos. No segundo ano de funcionamento da FFCL, o número de novos alunos chegara a apenas 123. Foi preciso reabrir as matrículas, dessa vez com a figura do comissionado, para que eles chegassem a 218.

Com isso, desde a primeira turma, mas principalmente a partir da segunda, a Universidade de São Paulo, que foi imaginada para os filhos da elite, abriu-se, por força das contingências, para estudantes de origem humilde, sendo, em muitos casos, os primeiros a frequentar um curso superior na família. Também chegam por essa via à faculdade muitos filhos de imigrantes, alguns deles de famílias já mais estabelecidas economicamente, mas que não tinham as portas tão abertas nas escolas tradicionais. E, o que é um grande salto para a época, muitas mulheres passam a frequentar o ensino superior.

Até 1941, ano em que Florestan Fernandes entra na FFCL, haviam se formado em Ciências Sociais pela faculdade 16 mulheres para 16 homens (para efeito comparativo, entre 1934 e 1939, a presença feminina não representava nem 1,5% do contingente total de bacharéis formados pela Faculdade de Direito da USP). E, desses 32 estudantes, pelo menos 14 podiam ser identificados pelo nome como imigrantes ou descendentes de imigrantes.

Voltei. Como se vê por esse trecho (retirei as referências das notas de rodapé, que podem ser encontradas no livro), a USP deu uma enorme sorte: como a elite rejeitava trocar a segurança profissional pelo risco da ciência, a universidade pôde encontrar nas jovens mulheres e nos jovens homens não inseridos na alta roda paulistana a força que a fez, rapidamente, decolar.

Essa novidade, acredito eu, foi sentida pelo garçom do bar Bidu, no centro da cidade, que escondia os livros atrás do balcão e aproveitava os momentos de pouca clientela para ler e estudar. Esse garçom, Florestan Fernandes, ouviu dizer que havia uma lugar aberto a gente quase igual a ele, e que ele tinha uma oportunidade única.

Os professores de universidades como a UERJ e a Federal Rural do Rio de Janeiro, em Seropédica, colecionam relatos e mais relatos de novos alunos, excelentes estudantes das escolas de periferia, que descobriram por amigos e parentes cotistas que eles também tinham chance. Essas universidades se encheram e se agitaram e estão produzindo muito mais ciência do que, certamente, do que suporia o discurso anticotas.

Criar cotas raciais significa dar oportunidades não só para os que entrarem inicialmente por meio delas, mas também para jovens negros e negras que, cheios de energia e capacidades até aqui ainda potenciais de interpretar a natureza e a sociedade, vão descobrir que a USP está pronta para recebê-los através das cotas. Gente que acredita na leitura, no estudo e na pesquisa e que está disposta a lutar por isso. O futuro da USP passa por não deixar essa oportunidade passar: a de atrair e incorporar toda essa força.

Por isso, adotar as cotas é urgente. Um mecanismo que democratiza o acesso e gera igualdade num país tão desigual significa mudanças essenciais para os brasileiros negros e positivas para todos.

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