"A Casa Grande pira quando a Senzala vira médica"

Quem é Bruna Sena, negra, estudante de escola pública e primeira colocada no vestibular mais difícil da USP. Por que ela afirma que “a meritocracia é uma falácia”

Por Nadine Nascimento, no Saúde Popular

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Quem é Bruna Sena, negra, estudante de escola pública e primeira colocada no vestibular mais difícil da USP. Por que ela afirma que “a meritocracia é uma falácia”

Por Nadine Nascimento, no Saúde Popular

“A meritocracia é uma falácia. Eu consegui porque tive ajuda. Não dá para igualar as pessoas que não tiveram as mesmas oportunidades. Eu me esforcei muito, sim, mas não consegui só por causa disso, eu tive apoio. E é isso que a gente tem que oferecer para quem não tem oportunidade. A gente perde muitos gênios por aí, inclusive nas favelas porque não podem estudar”, diz a estudante Bruna Sena, jovem negra, primeiro lugar em medicina da Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto.

Estudante de escola pública, Sena alcançou a nota mais alta no curso mais concorrido do vestibular 2017 da USP. Com apenas 17 anos, a jovem superou 6,8 mil candidatos que disputaram as 90 vagas de graduação. Para comemorar o resultado em sua rede social ela passou um recado: “A casa-grande surta quando a senzala vira médica”.

Ao Saúde Popular Bruna diz que se considera feminista e que tem sua mãe como principal inspiração. “Ela foi a pessoa que tornou tudo isso possível. Ela nunca me pressionou e sempre me apoiou. Minha mãe cuida de mim sozinha. Ela e meu pai são separados desde quando eu tinha menos de um ano. Meu pai simplesmente me abortou. Nunca pagou pensão nem nada. Me esqueceu”, diz.

Confira entrevista na íntegra:

Saúde Popular: Como foi sua preparação para o vestibular?

Bruna Sena: Apesar de sempre ser estudiosa, só me preparei mesmo ano passado. Eu cursava o terceiro ano do ensino médio, estudava de manhã em uma escola pública. Chegava em casa dormia um pouco. Depois, no fim da tarde, estudava mais e ia para o cursinho à noite. Essa foi minha rotina o ano inteiro. O cursinho era popular, conhecido como CPM, Cursinho Popular de Medicina, que funciona dentro da faculdade de medicina. Os professores são alunos do curso. Eu devo muito a eles porque a solidariedade foi enorme. Se não fosse o cursinho acho que eu não teria passado.

Saúde Popular: Como você se sentiu com o resultado?

Bruna Sena: Eu fiquei muito surpresa de verdade. Não imaginava passar nem na primeira fase. Antes da liberação do resultado da Fuvest, que saiu dia 2, eu nem dormi. Significa muito para mim e minha família. Representatividade importa. Mostrar que a gente é capaz, que basta a gente ter oportunidades, como eu tive. O objetivo do meu post nem foi me exibir, foi para mostrar que eu posso e que outras pessoas podem também, basta ter oportunidade de estudar. Tive pessoas muito boas ao meu lado. Tanto na minha família, que me ajudou muito, como o pessoal do cursinho. Minha mãe sempre me falava “se você não passar este ano, você vai passar em outro e vai tentar até passar”. Eu tive muito apoio dela. Minha mãe pagou um curso de matemática para mim, mesmo pesando no bolso dela.

Saúde Popular: Por que escolheu medicina? Já sabe que área que seguir?

Bruna Sena: Ainda não sei qual especialidade. Mas quero atender pessoas de baixa renda, que precisam de ajuda, que precisam de alguém para dar a mão e de saúde de qualidade.

Saúde Popular: Para comemorar o resultado, você usou uma frase provocativa em sua rede social: “A casa-grande surta quando a senzala vira médica”. Você milita em algum movimento social feminista negro?

Bruna Sena: Eu sou feminista. Ano passado não pude militar porque estava estudando muito. Mas quero muito entrar em um movimento feminista negro. Lá na USP tem e eu quero fazer parte.

Saúde Popular: Alguém te inspirou nisso?

Bruna Sena: Minha mãe é minha inspiração. Ela foi a pessoa que tornou tudo isso possível. Ela nunca me pressionou e sempre me apoiou. Isso é muito bonito. Meus pais são separados desde quando eu tinha menos de um ano. Meu pai simplesmente me abortou. Nunca pagou pensão nem nada. Me esqueceu. Minha mãe que cuida de mim  com a ajuda da nossa família. Além disso, há os professores do cursinho. Eles são heróis. Mesmo fazendo um curso que é super pesado eles estavam ali para dar aula para a gente.

Saúde Popular: Alguns comentários na redes sociais dizem que você conseguiu porque se esforçou muito e que isso basta para que todos consigam. Qual sua opinião sobre isso?

Bruna Sena: A meritocracia é uma falácia. Eu consegui porque tive ajuda. Não dá para igualar as pessoas que não tiveram as mesmas oportunidades. Eu me esforcei muito, sim, mas não consegui só por causa disso, eu tive muito apoio. E é isso que a gente tem que dá para quem não tem oportunidade. A gente perde muitos gênios por aí, inclusive nas favelas porque não podem estudar. E eu fiquei com muito medo de que minha postagem servisse de argumento para a meritocracia. E eu vi comentários que se baseavam nisso. Mas eu sabia que ia acontecer. Eu quero frisar bem que a questão importante é a oportunidade. Eu consegui porque tive oportunidade. Eu tenho visto minha história como apoio à meritocracia e fico muito triste com isso.

Saúde Popular: Como você espera ser recepcionada?

Bruna Sena: Todos os veteranos que eu conheci são muito legais. Todos me receberam muito bem. Os babacas do curso devem estar escondidos e eu só vou conhecê-los quando as aulas começarem. Provavelmente, uma minoria vai encher meu saco e eu tenho que enfrentar de cabeça erguida. Não sou eu quem vou mudar a mentalidade deles, infelizmente.

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5 comentários para ""A Casa Grande pira quando a Senzala vira médica""

  1. Carla Oliveira disse:

    Eu dou os parabéns desejo muita prosperidade para essa mocinha Bruna que com todas essas dificuldades conseguiu passar em Medicina na USP que é muito concorrido e difícil!!!
    Estou na minha terceira graduação mas são faculdades particulares quem me dera se conseguisse entrar na USP também!! Em 1999 assim que eu concluí o Ensino Médio numa escola do Governo do Estado, fui prestar o vestibular da USP do curso de Administração e não passei foi por aí que acabei entrando em faculdades particulares mesmo assim sinto orgulho disso!!!
    Eu sempre estudei nas escolas da Prefeitura do interior de São Paulo do município de Atibaia -SP, onde eu nasci e no Ensino Fundamental e Médio que são escolas do Governo do Estado de São Paulo situadas em Atibaia-SP também e me esforcei muito como estudante, mas até hoje eu agradeço os esforços que meus professores de diversas disciplinas tiveram quanto ao meu aprendizado!!
    Que Deus te ajude e lumine muito, Bruna!!!
    Parabéns mesmo!!

  2. Dirceu disse:

    bom, ela agora pode descontar a própria frustração quando estiver atendendo mal à pacientes brancos. Mas não esqueça, a tal senzala como ela mesma diz, vai continuar trabalhando e servindo na Casa Grande que pertence a brancos.

  3. Matheus disse:

    O problema é mesmo a falta de oportunidade, e isso influencia a meritocracia, um pobre que tem que trabalhar para não passar fome não tem como estudar, entende? Na sua pergunta você coloca ela e outras pessoas no mesmo patamar, como se todos tivessem uma condição igual, se fosse assim, a meritocracia seria válida, infelizmente os pobres independente da cor não tem como disputar mérito com privilegiados.

  4. Ale Abdo disse:

    Oi Márcio,
    Me parece que você não viu que a entrevistada, na sua declaração, certamente critica a definição de meritocracia mais frequentemente escutada por aí, onde se subentende que não é preciso dar oportunidade, pois as pessoas se sobressaem de toda forma quando tem qualidades. É essa definição implícita em muitos discursos que ela critica, e que é especialmente usada para justificar a manutenção de processos seletivos gritantemente injustos vis-a-vis as diferenças de oportunidade históricas e presentes.
    Também vale lembrar que quando se fala de oportunidades para competição, a questão não é binária, ter ou não ter, mas sim de diferenças de oportunidades – o que traz à tona a questão da desigualdade.
    Ademais, oportunidade é um ponto crucial, mas na construção de uma sociedade existem questões que não conseguem se resumir aí, pois a vida social não se trata apenas de justificar ações, mas também de definir objetivos comuns. Por trás de qualquer meritocracia está a questão do que está sendo “medido”, e em que direção vai a coordenação que ela gera.
    Por tal, nenhuma meritocracia em si serve como elemento sozinho ou principal de estruturação – ela requer antes ser organisada por força de instrumentos de construção coletiva, dentre os quais a democracia, para definir parâmetros compatíveis com o futuro desejado.
    Um abraço!

  5. Márcio Cavalcanti disse:

    Mas que matéria fraca, senhor(a) jornalista! Perdeu a oportunidade de ouro de mostrar para a (claramente) confusa menina que o problema é a falta de oportunidades, e não a meritocracia. Bastava perguntar: “Se a meritocracia é o problema, porque muitos que tiveram a mesma oportunidade – ou oportunidades melhores – que você não conseguiram passar?” .
    Há braços!
    P.S.: caso ela dissesse “eles não tiveram sorte” ou qualquer asneira randômica fugitiva do assunto serviria apenas para demonstrar uma grotesca obtusidade.

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