A notável resistência dos Policiais Pensadores

Cresce movimento que não vê políciais como inimigos do povo. Eles rejeitam uso gratuito da violência e pedem desmilitarização, nova formação dos policiais e fim da “guerra às drogas”

Por Ingrid Fagundez, na BBC

5454e4b7ca9debd6bb45c774002ed039b34e330719118

Delegado Orlando Zaccone é hare krishna e autor de livros sobre segurança pública

.

Cresce e espalha-se pelo país movimento de agentes que não veem polícia como inimiga do povo. Eles rejeitam uso gratuito da violência e pedem desmilitarização, nova formação dos policiais e fim da “guerra às drogas”

Por Ingrid Fagundez, na BBC

Três adolescentes apanham de uma fila de policiais militares. É Carnaval em João Pessoa, e os jovens invadiram um orfanato para roubar uma televisão e uma bicicleta. “Onde está a arma?”, perguntam os policiais. Entre uma pancada e outra, dois cadetes que acompanhavam a operação saem da sala.

A cena, que teria acontecido em 2006, foi descrita à BBC Brasil por um dos cadetes que reprovaram a abordagem – a Secretaria de Segurança da Paraíba não se pronunciou até a publicação desta reportagem.

Dez anos depois e agora capitão da PM, Fábio França diz que ainda rejeita a violência na instituição. Ele faz parte de um grupo de policiais civis e militares que se autodeclaram antifascistas e criticam a política de segurança pública adotada no Brasil.

Espalhados pelo país, seus integrantes – grande parte deles acadêmicos ou com pós-graduação – querem o fim da militarização e a legalização das drogas.

“O que me levou a despertar foi tentar entender que mundo era esse. Percebi o comportamento dos meus colegas e isso foi me angustiando. Queria saber por que se transformavam naquilo”, diz França, que então decidiu fazer mestrado e doutorado em Sociologia.

“Procuramos que a PM se reencontre com as instituições democráticas.”

Anderson Duarte é tenente e criou o site Policial Pensador

Anderson Duarte é tenente e criou o site Policial Pensador

Para fazer esse debate, o grupo se organiza há alguns anos pela internet e em eventos de associações como a Leap (agentes da lei contra a proibição das drogas). Um dos sites que concentra essa discussão, o Policial Pensador, teve 200 mil visualizações desde que entrou no ar, em 2014. Criada pelo tenente Anderson Duarte, do Ceará, a página reúne artigos sobre temas como redução da maioridade penal.

Duarte, de 33 anos, diz que a convergência dessas ações nos últimos anos foi provocada pelo maior acesso dos profissionais de segurança à educação e pelo fortalecimento de um discurso conservador, que gerou a necessidade de um contraponto.

“Muitos pares têm pensando de forma diferente e faltava um espaço para discussão. Sempre partimos do ponto de que não existe democracia sem polícia, e aí perguntamos: que polícia nós queremos?”

Guerra às drogas

Um dos principais tópicos discutidos por esse grupo é o combate ao tráfico de drogas. Para eles, esses confrontos provocariam muitas mortes e seriam ineficazes.

“Não se tratam de ações contra as drogas, que são inanimadas, mas contra as pessoas. A polícia brasileira é a que mais mata e a que mais morre no mundo. Temos números de guerra”, diz Duarte, que também é doutorando em Educação.

Caminho para acabar com a guerra ao tráfico seria legalizar as drogas, dizem policiais

Caminho para acabar com a guerra ao tráfico seria legalizar as drogas, dizem policiais

A guerra às drogas estaria ligada à militarização das instituições, diz o delegado e diretor do Leap Orlando Zaccone.

De acordo com ele, seguindo a lógica militar, a polícia é voltada para embates e precisa estabelecer um inimigo: o traficante. Zaccone questiona a prioridade que o Estado dá a um crime que, pela lei, não ameaça à vida.

“O tráfico é o crime que mais encarcera mulheres e o que deixa mais tempo preso hoje. E isso é estranho, porque não tem vítima (na legislação). O que se defende na lei é um bem jurídico, uma questão de saúde pública. A importância que dão a ele tem a ver com a militarização, que precisa de um oponente para se manter.”

Militarização

Um dos caminhos apontados por Duarte e Zaccone para acabar com o conflito é a legalização das drogas, com venda e uso regulamentados pelo governo. No entanto, dizem, para chegar ao cerne do problema – a desmilitarização – é necessária uma mudança profunda: rever o papel da polícia. Do viés de repressão, ela deveria passar para o de proteção e mediação.

O capitão Fábio França afirma que a origem da polícia brasileira está no século 19, quando foi usada para reprimir revoltas contra o Império.

O casamento entre polícia e Exército se consolidou na Constituição de 1934, quando a primeira passa a ser subordinada ao último. Na ditadura, os policiais militares, que atuavam só no caso de distúrbios civis, saíram dos quartéis e foram para o dia a dia das ruas.

De acordo com os entrevistados, a lógica militar, de combate e aniquilação do adversário, ajudaria a explicar o comportamento violento de policiais.

Para grupo, é preciso rever o papel da polícia, de repressora para mediadora

Para grupo, é preciso rever o papel da polícia, de repressora para mediadora

Tais ideias, no entanto, não são consenso. Para José Vicente da Silva Filho, coronel reformado da Polícia Militar e ex-secretário Nacional de Segurança, a proximidade com o Exército é necessária para manter uma estrutura de controle e disciplina.

Uma polícia desmilitarizada, pondera, poderia se corromper com mais facilidade.

“Uma estrutura de contenção é importante para quem está sujeito a muito estresse no dia a dia profissional.”

Treinamento

Outro tema questionado por esses policiais é o treinamento.

França, que estuda a formação desses profissionais, diz que os recém-chegados têm dois currículos: o formal, que inclui direitos humanos, e o “oculto”, com práticas que têm mais força. O discurso progressista, afirma, fica na teoria numa rotina de xingamentos e castigos.

“A pedagogia militar incute um processo em que a humilhação é a tônica central, alunos apanham dos instrutores. Os policiais não veem o que é direitos humanos porque não têm seus direitos respeitados.”

Segundo levantamento de 2014, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Fundação Getúlio Vargas e Secretaria Nacional de Segurança Pública, 28% dos policiais ouvidos afirmaram ter sido “vítima de tortura em treinamento ou fora dele” e 60% narraram situações de desrespeito ou humilhação por superiores.

Para entrevistados, treinamento militar tem humilhação como tônica central

Para entrevistados, treinamento militar tem humilhação como tônica central

Para João*, sargento da Polícia Militar do Ceará, ao viverem sob esse regulamento estrito, os policiais querem reproduzi-lo com os civis.

“Quando privam sua liberdade por causa de uma farda amarrotada ou de um atraso, você transfere essa lógica para a sociedade. Acha que a população tem que ser subserviente a você. Nossa formação é voltada para guerra – existe nós e os inimigos. E às vezes são os cidadãos que juramos defender.”

Na contramão desse pensamento, o coronel José Vicente considera que deve haver pressão nos exercícios, porque eles preparam os profissionais para uma rotina de medo.

“O treinamento para lidar com estresse não é feito com PowerPoint. Tem que colocar sob estresse para o agente saber lidar com as circunstâncias.”

Entretanto, o ex-secretário de segurança pondera que é preciso melhorar as relações entre chefes e subordinados, impedindo lideranças muito autoritárias.

Sangue nos olhos

Segundo esses policiais, a imagem de violência que o treinamento e a atuação da polícia geram atrai pessoas de perfil agressivo, que desejam usar a farda para exercer essa brutalidade.

O investigador da Polícia Civil da Bahia Denilson Neves, de 47 anos, diz que precisou acalmar os ânimos várias vezes, quando estava participando de diligências, porque “as pessoas estavam com sangue nos olhos”.

Neves, que é militante de esquerda há 30 anos, afirma que parte dos recém-chegados tem uma visão equivocada da profissão.

“Eles entram para fazer justiça com as próprias mãos. Reprimir e matar têm sido a lógica da polícia e muitos vão lá porque identificam com a ideia.”

Para os entrevistados, também há influência de um discurso conservador, que estaria se expandindo no Brasil, sobre esses profissionais. Como uma esquerda que renega o policial, diz o delegado Orlando Zaccone, seções ligadas à direita ganham adeptos.

“Os policiais têm pouca ou nenhuma atenção das esquerdas. Quando a direita aparece e diz que ninguém cuida da vida dos policiais, que são heróis, tem uma recepção grande.”

O sargento João fala de um “glamour” que existe na militarização. Setores mais tradicionalistas, afirma, acham que as organizações de segurança vão dar alguma “pureza moral” para o país.

“Teria vergonha de alguém querer tirar foto comigo (em um protesto), porque não seria pela minha missão de proteger a sociedade. Seria pelo uso da força.”

Há 15 anos na PM, João diz que, por ser ter uma visão crítica, é hostilizado pelos colegas.

O policial conta que virou persona non grata em grupos no WhatsApp e tem suas postagens no Facebook ridicularizadas. Num dos posts, ele reprova a ação de PMs acusados de cometer uma chacina para vingar a morte de um amigo.

“Todos disseram ‘como você faz isso? O cara (assassinado) era pai de família’. E as famílias dos meninos mortos não estão sofrendo, não? Sou visto como uma anomalia. Muitos dizem que sou um lixo.”

Para inspetor, selfies com policiais valorizam apenas uso da força

Para inspetor, selfies com policiais valorizam apenas uso da força

Casos como esse não se restringem à PM. A escrivã Cecilia*, da Polícia Civil de São Paulo, conta que, ao fazer qualquer questionamento, é considerada inocente.

“Existe uma ideia de que há um inimigo dentro da sociedade. E, a meu ver, a função é de proteção.”

Para Cecilia, de 41 anos, é difícil para seus superiores compreenderem isso.

“Quando digo que não quero uma polícia opressora, respondem que estou fazendo carinho em bandido.”

Convencimento

Com tantos empecilhos e em menor número, os policiais desses grupos buscam influenciar os companheiros de trabalho aos poucos.

Antes das operações, o investigador Denilson Neves, da Bahia, pergunta aos colegas: “o que ganhamos ao tirar a vida de alguém?”.

“Um ou outro policial pode fazer essa reflexão crítica, o que destrói a possibilidade de fazerem algo no automático.”

Além do boca a boca, o grupo se organiza para entrar num debate amplo sobre esses temas – e atrair simpatizantes. Parte de seus integrantes negocia a publicação de um livro.

Inspetor no Rio, Hildebrando Saraiva diz que instituição não precisa ser violenta

Inspetor no Rio, Hildebrando Saraiva diz que instituição não precisa ser violenta

O primeiro passo para a mudança, afirmam, é acelerar a profissionalização do policial como um agente protetor. Para eles, um PM deveria ser especialista em negociação de conflitos, e não em técnicas de guerra.

“A polícia sempre será um instrumento de manutenção da ordem, mas não significa que seja reacionária ou fascista. Ela vai continuar defendendo a vida e a propriedade privada, mas não precisa ser no pau de arara”, afirma o inspetor da polícia civil do Rio de Janeiro Hildebrando Saraiva, 35 anos.

“A ideia é criar métodos modernos e democráticos.”

O objetivo proposto, explica o delegado Orlando Zaccone, é aproximar a corporação das pessoas e buscar mais independência do poder político, o que exige mudar o entendimento do Estado sobre segurança.

Longe dos ideiais almejados, os policiais do grupo se dizem otimistas.

“Acho que vivemos um momento de transição. Se você comparar com 20 anos atrás, melhorou muito. Até tem gente rejeitando imagens de chacina no WhatsApp”, conta o inspetor Neves.

*Os nomes foram substituídos a pedido dos entrevistados

Leia Também:

5 comentários para "A notável resistência dos Policiais Pensadores"

  1. Além de todos os problemas que os policiais enfrentam, tem-se na PM os maçanetas q td fazem para puxar o tapete do outro. A coisa é tão grave, vale-tudo, até mentir e acusar falsamente. Numa dessas, pegou super mal pro comandante, flagrado em sua crassa ignorÂncia e incompetência: http://blogsandrapaulino.blogspot.com.br/2013/11/comandante-geral-acusa-falsamente-dois.html

  2. Erivan Silva disse:

    Muita tinta ainda será gasta até que cheguemos a um consenso.

  3. DESAFIO ! ! ! Desafio qualquer um, que aponte um único país que tenha prosperado socioeconomicamente E TENHA SEGURANÇA NAS RUAS, que não tenha cuidado de suas crianças em Escolas de Ensino Fundamental Públicas de Excelência. Axioma do subdesenvolvimento: “A sociedade que negligencia educação fundamental pública de excelência a suas crianças será sempre vulnerável, politicamente instável, socialmente pobre, com elites medíocres e corruptas.” Somos donos do Brasil mas não somos usufrutuários de nossas potencialidades.!

  4. Rodrigo disse:

    Não existe possibilidade de anistia.
    A umensa maioria dos crimes cometidos por policiais militares contra cidadao civil já é julgada por justiça comum.
    Ainda assim, essas varas criminais continuariam a existir até não ter mais nenhum processo desse período de policia militarizada.
    Algumas varas criminais acumularuam essa funçao, como já fazem, uma vez que tem poucos processos realmente importantes de crimes militares. Serve mais pra apurar delitos internos da pm.
    E melhor, esses homicídios praticados por pms cintra cidadao devem ser julgados pela justiça comum, e nao justiça militar que passa a mão na cabeça dos colegas.

  5. Edgar Rocha disse:

    Sempre que comento sobre segurança pública, vou ao assunto que me parece mais importante para se entenderas dificuldades em se mudar a corporação e que, paradoxalmente, é o que menos se faz menção nos excelentes textos veiculados no “Outras Palavras”. Refiro-me à corrupção policial endêmica. É algo intrinsecamente ligado ao comportamento violento de agentes policiais e, sobretudo, por razões óbvias, o mais dileto da opinião pública, sobretudo de quem mora na periferia. O que me impressiona é que nunca um comentário meu fora veiculado quando o assunto vem à tona e minha abordagem. Parece até ser um problema secundário. Parece medo. Um medo que se manifesta neste texto de forma irreparável. Fosse a discordância sobre os métodos empregados pelas polícias algo restrito a mera questão técnica, sujeita a reações que não vão além de xingamentos no Face, má vontade de colegas ou desqualificação intelectual, não haveria profissionais preferindo o anonimato em suas declarações, como vemos no texto que comentamos. Se a coisa não fosse muito mais barra pesada do que se pode intuir no teor da matéria acima, o cidadão estaria atuando nos Conselhos de Segurança ativamente para se questionar a formação dada aos agentes.
    Outro questionamento que coloco e que ninguém jamais me respondeu é sobre a desmilitarização. Presumo que, caso ocorra, não haverá mais razão para existência de um tribunal específico para julgar crimes de agentes policiais. Caso este tribunal seja extinto, a quem será transferida a competência para julgar crimes pregressos? Há a possibilidade de vermos uma anistia geral e irrestrita em relação a acusações e crimes cometidos durante o período “militarizado”? A morte de milhares de pessoas cairia na conta do Abreu?
    Que a esquerda nunca dera atenção necessária à questão policial é gravíssimo. A estrutura atual, como foi bem lembrado, nos remete ao período ditatorial e esta manteve-se intacta durante todo o período democrático. As razões para isto me parecem tão sombrias quanto os porões onde nunca se deixou de existir tortura. Fico pensando se, no caso de uma desmilitarização, esta mesma esquerda, que luta até hoje pela punição de assassinos e torturadores dos regimes de exceção, irá engolir esta anistia a qual me referi, em troca de uma possível pacificação das forças estaduais de manutenção do statu quo.
    Esperando que desta vez, possa ver minha opinião publicada, expresso meus sinceros respeitos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *