Para retomar o projeto da Reforma Urbana

Esquecido também nos anos do lulismo e oprimido pela especulação imobiliária, ele pode ressurgir nas ocupações, nos coletivos que exigem cidades sem cercas e nas universidades, diz pesquisador

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Pedro Arantes, entrevistado por Patrícia Fachin, no IHU Online | Imagem: Pé de Meia, no Brasil40

“Se a forma urbana das metrópoles pode dizer algo sobre a sociedade brasileira e os sentidos da nossa (de)formação nacional, ou de nossa precária e incompleta cidadania, não é preciso ser especialista para perceber que o Brasil, como projeto de civilização – visto pelo ângulo das nossas cidades –, está longe de resultar em algo integrado, coerente e igualitário”. A observação é do arquiteto e urbanista Pedro Arantes e está expressa na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.

Segundo ele, houve uma “derrota da agenda da Reforma Urbana” no país, a qual “foi decorrente de escolhas realizadas nos últimos anos, em que, em nome de fazer o ‘bolo imobiliário’ crescer (depois repartir), os protagonistas favorecidos foram crescentemente as empresas de construção e incorporação imobiliária (concentradas, com capital aberto em bolsa e internacionalizadas), o setor financeiro e os vendedores de pacotes tecnológicos de transportes e saneamento ambiental”. Como consequência, avalia, “o cidadão ficou por último, fragilizado, recebendo serviços ou moradias de péssima qualidade e pagando tarifas caras”.

Ele pontua que as “inúmeras pesquisas sobre o Minha Casa Minha Vida” mostram “os desastres do programa” e indicam que o “Brasil perdeu uma oportunidade de avançar na política habitacional integrada com a qualificação urbana. Investiu muito nos últimos anos, mas num programa comandado por empresas, que definem o que construir, onde, como, para quem, em função de regras minimalistas propostas por um banco, a Caixa Econômica Federal”.

Na entrevista, Pedro Arantes também comenta projetos polêmicos, como a construção de torres comerciais de residenciais no Cais José Estelita no Recife, o projeto do Cais Mauá em Porto Alegre, o Projeto Nova Luz em São Paulo e o Porto Maravilha no Rio de Janeiro. Todos eles, avalia, são “emblemáticos do modelo cidade-mercadoria que prospera no Brasil, que moderniza nosso patrimonialismo e o entrelaçamento de interesses públicos e privados. São projetos de verdadeira desfaçatez das classes dominantes nessas cidades, que não escondem seu caráter de ganhos especulativos, exclusão social, crimes ambientais etc.”

Pedro Arantes é arquiteto e urbanista. Atua como assessor técnico dos movimentos de luta por moradia e do MST em políticas habitacionais e urbanas. É coordenador do coletivo USINA, formador da Escola Milton Santos e professor das Faculdades de Campinas. É doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e autor do livro Arquitetura Nova (São Paulo: Editora 34, 2002). Atualmente, participa de um grupo interdisciplinar na pós-graduação da USP, que está analisando o Minha Casa Minha Vida em todos os seus aspectos.

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Como você vê as metrópoles brasileiras nos dias de hoje? Como e por quais razões elas se transformaram nos últimos anos?

Se a forma urbana das metrópoles pode dizer algo sobre a sociedade brasileira e os sentidos da nossa (de)formação nacional, ou de nossa precária e incompleta cidadania, não é preciso ser especialista para perceber que o Brasil, como projeto de civilização – visto pelo ângulo das nossas cidades –, está longe de resultar em algo integrado, coerente e igualitário. Há um avanço da barbárie urbana concomitante ao avanço da cidade-mercadoria. A maioria de nossas principais cidades vive situações recorrentes de caos e calamidade, apesar da abundância relativa recente. Nos últimos anos, vivemos o boom imobiliário e o boom automobilístico – ambos impulsionados pelo governo federal – que colaboraram não para o crescimento da qualidade da vida urbana, mas para sua crescente deterioração.

As manifestações de 2013, cujas características e consequências são avaliadas ainda hoje, têm como ponto de partida inegável as más condições de vida nas metrópoles, a precariedade de diversas políticas públicas, sobretudo uma política decisiva, que integra os equipamentos e serviços da cidade com seus cidadãos: a da mobilidade urbana. Cidades estiveram em movimento contra a imobilidade produzida pelas tarifas altas, transporte de massa de má qualidade (beneficiando empresas e não usuários), engarrafamentos cada vez maiores etc.

Quando se trata de pensar uma reforma urbana para as metrópoles brasileiras, que investimento e planejamento seriam necessários?

A agenda da Reforma Urbana, como a da Reforma Agrária, viveu um ciclo no período da redemocratização e da Nova República que parece ter se esgotado. Isto é, os caminhos e instrumentos que construímos não conseguiram nos levar a cidades mais justas e sustentáveis. Temos legislação atualizada, o Estatuto das Cidades, um Ministério das Cidades, políticas relevantes na área habitacional e de transportes, mas não avançamos para que as cidades fossem mais equilibradas e melhores de se viver. Na disputa pela cidade como meio de vida ou como meio de acumulação de capital, o cidadão, sem dúvida, foi quem perdeu. Ganharam as empresas imobiliárias e de serviços urbanos, as grandes construtoras de infraestrutura, dentro de um modelo de cidade-empresa ou cidade-mercadoria. As leis funcionaram quando promoviam negócios urbanos (operações urbanas, concessões, parcerias) e não foram eficientes na garantia da função social da propriedade (IPTU progressivo em imóveis vacantes, urbanização compulsória, dação em pagamento etc.).

A cidade como fundamento da cidadania, como território em que se realizam direitos, segue sendo recorrentemente violada e desestruturada. Essa derrota da agenda da Reforma Urbana, mesmo com o PT no poder, foi decorrente de escolhas realizadas nos últimos anos, em que, em nome de fazer o “bolo imobiliário” crescer (depois repartir), os protagonistas favorecidos foram crescentemente as empresas de construção e incorporação imobiliária (concentradas, com capital aberto em bolsa e internacionalizadas), o setor financeiro e os vendedores de pacotes tecnológicos de transportes e saneamento ambiental. O cidadão ficou por último, fragilizado, recebendo serviços ou moradias de péssima qualidade e pagando tarifas caras.

Quais são os principais temas do desenvolvimento urbano que deveriam estar em pauta no país, considerando as características das cidades brasileiras?

O ciclo institucional, de leis, instrumentos, conselhos, fundos, sistemas etc. se realizou e não foi capaz de transformar nossas cidades em espaços mais justos, vivíveis e sustentáveis. Sem dúvida a disputa institucional ainda é válida, mas não pode ser o vetor central da luta social pelo direito à cidade. Incidir diretamente na transformação da cidade é fundamental, por meio de mobilizações, atos e ocupações, pressão sobre poderes Executivo, Legislativo e Judiciário para que as conquistas avancem em vários níveis e políticas. Com a decepção com o ciclo institucional, o século XXI já está marcado pelo aumento desses enfrentamentos pelo direito à cidade, nas mobilizações contra os grandes eventos, contra grandes empreendimentos, contra privatização ou destruição de praças e espaços públicos etc.

Isso está pipocando em todas as grandes cidades brasileiras, ação de movimentos, coletivos autonomistas, comunidades etc. Mas a ação direta, se não for acompanhada de uma nova agenda e teoria da transformação social e das cidades, corre o risco de se pulverizar e enfraquecer. Se a forma-partido está em crise e questionada, a atuação nessas múltiplas lutas deve ser capaz de articular frentes, redes, conexões, não apenas para ir às ruas, mas para construir programa. A Frente Povo sem Medo pode ser um caminho para isso, pois não é tão identificada a partidos, como a frente Brasil Popular. Outras iniciativas de articulação são bem-vindas.

De que modo as tecnologias podem auxiliar na reforma urbana das metrópoles?

Há diversas tecnologias de administração urbana, informação e mapeamento, big data urbano, informatização de dados cartoriais e cadastros multifinalitários, levantamento de áreas que descumprem a função social da propriedade, de inadimplência e dívida ativa etc. podem ser úteis para otimizar sistemas, processos, avaliar efetividade, construir indicadores, dar transparência, tomar decisões informadas, combater especuladores etc. Contudo, temos que ter o cuidado de não fetichizar as novas tecnologias digitais e acreditar que poderão por si resolver problemas. Podem ajudar, sem dúvida, mas a maneira como são mobilizadas, programadas e articuladas com as políticas públicas de ponta é algo central. Elas precisam ser modeladas pelo interesse coletivo, como tecnologias sociais que informam os cidadãos e a gestão pública, da forma mais completa e transparente. Acesso a dados e informação confiável é fundamental tanto para as políticas públicas quanto para o empoderamento dos cidadãos.

Atualmente estão sendo discutidos alguns projetos polêmicos no país, como a construção de torres comerciais de residenciais no Cais José Estelita no Recife, o projeto do Cais Mauá em Porto Alegre, o Projeto Nova Luz em São Paulo e o próprio Porto Maravilha no Rio de Janeiro. Como você avalia esses projetos para as cidades brasileiras?

Esses são projetos emblemáticos do modelo cidade-mercadoria que prospera no Brasil, que moderniza nosso patrimonialismo e o entrelaçamento de interesses públicos e privados. São projetos de verdadeira desfaçatez das classes dominantes nessas cidades, que não escondem seu caráter de ganhos especulativos, exclusão social, crimes ambientais etc. Mas por serem tão acintosamente visíveis (a lógica do espetáculo faz parte do seu negócio), têm resultado em forte reação contrária. A resistência do Cais Estelita em Recife é emblemática disso, atuaram em múltiplas frentes, ocupação e atividades no Cais, mobilização das universidades, batalha jurídica, batalha de comunicação (com excelentes vídeos sobre os interesses em jogo e até um videoclipe que ironiza os empreendedores, prefeitos e seus interesses). Quanto mais essas estratégias de resistência trocarem informações entre si, constituírem uma rede, se fortalecerão e ajudarão a construirmos um programa mais coletivo e comum para as lutas urbanas no século XXI, como já disse.

É preciso pensar alternativas a esses projetos? Por que e em que sentido? Em que consistiriam essas alternativas?

Sem dúvida. Podemos e devemos mostrar que nossas cidades podem ser pensadas e produzidas de outras formas. A aliança entre movimentos, coletivos e universidades é central para isso. É preciso aproximar os ativistas que estão na ponta, na luta com as comunidades atingidas, com professores e estudantes universitários, que têm maior capacidade de resposta institucional, laboratórios de extensão e pesquisa, bolsas etc. para fazer análises, simular alternativas, fazer propostas, sempre em forte diálogo e cooperação com as comunidades e ativistas que estão no campo de batalha. Não é à toa que ambos estão sendo fortemente atacados nos últimos anos, as universidades públicas estão sendo sucateadas e estranguladas sem orçamento, e os movimentos e comunidades, criminalizados e perseguidos. Por isso essa aliança é decisiva.

Na entrevista que nos concedeu em 2010, você salientava que os arquitetos brasileiros e as universidades não se pronunciaram em relação ao pacto habitacional do Minha Casa Minha Vida. Qual é sua avaliação sobre esse programa habitacional? Em que medida ele foi ou não efetivo e por quais razões?

De fato, as universidades, naquele momento, não apenas não foram consultadas sobre a política habitacional, como permaneceram quietas sobre o que estava ocorrendo. Isso acabou mudando um pouco nos anos seguintes, com vários grupos de pesquisa estudando o MCMV, realizando debates, teses etc. Hoje há inúmeras pesquisas sobre o MCMV mostrando os desastres do programa. O Brasil perdeu uma oportunidade de avançar na política habitacional integrada com a qualificação urbana. Investiu muito nos últimos anos, mas num programa comandado por empresas, que definem o que construir, onde, como, para quem, em função de regras minimalistas propostas por um banco, a Caixa Econômica Federal.

As cidades não foram capazes de induzir melhores qualidades na produção habitacional que foi feita, na inserção urbana etc. O modelo produtivista previa sempre a expansão da mancha urbana. E imóveis vazios, especulativos, nos centros urbanos não foram transformados pelo programa – ao contrário, ganharam com a enorme valorização imobiliária que ocorreu no Brasil com o MCMV e abertura de capital das empresas imobiliárias. O que se viu foi a produção intensiva e extensiva da mercadoria casa, de baixa qualidade, em geral em regiões periféricas, produzindo novos crimes ambientais e trabalhistas (a MRV, principal construtora do programa, responde por diversos crimes de trabalho escravo).

O MCMV entregou milhões de moradias; para quem não tinha onde morar, pagava aluguel oneroso, vivia em sobrelotação, em barracos precários etc., uma casinha um pouco melhor não deixa de ser um ganho. Mas o conjunto do resultado é desastroso, aprofundou a má urbanização desigual, horizontal, ampliando problemas e conflitos urbanos e ambientais, de mobilidade, empregos e serviços públicos. O MCVM, ao combater o déficit habitacional com uma lógica empresarial, da casa-mercadoria, aprofundou o nosso problema mais grave que é o déficit de cidade, de qualidade urbana, e de cidadania.

Num documentário produzido pela BBC intitulado “Por que a beleza importa?”, o filósofo Roger Scruton faz uma crítica à estética da arquitetura produzida nos últimos anos, pontuando que ela leva em conta apenas uma dimensão utilitarista e que perdeu a dimensão da beleza. Como você vê esse tipo de crítica e quais são suas críticas à arquitetura contemporânea?

O debate sobre beleza e gosto é complexo e escorregadio, é um debate da filosofia e da arte há ao menos 3 mil anos. Não conheço esse documentário, mas o que posso mencionar é que, de fato, na produção habitacional de massa, como o MCMV, qualidades arquitetônicas que permitem maior riqueza volumétrica, diversidade, constituição de espaços aprazíveis, convidativos, praças, equipamentos coletivos etc. não são prioridade. Na verdade não são desejáveis pela lógica de um programa que é comandado pela lógica das empresas: todas essas qualidades custam a mais para serem executadas, reduziriam os lucros, por isso entregam a “casa 1.0”, desprovida de qualquer qualidade adicional. Como a Caixa exige apenas características mínimas para a unidade habitacional e não tem diretrizes mais detalhadas para a urbanização, não se produz cidade, mas pátios de estacionamento de moradias mínimas.

Já a arquitetura contemporânea de grife, do mercado de luxo, de distinção, acredita estar produzindo “beleza”, pois isso é parte do negócio à venda, do estilo de vida. Mas essa beleza à venda é também de gosto duvidoso, com edifícios imitando estilos europeus em plenos trópicos, bolos de noiva neoclássicos, condomínios fechados, muito “fachadismo” feito por empresas de marketing mais do que arquitetura de boa qualidade.

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