Inteligência Artificial, ameaças e alternativas

Robotização tornou-se avassaladora e atingirá também a classe média. Renda Universal pode ser alternativa. Capitalismo tenta anular seu caráter emancipatório

IA

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Robotização tornou-se mais avassaladora e atingirá em breve também a classe média. Renda Universal pode ser alternativa — mas capitalismo tenta descaracterizar seu caráter emancipatório

Por Cheng Li *, na Carta Social e do Trabalho | Imagem: Steven Spielberg, fotograma de filme Inteligência Artificial

O pânico introduzido pela primeira máquina a vapor em trabalhadores ingleses no século XVIII talvez seja de igual magnitude ao choque trazido pelo aplicativo Uber nos motoristas de táxi nas maiores cidades do mundo. A introdução de novas tecnologias costuma ter impactos sobre a estrutura ocupacional e as relações de trabalho.

Desde a Revolução Industrial, avanços no campo da ciência e tecnologia tiveram grande influência sobre o nível de emprego em setores específicos e em certas áreas geográficas, e em alguns casos houve extinção de algumas ocupações e criação de outras. Houve um declínio da porcentagem de camponeses no total da força de trabalho e um aumento dos operários e dos comerciários. Nos séculos XIX e XX, as revoluções científicas e tecnológicas – tais como a mecanização agrícola, os novos meios de comunicação, a transformação da matriz energética e a automação industrial – também provocaram mudanças nas relações de trabalho. Nas últimas décadas, houve um declínio do emprego no setor industrial e a força de trabalho passou a se concentrar no setor de serviços. As mudanças na divisão internacional do trabalho, inclusive em razão das cadeias produtivas globais e da terceirização em âmbito internacional, também provocaram impactos significativos sobre o emprego e as relações de trabalho.

Após acumular forças por sessenta anos, a inteligência artificial (IA) começou, recentemente, a desencadear efeitos concentrados, configurando uma revolução tecnológica que representa um divisor de águas entre o passado e o futuro. Este conceito evoluiu ao longo de seis décadas e está entrando agora numa fase de aplicação econômica totalmente nova. Ou seja, o surgimento de um novo paradigma tecnológico está próximo do ponto crítico. Partiu da construção do quadro teórico original, passou pelo desenvolvimento dos elementos chave em laboratório, alcançou capacidade operacional e finalmente atingiu o potencial de grande escala comercial. De 2010 a 2014, o investimento das empresas iniciais da IA aumentou mais de 20 vezes. A escala do mercado mundial para produtos com a aplicação da IA vai em breve ser 2.5 vezes maior do que os 8 bilhões de dólares referentes ao ano 2015. Num futuro não distante, a IA vai se popularizar como aconteceu com a rede de água e a rede de eletricidade no século XX.

O progresso da nova tecnologia injeta esperança nos homens e mulheres que se acham presos em trabalhos triviais e rotineiros, que agora veem surgir a aurora de uma “sociedade pós-capitalista”. Porém, o aparecimento da inteligência artificial, a automação do processo de trabalho e o uso crescente de robôs trazem outros efeitos sociais e trabalhistas que podem ser disruptivos. Conforme a teoria da Destruição Criativa de Schumpeter, a difusão da IA nas atividades de serviço deve gerar destruição de postos de trabalho em segmentos tradicionais, mas também pode estimular a criação de novos postos de trabalho nos segmentos mais dinamizados pelas inovações. Contudo, nada garante que o número dos empregos criados pela IA compensará os cargos destruídos e é provável que os estímulos positivos se concentrem em áreas geográficas específicas, enquanto os efeitos negativos serão generalizados. De fato, há muitas incertezas. Como será a forma predominante de trabalho no futuro próximo e o que acontecerá com os trabalhadores que não conseguirem se inserir na nova configuração econômica?

O medo e a crise trazidos por uma mudança sem precedentes

O Boston Consulting Group previu que, no final da década atual, a proporção de trabalho a cargo de robôs aumentará de 8% a 26%. Além disso, a forma de trabalho na era da inteligência artificial está se convertendo do trabalho manual simples e repetitivo para o trabalho intelectual complicado e sofisticado. Recentemente, Baidu lançou uma tecnologia de IA que permite aprender por analogia, e esta tecnologia faz os robôs conseguirem compreender as indicações de qualquer linguagem, o que significa que essa tecnologia será capaz de executar trabalho intelectual se comunicando com os humanos.

Embora muitas pessoas estejam otimistas por causa da conveniência trazida por IA no trabalho rotineiro, agora começa a surgir preocupação com a perda do monopólio do trabalho intelectual (que pode incluir a emoção, a intuição e a criatividade), a última linha defensiva que está sendo conquistada pela IA. Isto significa que a IA vai se descolar da produção tradicional, e muitos cargos em alta demanda hoje em dia (por exemplo, contadores, vendedores, tradutores e jornalistas) serão substituídos pela inteligência artificial. Por outro lado, os ganhos de produtividade reduzirão a geração de novos postos de trabalhos em nível bem limitado e farão aumentar ainda mais a intensidade do trabalho.

Stephen Hawking escreveu numa coluna do Guardian: “A automação da fábrica já deixou muitos operários desempregados. A emergência da inteligência artificial poderia levar a onda de desemprego à classe média. No estágio final, só deixará tipos de trabalhos relacionados à criação e supervisão.” A caixa de pandora já foi aberta: em 2000, na sede de Goldman Sachs: em New York havia 600 corretores, mas em 2017 só restaram dois (foram substituídos por um programa de transação automática). Em 2014, a universidade de Oxford publicou uma reportagem do estudo “O Emprego no Futuro: a análise sensível sobre o emprego à Inteligência Artificial”, apontando que não só o avanço da ciência e tecnologia não aumentaria o nível de ocupação, mas também iria substituir por volta de 50% dos postos atuais. A empresa de gestão e consultoria McKinsey, em pesquisa recente, também previu que a IA vai substitui 50% dos postos de trabalho no mundo até o ano 2045.

O progresso científico e tecnológico permitiu que máquinas com IA substituíssem trabalhadores e aumentassem o excesso de mão de obra, apesar desse progresso simultaneamente criar novos postos de trabalho. Como ocorreu depois da automação agrícola e industrial no passado, a mão de obra liberada pode se ocupar em setores que estão se expandindo (tanto em serviços pessoais como em serviços criativos), mas a velocidade de geração de novos empregos não é insuficiente para cobrir a da eliminação de empregos. Por exemplo, nos países desenvolvidos a chance de obter um emprego por causa da tecnologia do computador aumentou em 8% nos anos 1980, mas só aumentou 4% nos anos 1990, e novos empregos só aumentaram em 0.5% depois de 2000. Muitos empregos no setor de serviço estão sendo substituídos por máquinas, deixando parcela da força de trabalho desempregada, provisoriamente ou definitivamente. Por sua vez, as fábricas podem produzir cada vez mais produtos por causa do uso de robôs, da automação, da internet e da IA.

Esta mudança provocará uma mudança na estrutura de classes na sociedade futura. A imensa revolução social provocada pela inteligência artificial será marcada por uma ferocidade muito maior do que as revoluções tecnológicas anteriores. Se a revolução industrial fez nascer uma nova classe proletária e a segunda revolução industrial configurou uma nova classe operária, atualmente, a revolução de inteligência artificial pode fazer surgir uma classe social sem função econômica. Harari em “Uma Breve História do Amanhã” previu: “[…] graças à máquina, a sociedade humana vai dar à luz uma ‘classe inútil’ sem precedente, que serão inúteis para a economia e a vida militar […]”. Essa classe de pessoas sem utilidade produtiva começou a substituir o “proletariado” tradicional e até mesmo a esvaziar a classe média existente.

Os economistas do MIT Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee, em seu livro “Uma corrida com a máquina”, afirmaram que a IA está conquistando habilidades humanas numa velocidade e extensão sem precedentes, trazendo impacto econômico profundo. A operação econômica sob o sistema atual é baseada em produção e consumo, mas no caso de a grande maioria das pessoas permanecer desempregada (sem poder participar da produção), não poderá consumir (se não tiver renda). Nesse caso, na época da IA, a maioria das pessoas vai ter dificuldade para consumir. Individualmente, os capitalistas vão usar a tecnologia da inteligência artificial ou robôs a fim de buscar maximizar o lucro, mas os resultados para a coletividade serão ambíguos. Os frutos do progresso só poderão servir aos capitalistas e a uma parcela minoritária da população? Este sistema econômico será sustentável?

Hoje em dia, todas as estatísticas demonstram que a distribuição das riquezas sociais está concentrada nas mãos de 1% da população (aqueles com rendas mais altas) e a desigualdade entre os ricos e pobres vem crescendo cada vez mais. A próxima crise econômica está se aproximando. Nesse contexto, os impactos disruptivos da inteligência artificial poderiam concorrer para a destruição dos sistemas políticos e econômicos atuais?

Recebendo o salário sem fazer nada… uma nova forma de “comunismo”?

Apesar de os sistemas políticos e econômicos vigentes enfrentarem muitas incertezas, a humanidade precisa de um novo regime social estável a longo prazo. No século XX, a regulação pública dos mercados, o surgimento de um sistema público de bem-estar e a compatibilidade entre capitalismo e redução das desigualdades sociais não devem ser entendidos como uma concessão da burguesia para o proletariado. Na verdade, foram resultado das tensões e das soluções propostas para superar uma crise de grandes proporções, e em alguns casos podem ser entendidos como medidas de prevenção para assegurar a reprodução da sociedade capitalista e a estabilidade de regimes políticos. No século XXI, na sociedade da IA, esta funcionalidade será mantida?

Os ganhos de produtividade do trabalho previstos podem possibilitar políticas governamentais para a redistribuição da renda nacional. Mersk Yilong argumenta que o progresso tecnológico é essencial para manter ou aprimorar uma “sociedade de bem-estar”: “[…] nós nos beneficiamos com o desenvolvimento da tecnologia de automação, afinal é possível que teremos acesso a uma renda básica unificada ou modelo semelhante […].”

O New York Times também já apontou que a Renda Básica Universal (RBU) vem ganhando apoio de grupos capitalistas preocupados com o aumento do risco de convulsão social, em New York e no Vale do Silício. Pioneiros da pesquisa científica e tecnológica estavam conscientes das consequências da nova tecnologia para o futuro do trabalho, como demonstra o texto “Utopia do Robô: Obtendo Uma Renda sem Trabalhar”. Obama comentou em uma entrevista que “uma renda unificada é viável” e que isto será um tema quente nas próximas décadas. Adotar uma RBU talvez represente uma reforma social com grande impacto, maior do que ocorreu com a adoção do salário mínimo, e vai ser o mais básico arranjo social para manter em operação a economia social no futuro.

De acordo com Christopher Ng, presidente da UNI Global Union da ÁsiaPacífico, “as discussões acadêmicas da RBU amadureceram e o próximo foco deve ser demonstrar a viabilidade de projeto de RBU por via de experiência em vários países”. Para ele, a RBU terá um impacto de longo alcance na idade inteligente ou subverterá o sistema de bem-estar social global já existente, e reconstruirá a relação de distribuição social.

Na realidade, nos últimos anos, muitos países (como Islândia, Suíça, Países Baixos, Namíbia, Quênia, Cuba, Índia e Coréia do Sul) tentaram introduzir um plano de RBU em determinadas regiões, a fim de evitar o impacto social trazido pelo extenso uso da inteligência artificial ou de combater dificuldades de inserção no mercado de trabalho. Projetos experimentais foram realizados em algumas áreas, como o Programa do Petróleo do Alasca nos Estados Unidos, o Manitoba Experiment no Canada, o Programa Piloto em Ontário e o Programa Ricefoot em Dove. No Brasil, a lei que institui a renda básica de cidadania foi aprovada e sancionada pelo presidente Lula, mas não chegou a ser regularizada e implementada.

A experiência de alcance mais importante para a discussão proposta é a da Finlândia, que em 2017 iniciou um programa de renda básica universal considerado como pioneiro na reforma do bem-estar europeu pela revista alemã Economic News. A Finlândia deve tornar-se um laboratório para a política de bem-estar europeia, testando a viabilidade da RBU durante dois anos. O governo da Finlândia começou, em 1 de Janeiro deste ano, com base numa amostra aleatória de 2,000 pessoas que recebem subsídios de desemprego ou subsídios, o pagamento da renda básica mensal de 560 euros. Enquanto isso, o governo finlandês também irá estabelecer um grupo controle (que não receberá a renda básica) para um estudo comparativo. A intenção é considerar a possibilidade de “renda básica universal” para todos os cidadãos. Atualmente, o sistema de bem-estar exige certas condições, por exemplo, para o recebimento do subsídio de desemprego, mas no futuro todos os cidadãos poderão receber uma renda básica universal, isto é, incondicional.

A iniciativa do governo da Finlândia de promover um plano de renda básica universal foi criticada pelos que defendem medidas para reduzir os gastos do governo, enquanto outros pensam que esta experiência vai ser usada para substituir o sistema de bem-estar existente. Mas essa iniciativa, em uma era revolucionária de IA, tem importante significado estratégico. Embora os trabalhadores substituídos pela inteligência artificial possam ser preparados para ocupar um novo emprego, deve-se considerar o longo tempo de gestação de novos empregos e a baixa taxa de sucesso dessa transição. O governo planeja lançar um programa de renda básica universal para os cidadãos para manter as pessoas consumindo, o que por sua vez mantém o pagamento de impostos pelas empresas ao governo, contribuindo para o financiamento das políticas sociais.

O conceito de uma renda básica universal desafia a concepção do sistema de bem-estar social existente. Guy Standing, professor da London University, tem afirmado nos últimos anos que em todos os países ao redor do mundo há pessoas interessadas no conceito de RBU, e que as elites nacionais começam a perceber que a desigualdade de renda está aumentando os riscos políticos. Por exemplo, quando os empregados industriais se tornaram permanentemente desempregados, a sociedade de consumo foi abalada, o que levou ao colapso econômico. A perspectiva de uma extensa aplicação da inteligência artificial pode afetar uma parcela ainda maior de trabalhadores, e essa “classe inútil” terá de buscar meios para viver, o que pode ter impacto sobre a ordem social. Portanto, neste contexto, ganha legitimidade a ideia de estabelecer uma renda básica universal.

A RBU, também conhecida como renda básica incondicional, prevê a transferência, sob a supervisão do governo ou da comunidade, de um valor fixo distribuído a todos os membros (pessoas) para atender as condições básicas de vida, independentemente dos seus rendimentos, de ter ocupação ou propriedade, precisando ser apenas cidadão ou residente numa determinada região do país. O cupom de consumo em Taiwan, emitido a todos os cidadãos, sem distinção de sexo e idade, para ricos e pobres, sem ressalvas, é um programa que também pode ser qualificado como RBU.

A maré escura apareceu na área da IA

A maioria das discussões sobre os efeitos sociais da substituição do trabalho humano por máquinas com IA está concentrada no impacto sobre os empregos em um sistema econômico desenvolvido. O fabricante de automóveis Tesla é um exemplo: a produção foi totalmente automatizada e está voltando ao Vale do Silício.

Porém, as preocupações quanto à introdução da inteligência artificial em atividades onde predomina o trabalho manual não são exclusivas dos países mais desenvolvidos. Nos países em desenvolvimento esse debate é ainda incipiente e se baseia em uma perspectiva conservadora. Na realidade, em alguns países em desenvolvimento já se percebe o perigo de que esta revolução científica e tecnológica produza desemprego, de modo similar ao que se projeta nas economias que estão na vanguarda do progresso. Porque as grandes empresas dão prioridade para aplicar a inteligência artificial em áreas de uso intensivo de recursos, indústrias de mão de obra intensiva, ou se beneficiam da inteligência artificial usada no setor de manufatura para obter vantagens competitivas e redução de custos operacionais. Além disso, o uso da IA tende a enfraquecer a organização sindical e movimentos grevistas nos países em desenvolvimento.

À medida que o desempenho técnico melhora, a área da fabricação se torna menor e os custos de produção aumentam, nas indústrias mais intensivas em trabalho vai aumentar a chance da máquina substituir trabalhadores. O fenômeno de expulsão de trabalhadores será mais evidente nesses ramos. Em 2014, Oxford University publicou “O Emprego no Futuro: uma análise sobre a sensibilidade do emprego à Inteligência Artificial”. O relatório de pesquisa afirmou que o desenvolvimento desta tecnologia não só não pode aumentar o emprego, como a inteligência artificial irá substituir quase 50% dos postos de trabalhos existentes. Assim, as pessoas vão se deparar com uma grave crise do emprego. Os empregos serão mais impactados pela inteligência artificial no comércio de varejo, em serviços impessoais, na indústria de modo geral e nos serviços de transporte e comunicação.

Em razão da concorrência intercapitalista internacional pelo domínio da produção e exportação de bens, tanto os países desenvolvidos como muitos em desenvolvimento já entraram no campo de batalha tecnológica referente à inteligência artificial e ao desenvolvimento de robôs inteligentes. Segundo matéria publicada no New York Times, há uma janela da oportunidade para o Ocidente retomar a liderança na indústria manufatureira, mas para isso é necessário avançar antes que a China consiga usar os robôs em larga escala para produzir todo tipo de bens. A China, como um dos países em desenvolvimento mais influentes, inevitavelmente ocupará as primeiras posições nesta corrida. McKinsey, no relatório “A ascensão da máquina: a inteligência artificial dos olhos dos executivos chineses”, apontou que a China tem a tendência de liderar a indústria de inteligência artificial. E isso representa uma ameaça para países como os EUA, a França e a Alemanha.

As grandes empresas nos países em desenvolvimento, movidas pela busca de lucro e pela competição internacional, terão inevitavelmente de introduzir cada vez mais a inteligência artificial na produção, causando um impacto direto explícito nessas economias. Mas, tal impacto não será equivalente àquele que é esperado nas economias avançadas, onde a massificação do ensino superior eventualmente permite que a população desfrute mais dos benefícios da IA. Olhando para o conjunto da economia mundial, a revolução da IA vai reforçar a hierarquia existente, ou seja, os fortes vão ficar mais fortes, os fracos relativamente mais fracos. A Accenture, firma de consultoria estratégica, acredita que em 2035 a inteligência artificial vai impulsionar o crescimento econômico em 12 países desenvolvidos, fortalecendo a configuração de poder na economia mundial.

A revolução da IA vai dificultar ainda mais o “catch-up” tecnológico, a convergência para um padrão mais elevado de desenvolvimento econômico, e vai continuar concentrando a riqueza. Dessa forma, os países em desenvolvimento vão continuar subordinados aos países tecnologicamente mais avançados, e a divisão global do trabalho existente continuará a aprofundar as desigualdades. Além disso, vão se desiludir aqueles que ainda esperam ansiosos por uma transferência de capitais chineses para países menos desenvolvidos, em razão da elevação dos salários e outros custos trabalhistas na indústria de transformação, porque a ampla utilização da inteligência artificial altera os parâmetros da gestão empresarial. Assim, na era da IA, o trabalho não será mais o componente central da produtividade, perdendo sua centralidade no capitalismo.

Impacto da IA nos países em desenvolvimento: fim das “escadas rolantes”

Atualmente, a acumulação de capital no campo da inteligência artificial amplia a distância entre os países. Tomando a China como um exemplo, embora exista uma política governamental para desenvolver rapidamente a inteligência artificial, é inegável que, especialmente no nível técnico da robótica, está muito atrás de países mais desenvolvidos. No campo da inteligência artificial, a China ainda sofre com a baixa integração nos acordos sobre patentes globais, a falta de cooperação eficaz na área de patentes, bem como a falta de uma norma industrial sobre patentes de IA. Numa tentativa de mensuração e comparação, o “Índice da Wuzhen” (relatório sobre o desenvolvimento da IA em âmbito global) apontou que os Estados Unidos, em relação à China, tem 6,8 vezes mais financiamento, 4 vezes a quantidade das empresas de AI e 1,7 vezes o número de patentes. Na quantidade de robôs, o indicador é de 36 unidades por 10 mil empregados nas empresas chinesas, enquanto na Coréia do Sul esse número atingiu 478, no Japão, 314, e na Alemanha, 292 unidades por 10 mil trabalhadores.

Diante da ausência de perspectiva de patente e, ao mesmo tempo, da quantidade baixa de robôs, a taxa de participação no mercado de robô das marcas chinesas é baixa, localizada no extremo inferior da cadeia de valor. De acordo com os dados do National Bureau of Statistics, antes do ano 2012, o mercado de robôs industriais da China era dominado por marcas estrangeiras (a suíça ABB, a alemã KUKA, as japonesas Yaskawa Electric e Fanuc e outras empresas de capital estrangeiro ocupam uma posição dominante, cujas vendas representaram mais de 70%). E de acordo com a avaliação do “Robot Industry Development Plan”, na China, a maioria das aplicações de robótica das empresas está concentrada principalmente na montagem e refinamento, a produção está concentrada nos robôs de baixa tecnologia agregada. Além dos problemas técnicos, as indústrias chinesas tradicionais ainda não estão prontas para usar a tecnologia de inteligência artificial, e muitas indústrias tradicionais não a veem com foco estratégico. A pesquisa de McKinsey descobriu que 40% das companhias da indústria tradicional não se interessam pela inteligência artificial como um tema estratégico. Em 2016, no que se refere a projetos de IA, 60% das empresas chinesas não obteve progresso satisfatório.

A norma do campo da inteligência artificial é confusa, e confronta com os problemas da irregularidade da estrutura técnica e da divergência entre a situação real e a interface de aplicação. O que diretamente eleva o limiar de entrada para o campo da inteligência artificial, e não é propício para a formação de desenvolvimento benigno do ambiente industrial. Além disso, para as empresas que estão prontas para desenvolver IA, a escassez de especialistas é o principal empecilho. Menos de 25% dos trabalhadores da área de IA têm experiência profissional superior a dez anos, na China, enquanto este tipo de especialista corresponde a mais da metade nos Estados Unidos. Além disso, na China, é irrisório o número de cursos técnicos e superiores destinados a aprendizagem com máquinas inteligentes.

Finalmente, no que se refere à transição para a sociedade do futuro fundada em IA, os arranjos sociais na China ainda se encontram muito distantes de ter o preparo apropriado. O economista da universidade de Harvard Dani Rodrik acredita que a popularidade dos robôs deixou mais difícil para os países em desenvolvimento usarem as “escadas rolantes” do crescimento econômico. Os países em desenvolvimento apresentam um nível baixo de proteção social e boa parte da população não está preparada para entrar na era dos robôs.

No entanto, os comentários sobre a necessidade de reforma do sistema do bem estar provocados pela revolução da IA dão uma importante referência para a construção apropriada do regime do bem-estar dos países em desenvolvimento. Tais países podem aprender com as realizações e as experiências dos países mais avançados em termos de bem estar, obtidas na construção do regime de seguridade social, observando os processos da reforma do regime dos outros países, especialmente as políticas concretas e os discursos sociais nos experimentos de renda básica universal. É necessário, também, incentivar fortemente a área acadêmica a fazer análises teóricas sobre os aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais induzidos pela experiência de RBU. Finalmente, considerando a situação real da economia nacional e a gestão macroeconômica, garantir viabilidade e legitimidade para as estratégias de enfrentamento dos impactos da difusão da IA.

A competitividade científica e tecnológica condiciona a qualidade do desenvolvimento econômico, a capacidade de ação estatal e o próprio poder soberano do Estado, sendo um pilar de sustentação indispensável para qualquer país moderno garantir o seu lugar no mundo contemporâneo. Embora tenham chegado atrasados na revolução industrial anterior, a era da inteligência artificial realmente é uma nova oportunidade para alguns países em desenvolvimento, mas não basta focar na introdução das novas tecnologias, é preciso também olhar para o futuro, adotar as políticas apropriadas para preparar a sociedade para uma profunda transformação. Dessa forma, podemos enfrentar os desafios trazidos pela revolução em curso com mais serenidade.

* Bacharel em Gestão de Recursos Humanos e Relações Industriais no Instituto de Relações Industriais (China); mestre no Instituo TATA de Ciências Sociais (Índia); mestre no Instituto de Economia da Unicamp

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Sugestões de leitura

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