Breve roteiro para o universo pós-pornô

Que propõem artistas e ativistas interessad@s em se assumir como sujeitos eróticos, rejeitando, contudo, a ideia de sexo como “receita simples, repetitiva e limitadora”

Por June Fernández, no El Diario | Tradução Opera Mundi

Imagem no site pornoterrorismo.com, que vê a si mesmo como " uma forma de insurgência, divergência, contra-hegemonia, subversão; uma insurreição sexual e uma objeção de gênero.

Imagem no site pornoterrorismo.com, que vê a si mesmo como ” uma forma de insurgência, divergência, contra-hegemonia, subversão; uma insurreição sexual e uma objeção de gênero.

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Que propõem @s artistas e ativistas interessados em se assumir como sujeitos eróticos, rejeitando ao mesmo tempo a ideia de sexo como “receita simples, repetitiva e limitadora”

Por June Fernández, no El Diario | Tradução Opera Mundi

1989. Nova York. Teatro Harmony. No cenário, uma mulher vestindo lingerie, meia-calça preta, cinta-liga e sapatos de salto alto. Os cabelos ruivos estão presos, ela usa cílios postiços e muita maquiagem. Está recostada em uma poltrona, abre bem as pernas, introduz um espéculo na vagina e convida o público a olhar para dentro. Ela é Annie Sprinkle, considerada uma precursora do pós-pornô, cujos espetáculos incluíam a performance “Public cervix announcement” [“Anúncio de cérvix público”, em tradução livre]. Sprinkle propunha uma visita ao colo de seu útero, a fim de satirizar os mitos e o obscurantismo que rodeiam os genitais femininos. “Aproximem-se e verão que não há dentes”, dizia, em tom divertido, enquanto incentivava as mulheres a explorarem suas vaginas.

Na realidade, Sprinkle tomou o conceito de pós-pornografia emprestado do artista holandês Wink van Kempen, que com esta expressão se referia a criações sexualmente explícitas cujo objetivo não é induzir à masturbação, mas têm na realidade um viés crítico ou paródico. Sprinkle havia trabalhado como atriz pornô e, indignada com a indústria que considerava tanto machista como irresponsável diante da crise de AIDS, passou a dirigir seus próprios filmes e a organizar espetáculos em que expõe suas facetas de artista, educadora sexual e ativista feminista.

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Na Espanha, esta corrente tomou força no início do século 21. O clímax chegou em 2008, quando o teórico queer Paul B. Preciado (anteriormente conhecido como Beatriz Preciado) organizou, em Donostia, o congresso Feminismopornopunk, em que participaram tanto figuras destacadas do cenário internacional (como o fotógrafo trans Del Lagrace Volcano, a cineasta Tristan Taormino e a própria Sprinkle), como artistas, ativistas e comunicadores do panorama espanhol: entre elas, as Post-Op, Diana Pornoterrorista e María Llopis, uma das duas integrantes do (então já desintegrado) coletivo Girls Who Like Porno.

A outra metade do duo era Águeda Bañón, a nova diretora de comunicação da prefeitura de Barcelona, a quem a prefeita recém-eleita Ada Colau valoriza por sua experiência com comunicação digital e trajetória nos movimentos sociais. Para grande parte da imprensa espanhola, no entanto, o mais importante é a experiência de Bañón com a pornografia.

Entre 2002 e 2006, o coletivo Girls Who Like Porno criou peças de videoarte e organizou oficinas com um enfoque feminista: “Queremos fazer saltar pelos ares o espartilho com o qual apertamos nossas identidades, nossas fantasias e nossa sexualidade. E queremos nos divertir fazendo isso”, afirmam em seu manifesto. Nisso, distinguem-se de outra corrente, o pornô para mulheres (cuja diretora mais destacada é a diretora sueca baseada em Barcelona Erika Lust), “porque este rótulo está sendo usado para falar de um pornô cheio de ‘feminilidade’, ou seja, música romântica e transas suaves, carinhosas e heterossexuais”.

“O pós-pornô é teoria e carne”, escreve Llopis. Seu livro o “El postporno era eso” [“Isto era o pós-pornô”, em tradução livre] facilita a tarefa de definir o termo e traz uma lista de filmes e projetos relacionados à corrente. “Para mim, o pós-pornô é política queer, pós-feminista, punk, DIY [‘do it yourself’, ou seja, faça você mesmo], mas também uma visão complexa do sexo, incluindo a análise da origem de nosso desejo e uma confrontação direta com a origem de nossas fantasias sexuais. Por isso, o pós-pornô às vezes é um tipo de meta-pornô, centrando-se em questionar a indústria pornográfica e a representação da sexualidade veiculada hoje pelos meios de comunicação”, acrescenta. Que representação é esta? O sexo como “receita simples, repetitiva e limitadora”, nas palavras de Sprinkle, protagonizado por corpos jovens e siliconados que fingem sentir prazer.

Preciado define o pós-pornô como “o efeito de se tornar sujeito daqueles corpos e subjetividades que, até agora, só haviam podido ser objetos abjetos da representação pornográfica”: as mulheres, as minorias sexuais, os corpos não-brancos ou deficientes, as pessoas transexuais, intersexuais e transgênero. No pós-pornô, as pessoas ignoradas pelo pornô hegemônico ou utilizadas para representar fantasias alheias, frequentemente de forma degradante, tomam as rédeas e gravam ou atuam expressando sua própria sexualidade, convertendo-se em protagonistas com um roteiro decidido por elas próprias.

A ativista, escritora e cineasta transgênero norte-americana Tobi Hill-Meyer é uma das tantas pessoas que, depois de trabalhar na indústria pornográfica, decidiu se colocar detrás das câmeras para produzir um conteúdo erótico que oferecesse uma visão mais representativa da sexualidade das pessoas trans. Em seu artigo “Onde as mulheres trans não estão: sua lenta inclusão na pornografia”, explica que as mulheres trans só aparecem na indústria pornô com nomes depreciativos (“tranny” ou “shemale”, o equivalente a “traveco” em português) e de forma muito estereotipada: com saltos altos, exibindo pênis grandes e eretos.

Águeda Bañón, hoje diretora de comunicação da Prefeitura de Barcelona, e María Llopis: duo girlswholikeporno (Foto: Marietta Kesting, 2006) Ela dirigiu o filme “Doing It Ourselves” [“Fazendo nós Mesmas”, em tradução livre], com o qual ganhou o prêmio de Cineasta Emergente nos Feminist Porn Awards de 2010, e pelo qual recebe constantemente cartas de pessoas trans que agradecem pela representação respeitosa e positiva.

Outra referência trans é Lazlo Pearlman, um artista performático, tatuado e forte, que desconcerta o público com um striptease em que termina mostrando sua vulva. Em um trecho do filme “Fake Orgasm” (“Orgasmo Fingido”, dirigido pelo espanhol Jo Sol), Pearlman permanece nu, deitado em uma cama, enquanto pessoas o observam e fazem perguntas sobre seu corpo, sua identidade e sua sexualidade. Pearlman utiliza seu corpo como instrumento para que o público se conscientize sobre seus preconceitos.

Mas o pós-pornô não apenas traz visibilidade e abre o debate sobre corpos que desafiam as normas sexuais e de gênero. As pessoas com diversidade funcional são outro coletivo-chave. A própria Annie Sprinkle foi detida por publicar fotos em que era penetrada por uma mulher com sua perna amputada. Neste campo, o projeto audiovisual Yes, We Fuck! [“Sim, Nós Fodemos!”, em tradução livre] demonstra que as pessoas com deficiência física ou intelectual também sentem desejo sexual e gozam, ligando suas experiências às das pessoas que trabalham no âmbito da sexualidade. O documentário mostra, entre outras histórias, a primeira experiência com o BDSM (bondage, dominação-submissão e sadomasoquismo) de Oriol, um homem com diagnóstico de paralisia cerebral, e acompanhamos Mertxe, uma mulher cega, em uma oficina de ejaculação feminina realizada por um rapaz trans.

Nos anos 1980, o feminismo se dividiu entre o setor que defendia o fim da prostituição e da pornografia e o que preferia promover representações da sexualidade de maneira não-machista. Annie Sprinkle foi uma das maiores representantes deste último movimento. A aposta se encontra com a arte feminista gerada desde os anos 1960, na qual criadoras como Carolee Schneemann ou Hannah Wilke utilizavam seu corpo de uma maneira que enfurecia os críticos acostumados ao nu feminino desenhado ou esculpido pelo “gênio masculino”. Esses críticos, que rechaçavam em uníssono a Vagina Painting de Shigeko Kubota (um pincel era introduzido na vagina e a pintura era feita com sangue menstrual) celebravam “a performance de Yves Klein em que mulheres nuas eram instruídas a se untarem em YKB ‒ azul de Yves Klein ‒ e rodar sobre rolos de papel dispostos por ele no chão”, escreve a jornalista e escritora alemã Mithu M. Sanyal.

Por isso, não é de se estranhar que o pós-pornô tenha sido desenvolvido por ativistas feministas e queer, nem que as criações em vídeo do grupo Girls Who Like Porno tenham sido apresentadas em exposições de arte. Outras adquiriram relevância, como a performer Diana J. Torres, conhecida como ‘pornoterrorista’, que está contribuindo para romper o tabu sobre a ejaculação feminina com suas performances, oficinas e seu livro.

Da mesma maneira que ter feito parte do movimento pós-pornô não é um segredo inconfessável, mas antes uma etapa na carreira de uma ativista como a hoje funcionária da Prefeitura de Barcelona Águeda Bañón, as performances e ações de rua são instrumentos-chave para o movimento feminista. Desde a segunda onda do feminismo, com lemas como “o pessoal é político” e “meu corpo é um campo de batalha”, as mulheres utilizam seus corpos para denunciar a dominação patriarcal.

Tanto a arte ativista feminista como o pós-pornô criticam precisamente as estruturas machistas arraigadas às quais os setores conservadores apelam. Este imaginário patriarcal que divide a metade da população entre boas e más mulheres, segundo o qual o corpo feminino só pode ser mostrado para o deleite do olhar masculino, e em que a aparência de dirigentes políticas inspira manchetes.

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