Amira Haas: o olhar rebelde de uma jornalista judia

Ela optou por viver em Gaza e denunciar a realidade nos territórios palestinos ocupados. Em entrevista, debate o desespero dos jovens e as possíveis alternativas

Por Alexandra Lucas Coelho, no Público

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Ela optou por viver em Gaza e denuncia ao mundo a realidade nos territórios palestinos ocupados. Em entrevista, debate o recrudescimento da violência por Telaviv, o desespero dos jovens, as possíveis alternativas

Por Alexandra Lucas Coelho, no Público

Na noite em que nos reencontramos em Ramallah, onze anos depois da última entrevista para o Público, Amira Hass tinha acabado de mandar para o Haaretz, diário israelense onde trabalha, uma investigação sobre como o exército israelense está tornando deficientes muitos jovens palestinos que atiram pedras, ao disparar balas de verdade nas pernas. A história ia ser o destaque de primeira página no dia seguinte, Amira estava contente, achava “corajoso” da parte da direção. Há 22 anos que o trabalho dela é contar aos israelenses a realidade dos Territórios Palestinianos Ocupados, primeiro em Gaza, onde morou três anos, e desde então na Cisjordânia. Dependendo dos editores, das épocas, nem sempre foi fácil, apesar do Haaretz ser considerado um jornal de esquerda, hoje uma raridade em Israel. Começamos pela nova geração na Palestina (ver reportagem na edição de domingo).

Como viu o levante de jovens há um ano, que chegou a ser chamado de Intifada [mas que consistiu, basicamente, de ataques pessoais contra israelenses, cometidos por pessoas que eram, em sua maior parte, mortas em seguida pela polícia]?

Chamo-lhe levante privado. E mesmo em relação ao termo levante, sou cautelosa. Certamente não Intifada, porque isso implica um movimento popular, todo mundo mobilizado, o que não aconteceu. Mas havia uma sensação de revolta. Foi uma revolta privada.

No sentido de individual?

Porque eles decidiram sozinhos, sem nenhuma organização. E a sociedade teve muitas oportunidades de se juntar, de fazer grandes manifestações, e não o fez, decidiu contra um levante, claramente. Só houve manifestações alargadas pela devolução dos corpos [de jovens palestinos, atacantes ou suspeitos de quererem fazer ataques, que foram mortos pela polícia].

Mas sendo uma revolta privada, aqueles jovens representam sentimentos de muitos, de que as pessoas já não aguentam mais isto. Não foram apenas razões políticas, mas também pessoais, psicológicas. E muita gente podia empatizar com esse sentimento, de que a vida já não merece ser vivida. Uma ideia muito perigosa, mas essa era a mensagem. E havia ódio, claro, porque as pessoas têm todas as razões para odiar. Não me surpreende que o tenham feito, surpreende-me que mais não o tenham feito. A sociedade reagiu de forma um pouco esquizofrênica. Por um lado, honrou-os como heróis, por estarem fazendo a revolta que mais ninguém fazia; por outro duvidavam que tivessem esfaqueado ou o quisessem fazer.

Há várias diferenças entre os casos. Viu padrões?

O desejo de imolação teve um grande papel. Mas vejo esse desejo desde a Segunda Intifada [2000]. Portanto, não sei se é uma coisa da geração do Facebook.

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Um seguir o outro.

Sim, imitar. A imitação era perturbante. Via-se isso. Li os interrogatórios de alguns adolescentes presos por terem com eles uma faca, e alguns diziam que tinham visto aquilo no Facebook: vamos comprar uma faca, vamos esfaquear um judeu. Depois, o único judeu que reconheciam era um religioso, ficavam com medo porque havia soldados, desistiam, portavam-se de forma suspeita, porque os israelenses já suspeitavam de toda a gente, e eram apanhados. Na forma como explicam isso não há uma compreensão política. Mas há muitos sentimentos, e isso também é político, porque eles estão sendo ocupados. Ao mesmo tempo, desempenham um papel na peça. O que lhes agrada, porque essa é a peça à volta deles. E os pais nem têm ideia do que se passa.

Alguns tinham 13, 14, 15 anos.

Até 12 anos. Houve um de 12 anos que saiu com uma faca, cooptado por outro. No caso dos muito jovens, em geral, há um mais velho que os leva. E o mais velho, em geral, tem problemas em casa. Depois há os que querem resolver os problemas, serem heróis. Acham que serão mais aceitos, ou querem punir os pais. Há muito isso, mas como a sociedade é muito renitente a criticá-los, não têm forma de saber se o que estão fazendo é sem sentido, que não é heroísmo, especialmente os que vão matar civis. Esse é um padrão. O ódio é compreensível, consigo entendê-lo. Mas são arrastados por um mais velho.

Onde colocaria um caso como Baha Alyan [22 anos, protagonista da reportagem na edição de domingo]?

É o caso dos mais velhos, zangados devidos a casos anteriores, pelo que aconteceu a outros jovens. E esses também também estavam se vingando de alguém. É uma cadeia, em que o desejo de imolação tem um papel. Um imita o outro, mas como tem mais recursos, age de uma forma chocante: Baha e o amigo mataram dois idosos e um homem de meia-idade num ônibus. Mas foi numa colônia. E quando olhamos para Jabal Mukaber [o bairro de Baha] e para Armon Hanatziv [o colono em cima do bairro] realmente podemos sentir toda a arrogância da ocupação em meio quilometro quadrado.

Baha foi uma exceção?

Em relação a quem está num campo de refugiados e não tem um futuro, sim. Ele tinha um futuro. Mas houve mais casos como ele. Um rapaz que tinha estudado medicina, por exemplo. Eles são enterrados com os seus segredos, e no fim de tudo não sabemos.

Qual foi o clique…

Sim, o que realmente pensaram. Depois, há alguns influenciados pelo Hamas ou Jihad Islâmica. Há uma influência da media islâmica, e também da media ligada ao Fatah, menos oficial.

E há as mulheres, que, em grande maioria, tinham fugido de casa. Não é novo: até há dois anos, elas sabiam que iam a um checkpoint, mostravam uma faca e seriam presas, e desejavam isso, porque tinham problemas em casa, incesto, violência. A diferença desde o ano passado é que agora os soldados as matam. Mesmo que elas não os tenham atacado.

Um suicídio.

Um suicídio. Acho que esta onda começou quando mataram uma jovem de 18 anos que tinha uma faca. Foi a um checkpoint em Hebron, creio que para ser presa, porquê, não sei. E foi morta de forma terrível. Varreram-na com balas. Isto encheu as pessoas com tanta raiva que fermentou a onda. Um brasileiro tirou fotos, o que tornou o caso conhecido.

É uma forma de suicídio através de um soldado. Numa sociedade que não aceita o suicídio, é mais digno ser assim.

São principalmente de zonas rurais?

Não. Muitas são de Hebron.

Chamo estes jovens de geração perdida de Oslo [cidade dos acordos de paz de 1993, assinados entre Arafat e Rabin]. Sem futuro, sem poderem se ancorar no heroísmo dos pais, nem na memória de convívio com os israelenses. Quem tem 40, 50 anos tem alguma memória de convivência entre seres humanos. Agora, tudo o que eles veem são colonos e soldados. Não há promessa nenhuma, e as promessas anteriores não foram cumpridas. Tudo isto inchou como um balão e explodiu.

Vê também uma tendência de despolitização, no sentido de “eu quero viver a minha vida, ser feliz”?

É outra tendência. De certa forma, um fenômeno de classe. Quem sai para matar são sobretudo os pobres. Não sempre, mas a maioria. Muitos de campos de refugiados, de aldeias pobres. Nesse sentido, Baha é de fato uma excepção.

Embora não fosse rico.

Não, mas tinha um futuro. E é preciso perguntar, porque uma pessoa como ele está fazendo isto? O que isto diz sobre este regime? De alguma forma foi o que ele escreveu nos seus mandamentos de um mártir no Facebook, um ano antes, quando disse que não queria que os políticos o aproveitassem. É uma geração sem qualquer confiança em líderes, do Hamas, da Fatah.

E porque é que a sociedade decidiu que não ia se envolver massivamente?

Porque sabia que não ia conseguir nada. Não queria sacrificar-se. Na Segunda Intifada, [os bombistas suicidas] eram enviados por grupos. A grande maioria também não se juntou à luta armada, mas aceitou ser punido coletivamente. E agora ainda aderiram menos. As manifestações foram sobretudo nas universidades, e em algumas aldeias.

O coletivo não é estúpido, sabe quando é o momento. E intuiu que não ia conseguir nada, que seria em vão. Porque não há uma liderança, não há aliados, também não há aliados entre a maioria dos israelenses. Israel é muito cruel. E as pessoas perderam o hábito da luta popular: é preciso prática, uma rede de ligações, a sociedade está fragmentada. Mal a Segunda Intifada começou, circularam pela Cisjordânia, apesar dos checkpoints. Isso não aconteceu agora. Em fevereiro, quando houve uma greve de professores, milhares contornaram os checkpoints da Autoridade Palestiniana [AP], que não queria essas manifestações. Portanto se quisessem protestar contra a ocupação tinham conseguido. O argumento de que não se manifestam porque a AP os reprime, não faz sentido. Quando há uma massa, a AP não consegue reprimir.

Chegando a Ramallah ao fim de anos, é impressionante a quantidade de construção, carros, trânsito. Há dinheiro circulando.

Sim, muitos empréstimos.

As pessoas têm empréstimos, carros, casas. Isso também contribui para que não haja mobilização? As vidas estarem mais estabelecidas?

Sim. Mas também tinham casas na Primeira Intifada, estavam em relativa boa situação. Talvez de forma menos “luxuosa”, mas quem se envolveu tinha coisas a perder. Acho que as pessoas se disporiam a perder o que têm agora se sentissem que conseguiriam algo. Não é tanto o medo de perder, mas perder em nome de alguma coisa. Quanto pode ser sacrificado quando as lideranças são estas.

E como é que esta liderança de Mahmoud Abbas ainda está no poder, se não se acha um palestino que o apoie? Quem o apoia?

O mundo. O mundo quer ver uma solução de dois Estados. Não faz nada por isso, mas quer manter a pessoa que a representa, então dá-lhe dinheiro, e ele controla todo o dinheiro. E é assim que controla a Fatah. Acho que uma parte da Fatah ainda espera um milagre, que o mundo intervenha. Mas não é isso que acontecendo.

Por que não aparece uma nova geração de líderes?

Não há um mecanismo que o permita. A educação política é muito má. Os novos foram presos protestam por causa do dinheiro que deviam receber. Os velhos prisioneiros ficam surpreendidos, dizem: na Primeira Intifada, dávamos dinheiro à organização, não esperávamos dinheiro dela. Isto foi um resultado de Oslo, todo mundo ter um salário, um posto, o que criou uma atitude diferente em relação ao que é lutar pela liberdade. Tornou-se algo convertível em dinheiro. A AP, o Hamas em Gaza, recrutam pobres para as organizações militares, que são uma forma de criar clientela, quem não tem dinheiro ganha um salário assim. Portanto, cria-se lealdade a um regime, mas não a uma ideia.

Das universidades não veio nada de novo?

A BDS [sigla de Boycott, Divestment, Sanctions, movimento palestiniano e internacional contra a ocupação israelense] é um fato novo, mas não é um movimento grande, a maior parte do que fazem é no exterior, não aqui. Têm seguidores nas universidades palestinas, mas não sei até que ponto continuam envolvidos depois de saírem.

Quem viaja pela Cisjordânia agora vê tudo cheio de colônias. Você assistiu à transformação deste território. Parece-lhe possível uma solução com dois Estados?

Podemos dizer que não é uma boa solução, mas não porque as colônias cresceram. Não desisto da exigência de desmantelá-las. Todo o israelense que se muda para uma colonia deve saber que é um criminoso, que todos os que lá vivem são criminosos, e que tornam as suas crianças criminosas. É contra a lei internacional. As pessoas não concebem a ideia de desmantelar as colonias para a paz, mas concebem que os palestinos sejam privados dos seus direitos básicos? Isto é racista. Ou seja, não devemos desistir da exigência de que as colônias sejam desmantelados. É difícil mas possível. E se o mundo se levantasse, e nos punisse por continuarmos a construir colônias, acho que a maioria dos israelenses iria concordar: ok, separamo-nos da Cisjordânia.

Israel tinha 19 anos quando ocupou a Cisjordânia, passaram 50 anos. Ainda assim, a proporção é de menos de 10% de israelenses lá. Pensamos, são 600 mil colonos [sem contar Jerusalém Leste]: é muito. Mas é menos de 10%. E as pessoas são tentadas a ir para lá a todo o momento, recebem tantos subsídios. Se tivessem compensações, muitos sairiam.

Se os colonos fossem removidos, a solução de dois Estados seria a melhor?

Nada na história é final. Algumas pessoas acham que a solução de dois Estados é sionista…

E é, no sentido em que preserva um Estado para os judeus.

Mas se é sionista, por que Israel fez tudo para impossibilitá-la? Creio que se tivéssemos uma solução de dois Estados, tal como pensamos nos anos 70, isso permitiria uma democratização nas duas sociedades. Até hoje, uma grande maioria de palestinos também não quer viver com judeus no mesmo país.

Portanto, esta sociedade estaria mais confortável com uma solução de dois Estados?

Sim. Se voltarmos às fronteiras de 1967, sim.

E os refugiados [que estão no Líbano, Síria e Jordânia desde 1948]?

É uma grande questão, claro. Por isso digo que nada é final.

Os palestinos não são uma minoria, talvez possam de fato voltar às suas casas, mas à custa de quanto sangue? Queremos isso? Neste momento, qualquer solução é tão longe quanto outra.

Não tem uma ideal?

Prefiro falar de princípios. Pode haver várias. Quando me perguntam se sou por dois Estados ou um, digo, sou socialista. Se é para sonhar, sonho com a União dos Estados Socialistas do Oriente Médio.

Por que é que continua a viver aqui?

Começou como uma decisão jornalística que fazia sentido, quando mudei para Gaza. Também tinha a ver com a minha curiosidade, de viver sob uma ocupação. Agora vejo isso de forma mais ampla, analisando o meu percurso. Digo, meio brincando, meio sério, que sou uma típica judia que acredita na diáspora, e encontrei a minha diáspora aqui. Em certo sentido, saí de Israel. Aqui vivo com menos contradições. Viver com palestinos faz-me estar mais ligada ao lugar. Nunca me senti muito ligada; nasci em Israel, mas por acidente. Os meus pais vieram como refugiados, não como sionistas. E eu podia ter nascido noutro lugar qualquer se eles tivessem sido mais espertos. Mas é a minha língua, é o meu lugar, fiquei ligada às cores, à luz, e às pessoas, claro.

O que também descobri, é que é doloroso ir a Israel e ver tão vividamente a Naqba [para os palestinianos, O Desastre, o que perderam na criação de Israel]. É doloroso para mim. As pessoas podem sonhar com o retorno, é o direito delas, claro. Não vejo isso acontecer no nosso tempo de vida, e não penso que haja uma forma fácil de o fazer. Mas penso que ao lutar contra a brutalidade israelense aqui na Cisjordânia, abrimos as portas para diferentes atitudes. Acho que Israel ficou mais brutal com as colônias, nos últimos vinte anos. Manter os colonos implicou ficar muito mais brutal.

Sente uma diferença no mainstream internacional em relação a Israel? O boicote, e todas as outras campanhas, fazem alguma diferença lá dentro?

Ainda não. Trouxe algum mal estar, é desconfortável. Mas acho que é muito importante, para os palestinos, a sensação de que têm um instrumento. Não sinto que tenha feito tremer a economia israelense ou a autopercepção israelense. Acho que Israel é menos detestado no mundo do que as pessoas tendem a pensar. É a minha impressão. Mas o ponto não é o ódio, é parar com esta impunidade. E temos de continuar a luta. É muito mais difícil do que a luta contra o apartheid na África do Sul. Não temos um mundo bipolar, os que parecem ser aliados da Palestina são os maus, porque são muçulmanos, etc. Na África do Sul havia o bloco soviético e Cuba. Claro, sabemos o que era a URSS, uma grande prisão para as pessoas, mas apresentava-se como emancipadora, a ideologia que as pessoas atribuíam à URSS era progressista. E isso não é algo que possamos atribuir à maioria dos regimes árabes, que agora nem sequer estão com os palestinos. Então, a luta dos palestinos contra o apartheid israelense é muito mais difícil.

O Estado Islâmico tornou tudo pior?

As pessoas têm medo. Há palestinos que têm medo de uma aproximação ao ISIS.

Vê algum sinal disso?

Há alguns sentimentos, que vêm do desespero, do ódio, da frustração.

Aqui na Cisjordânia?

Sim. Acontece. Sei por amigos palestinos. E preocupo-me com isso. E em Gaza também.

O que sabe sobre o que se passa em Gaza?

Muito pouco. Sei que a repressão israelense está apertando. Os habitantes de Gaza estão dentro de uma prisão desde antes de Oslo, não têm liberdade de movimento, e isso tem consequências, claro. E agora estão internamente presos pelo endurecimento do Hamas, da repressão do Hamas. Mas sei muito pouco, porque as pessoas não falam ao telefone. Há muitos detalhes que precisamos de ter, como jornalista, preciso de saber detalhes. Mas sei que é terrível. Só a ideia de que quase dois milhões de pessoas estão dentro de um enorme campo de concentração. E nem estou falando da catástrofe ambiental. Não é amanhã, é agora. Quando há um risco permanente de inundações de esgoto, quando 95% da água é imbebível, isto é uma catástrofe. E as pessoas não poderem sair, não consigo sequer conceber. Fecha todos os horizontes, todas as esperanças, todas as capacidades do ser humano. E ainda assim há muita criatividade em Gaza.

Acho que Gaza é um dos maiores falhas e traições internacionais, ter-se permitido que Israel mantivesse Gaza como uma grande prisão durante tantos anos, e sob o disfarce do processo de paz. Porque isto começou antes de o Hamas chegar ao poder. Acho que é a bancarrota moral do mundo, mais do que qualquer outra coisa. Porque é algo que se pode solucionar politicamente. Posso perceber que a certa altura seja muito difícil parar uma guerra como a da Síria. Mas isto? Deixar dois milhões de pessoas numa prisão durante tanto tempo? E quando quem está fazendo isto é aliado, alguém que podemos influenciar? É realmente a bancarrota do Ocidente.

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