Uma alternativa ao Minha Casa, Minha Vida

Para garantir moradia popular de qualidade, com infraestrutura e próxima aos Centros, não é preciso favorecer construtoras, nem mistificar direito à propriedade

Por Luiz Kohara, Francisco Comaru e Maria Carolina Ferro, no ObservaSP

No centro de S.Paulo, moradores que haviam ocupado prédio abandonado observam e ironizam ação da polícia, chamada para desalojá-los

No centro de S.Paulo, moradores que haviam ocupado prédio abandonado observam e ironizam ação da polícia, chamada para desalojá-los

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Para garantir moradia popular de qualidade, próxima ao trabalho e com infraestrutura, não é preciso favorecer construtoras, nem mistificar direito à propriedade

Por Luiz Kohara, Francisco Comaru e Maria Carolina Ferro, no ObservaSP [i]

É bastante conhecido que a propriedade individual e privada constitui-se num dos elementos centrais do capitalismo. Todavia, no tocante às políticas habitacionais, evidências empíricas e argumentos teórico-conceituais mostram que o acento sobre a propriedade privada precisa ser refletido e debatido em profundidade, sobretudo no contexto das metrópoles na contemporaneidade. Essa tarefa é desafiadora, ainda mais a partir da nova etapa de acumulação do capitalismo global, iniciada na década de 1970, na qual, segundo David Harvey,[ii] o espaço urbano e a propriedade privada se tornaram a nova fronteira de acumulação do capital.

Pode-se dizer que a produção pública de habitação social nas metrópoles brasileiras se caracterizou pelo tripé: produção maciça, localização periférica e propriedade privada e individual. Esse modelo tem mostrado limites claros no tocante à produção de cidades sustentáveis do ponto de vista da mobilidade, do meio ambiente e da saúde, da inclusão socioespacial, do direito à cidade e do acesso de todos os brasileiros à moradia digna e de qualidade.

Para além do problema do enfrentamento do déficit e da precariedade habitacional, está em jogo a produção do espaço urbano e de cidades justas, inclusivas e democráticas para todos. No contexto da produção maciça que tem ocorrido nos últimos anos, por meio de vultosos investimentos subsidiados, cabe discutir o lugar da habitação social pública como serviço público.

Isso porque inúmeros desafios parecem dificultar a melhoria das cidades. O primeiro é o desafio da moradia de interesse social bem localizada, ou seja, próxima do local de trabalho e inserida em área com oferta de infraestrutura e serviços urbanos essenciais.[iii] Destaca-se que a produção de habitação de interesse social continua seguindo a lógica de produção periférica da cidade.

Outro desafio se refere à produção de moradia acessível do ponto de vista econômico-financeiro. Cerca de 74% do déficit habitacional urbano brasileiro se concentra nas famílias com renda até 3 salários mínimos, de acordo com estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) [iv]. No entanto, os programas habitacionais e seus financiamentos, em geral, têm dificuldades claras de privilegiar essa faixa de renda. Como consequência, parte significativa dos trabalhadores e da população de baixa e baixíssima renda não tem conseguido cumprir os requisitos mínimos de acesso aos financiamentos para aquisição da casa própria.

Por último, destaca-se o desafio da efetividade e durabilidade dos resultados positivos da política habitacional, qual seja, a permanência das famílias de baixa renda nas moradias produzidas, sem que sofram processo de “expulsão branca” desencadeado por valorização imobiliária em curto e médio prazo. Sabe-se que parcela considerável das unidades habitacionais produzidas e financiadas tem sido, com o tempo, repassada para famílias com renda ligeiramente ou bastante superior ao inicialmente planejado. Esse processo, em geral, ocorre por meio de venda do imóvel, que pode se dar a partir de uma formalização em registro de cartório e órgãospúblicos ou ainda de maneira informal e à margem dos sistemas de registros. [v]

A locação social, por sua vez, caracteriza-se pelo fato de as famílias residirem em imóvel público e pagarem aluguel ao poder público. O valor do aluguel é subsidiado e, geralmente, fica vinculado à renda familiar e não ao valor de mercado do imóvel, o que permite que seja acessível, do ponto de vista do comprometimento financeiro. Na locação social a família que reside tem o direito à moradia garantido, por meio do direito de morar dignamente, mas não tem o direito de vender, apropriando-se individualmente do investimento público com o lucro da venda.

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A experiência empírica mostra, tanto no caso brasileiro como no europeu, que quando se produz moradia social prioritariamente voltada para compra e propriedade individual, na maioria dos casos, simplesmente injetam-se recursos públicos dentro do mercado de moradias e esse processo ajuda a dinamizar e inflar o próprio mercado, beneficiando proprietários e investidores prioritariamente. Dessa forma, o investimento público acaba tendo o efeito contrário ao desejado e dificulta ainda mais o acesso da população de baixa renda a uma moradia adequada, seja por meio da compra, seja por meio do aluguel no mercado privado.

Por outro lado, cabe destacar o importante debate sobre direito à cidade que a locação social suscita. Esse instrumento procura desvincular a ideia de direito à moradia da lógica da propriedade privada. Sendo de propriedade pública, o imóvel da locação social não pode ser vendido, protegendo o locatário da conhecida “expulsão pelo mercado imobiliário”, muito comum quando se trata de propriedade privada, que a qualquer momento pode ser solicitada pelo proprietário para venda. Assim, o morador tem acesso a um imóvel em área bem localizada, por um valor acessível de aluguel, sem que o imóvel possa ser vendido. Na experiência da cidade de São Paulo, a locação social visou garantir o acesso a uma boa localização no espaço urbano.

A locação social no centro de São Paulo – Nota-se que sempre ocorreu uma resistência, tanto dos governos como dos movimentos populares, com relação à propriedade pública da moradia social. Já na década de 2000, a valorização da terra no centro da cidade acarretava um alto custo da produção habitacional. Tal realidade inviabiliza o financiamento de imóveis para a população de baixa renda na região central, pois para tal são necessários subsídios altíssimos com os quais a prefeitura não pode arcar.

A partir de 2001, na gestão de Marta Suplicy, provocada pela pressão da luta popular, a prefeitura toma a iniciativa de produzir habitação de interesse social no centro da cidade, com o município mantendo-se proprietário dos imóveis e alugando-os a baixo custo para famílias de baixa renda. Inicia-se, assim, o Programa de Locação Social como uma alternativa que visava garantir a inclusão habitacional da população de baixa renda na região central, mantendo o trabalhador próximo à infraestrutura urbana. O programa é dirigido a pessoas sós e a famílias cuja renda seja de até três salários mínimos ou àqueles cuja renda per capita familiar seja inferior a um salário mínimo. É prioritariamente destinado à população que se encontra nas seguintes situações: pessoas acima de 60 anos; pessoas em situação de rua; pessoas com deficiência; e moradores em áreas de risco e de insalubridade.

A experiência paulista foi a primeira do país e, até o momento, se mantém como único parque público de habitação popular. Para o Programa de Locação Social foram construídos ou reformados prédios na região central, viabilizando cinco empreendimentos e um total de 853 unidades habitacionais. No entanto, lamentavelmente, a prefeitura não desenvolveu um trabalho social sistemático para inserção social dos moradores, conforme estabelecido na Resolução do Programa, e a gestão ficou bastante limitada ao patrimônio. Esse abandono gerou muitos problemas às famílias, aos empreendimentos e ao próprio programa.

Nesse contexto, o Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, em 2011, realizou uma pesquisa qualitativa que teve como objetivo identificar expectativas, críticas, desafios e avanços significativos do Programa de Locação Social, por meio da aplicação de questionário a 28 pessoas, sendo 20 moradores beneficiados pelo programa desde o início, cinco lideranças de movimentos de moradia e três gestores públicos.

De acordo com a pesquisa, 80% dos moradores entrevistados consideram positivo ter uma moradia adequada, mesmo que ela não seja própria e que se pague aluguel para a prefeitura. A pesquisa revelou que existe uma significativa diferença entre a expectativa dos idosos e dos adultos com família. Para os idosos, a locação social é uma alternativa de moradia definitiva, pois teriam dificuldade em acessar e pagar um financiamento da casa própria e não gostariam de ter compromissos longos com altas prestações para adquirir um bem. Já para os adultos com famílias, o aluguel social é considerado um passo intermediário para a conquista da casa própria.

Sendo os beneficiários pessoas de baixíssima renda, antes do Programa de Locação Social estes chegavam a comprometer mais de 50% da renda familiar com o aluguel, o que limitava o suprimento das necessidades básicas da família. De acordo com a pesquisa, a maioria das famílias que pagava aluguel antes do ingresso no Locação Social teve diminuição de seus gastos com esse item, o que corresponde a 65% dos entrevistados. Para aquelas famílias que afirmaram ter aumentado a despesa com moradia, em cerca de 35% dos casos essa situação se justificava pelo fato de serem provenientes de favelas, ocupações ou situação de rua, de modo que não pagavam aluguel. Dessa forma, para a maioria, o valor economizado com o aluguel ampliou o poder de consumo da família, permitindo que investisse no próprio desenvolvimento social. As áreas em que as famílias mais investiram os recursos economizados foram: consumo (eletrodomésticos, produtos e bens para o lar, vestimenta, telefone, internet etc.), 39%; saúde, remédios e alimentação, 31%; lazer e viagem, 14%; poupança e pagamento de despesas, 11%; educação, 5%.

Além disso, a melhoria das condições e da qualidade de vida se deu também pelo fato de a locação social estar localizada na região central da cidade, próxima à oferta de emprego e aos serviços públicos (hospitais, escolas, creches, transporte etc.). Isso reduziu consideravelmente o tempo e o gasto com transporte público e possibilitou o acesso ao lazer e à cultura. Também foi ressaltado o fato de os moradores estarem menos expostos à violência e à criminalidade.

Com relação à gestão do condomínio, a pesquisa mostrou que quando há participação dos moradores e de movimentos de moradia, ela se torna mais eficiente e o grau de satisfação dos moradores aumenta. Além disso, o prédio é mais bem cuidado, os moradores pagam as taxas e tarifas em dia e há maior facilidade para administrar. Dessa forma, o trabalho feito em parceira entre movimentos e prefeitura, denominado gestão compartilhada, mostrou-se a solução mais adequada segundo a maioria dos entrevistados, tanto moradores, como movimentos sociais e poder público.

A pesquisa revelou, ainda, insatisfação dos moradores com o trabalho social da prefeitura. Por outro lado, mostrou que quando os movimentos de moradia estão mais atuantes no empreendimento, como é o caso dos edifícios Senador Feijó e Vila dos Idosos, o grau de satisfação dos moradores sobre o trabalho social desenvolvido é elevado.

Atualmente, devido à falta de uma política que produza novas moradias de interesse social para a região central, o Locação Social se encontra isolado e termina se constituindo uma alternativa “definitiva”, já que as famílias participantes, que deveriam ter sido encaminhadas no prazo de oito anos para programas de financiamento de moradia própria, todavia permanecem no programa.

Propriedade privada em xeque – A locação social coloca em xeque a propriedade privada e individual como resposta exclusiva para enfrentar o grave déficit habitacional brasileiro e destaca seus limites para garantir o direito à cidade nas metrópoles brasileiras, sobretudo para a população de baixa e baixíssima renda, que aufere até três salários mínimos ao mês.

Além disso, ela se mostra adequada para atender e incluir a população de baixa renda em áreas mais valorizadas das cidades, como áreas centrais e bairros nobres.

É preciso rever a concepção e o significado do acesso à moradia digna para a população de baixíssima renda, a fim de que se cumpra a função social como um serviço público que possibilite todas as condições para o pleno desenvolvimento humano e social.

Para que avancemos na busca de cidades mais justas, democráticas e sustentáveis é preciso que a produção pública da habitação social deixe de priorizar a mercadoria privada que dinamiza o processo e as fronteiras de acumulação do capital nas cidades.

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*Luiz Kohara é educador popular e secretário-executivo do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos. É doutor em Arquitetura e Urbanismo (USP).

**Francisco Comaru é engenheiro, doutor em saúde pública pela USP, professor da Universidade Federal do ABC e colaborador do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos.

***Maria Carolina Ferro é administradora, doutoranda em Ciência Política (Unicamp). Pesquisadora do Nepac (Unicamp) e colaboradora do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos. 

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[i] Texto baseado no artigo “Locação social como alternativa ao problema de habitação popular na região central de São Paulo”, dos mesmos autores, publicado em: García, Ariel Oscar. (Org.). Espacio y poder en las políticas de desarrollo del siglo XXI. 1ed. Buenos Aires: Ceur/Conicet, 2014, v. 01, p. 264-294.

[ii]Harvey, D. (2013). Limites do Capital. São Paulo, Boitempo.

[iii] Comaru, F. (2013). Habitação social em áreas centrais e suas implicações para saúde e acesso ao trabalho: hipóteses e uma agenda de pesquisas para o Brasil metropolitano. Em: Encontro Nacional da ANPUR. Recife, Anais

[iv] http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=20656

[v] Ver: Azevedo, S. de (1988). Vinte e dois anos de política de habitação popular (1964-1986): criação, trajetória e extinção do BNH. Em: Revista de Administração Pública, vol. 22, n.4, outubro-dezembro, Rio de Janeiro, p.107-11. Cf. também: Ferreira, J. W. (2012). Produzir casas ou construir cidades? Desafios para um novo Brasil urbano. Parâmetros de qualidade para a implementação de projetos habitacionais e urbanos. São Paulo, LABHAB, FUPAM.

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Ferreira, J. W. (2012). Produzir casas ou construir cidades? Desafios para um novo Brasil urbano. Parâmetros de qualidade para a implementação de projetos habitacionais e urbanos. São Paulo, LABHAB, FUPAM.

Kohara, L.; Uemura, M.; Ferro, M. C. (2012). Moradia é Central: lutas, desafios e estratégias. São Paulo, Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos.

Maria Carolina Ferro é administradora, doutoranda em Ciência Política (Unicamp). Pesquisadora do Nepac (Unicamp) e colaboradora do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos.

–>Sugestões de leitura sobre o assunto: Brasil (2010). “Plano Nacional de Habitação (versão para debates)”. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional da Habitação, Brasília

 

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