A luta incomum das mulheres curdas

Em nação desmembrada há 93 anos por potências ocidentais, elas combatem ISIS, enfrentam machismo e participam de invenção política que articula ideias marxistas e anarquistas.

Melike Yasar, entrevistada por Marco Weissheimer, no Sul21

A guerra contra o Estado Islâmico tornou mais visível para o mundo o protagonismo das mulheres curdas que não se limita, porém, à luta armada. As curdas estão na linha de frente da luta de seu povo por democracia e por um modelo de economia anticapitalista

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Em nação desmembrada há 93 anos por potências ocidentais, elas combatem ISIS, enfrentam machismo e participam de invenção política que articula ideias marxistas e anarquistas.

Melike Yasar, entrevistada por Marco Weissheimer, no Sul21

As mulheres curdas ganharam destaque internacional no último ano em função de seu protagonismo no enfrentamento armado contra o Estado Islâmico, principalmente no Iraque e na Síria. A guerra tornou visível para o mundo o protagonismo dessas mulheres que não se limita à luta armada. As curdas estão na linha de frente da luta de seu povo por democracia, liberdade para as mulheres e construção de um modelo de economia alternativa, comunal e cooperativada. Essa luta tem cerca de 40 anos, quando mulheres curdas foram viver nas montanhas, pegaram em armas e começaram a questionar frontalmente o modelo patriarcal e repressivo sob o qual viviam até então. Enfrentar a mentalidade dos próprios companheiros foi uma luta mais difícil do que a enfrentada contra o Estado turco, conta Melike Yasar, militante do Movimento de Mulheres Livres do Curdistão, que veio ao Brasil participar de debates e atividades com mulheres de movimentos sociais brasileiros.

Em entrevista ao Sul21, Melike Yasar fala sobre a luta e as ideias do Movimento de Mulheres Livres do Curdistão que elaborou uma crítica radical do modelo de Estado e de poder político baseado no patriarcado. Os curdos, hoje, explica, não lutam mais por um Estado independente, mas pelo direito de viver em um território da maneira que desejam. Esse território, hoje, está dividido entre regiões da Turquia, da Síria, Irã e Iraque. Além disso, analisa o atual momento da guerra na Síria e detalha a proposta curda para a superação do conflito: a criação de uma Confederação Democrática em toda a Síria, respeitando a autonomia das variadas etnias e culturas que vivem na região. E denuncia a repressão por parte do Estado turco que não admite a ideia de um Curdistão autônomo.

O que é o Curdistão hoje?

Sou originária do norte do Curdistão, que corresponde à região sudoeste da Turquia, e representante do movimento de mulheres do Curdistão. O Curdistão é um território muito antigo que remonta à Mesopotâmia. É o coração da antiga Mesopotâmia, entre os rios Tigre e Eufrates, onde começou a civilização. Os curdos vivem no centro desse território. É um povo que tem uma cultura muito antiga com raízes na civilização suméria. Em 1923, um encontro promovido na cidade suíça de Lausanne por iniciativa de França, Inglaterra, Turquia e outros países, acabou resultando na divisão do Curdistão em quatro partes, distribuindo-se entre Turquia, Irã, Iraque e Síria.

Território curdo, hoje, está dividido entre regiões da Turquia, da Síria, Irã e Iraque.

Território curdo, hoje, está dividido entre regiões da Turquia, da Síria, Irã e Iraque.

Qual é o principal objetivo dos curdos na atualidade?

Quando dividiram o Curdistão, ocorreram 28 levantes de resistência do povo curdo contra essa medida. Esses levantes duraram um ou dois anos. Países imperialistas, como a Inglaterra, deram suporte a Turquia para acabar com a resistência. Em 1978, foi criado o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) com o objetivo de criar um Estado independente e socialista, com uma perspectiva marxista-leninista. Uma das novidades desta iniciativa é que o PKK poderia criar uma organização nas quatro partes do Curdistão e não somente na Turquia. Até hoje, esse movimento luta em quatro países com uma perspectiva de liberação dos povos. Mas o movimento curdo evoluiu para uma posição crítica à criação de um Estado nacional centralizado. Hoje, não acreditamos que essa perspectiva de um Estado nacional possa dar conta dos problemas enfrentados pelo povo curdo. Também foi feita uma crítica à perspectiva marxista-leninista. De um modo mais amplo, essas duas críticas representam uma crítica mais forte à própria noção de poder.

A proposta alternativa surgida dessas críticas se chama Confederalismo Democrático, um sistema sem um Estado centralizado, onde as mulheres desempenham um protagonismo central para a construção de uma sociedade livre. Neste sistema, a libertação das mulheres é a primeira condição para uma sociedade livre. Na perspectiva marxista-leninista, antes da libertação das mulheres vinha a construção do Estado e da nação. Nós avaliamos que isso é um erro e que uma sociedade só pode ser livre com a libertação das mulheres. Nos anos 90, quando o movimento curdo mudou sua ideologia, mulheres começaram a lutar com armas nas montanhas. Mais importante do que isso, a partir daí começou o debate sobre a necessidade de mudar o modelo patriarcal de sociedade. Esse debate de fundo mais ideológico começou a ser feito nas montanhas.

Hoje, em Rojava, no norte da Síria, região oeste do Curdistão, os curdos têm seu próprio sistema, o Confederalismo Democrático. Esse sistema iniciou em 2011, depois da Primavera Árabe, quando também começou a crise na Síria. Os curdos decidiram não viver as mesmas experiências de outros povos na Primavera Árabe que se levantaram contra ditaduras, que acabaram derrubadas, mas, depois, foram substituídas por novas ditaduras. Os curdos decidiram aproveitar o momento de crise na Síria para criar uma nova alternativa, que é o Confederalismo Democrático, que não está aliada nem com o regime de Assad nem com a coalizão contra o regime que quer manter o mesmo modelo presidencial. Esse sistema alternativo funciona, não é uma utopia. Em Rojava, não vivem só curdos, mas também árabes, sírios, armênios, turcomenos, chechenos.

Quantas pessoas vivem neste território, aproximadamente?

Cerca de três milhões de pessoas que vivem sob um sistema de autodeterminação, com uma força de autodefesa. Esse modelo é muito perigoso para a Síria e para os países imperialistas, pois é um sistema sem Estado, onde as mulheres são protagonistas. As mulheres estão na linha de frente e lutam armadas, não só contra o regime de Assad e contra o Estado Islâmico, mas também contra a mentalidade patriarcal.

O Confederalismo Democrático é um sistema anarquista? No que ele se diferencia do anarquismo, se é que se diferencia, nesta crítica que faz ao Estado?

Muitas vezes me fazem essa pergunta. Eu respondo que é um sistema anarquista, marxista, socialista, feminista. Todas as correntes de pensamento anti-capitalistas podem conviver neste sistema. Há uma perspectiva socialista, mas, para nós, o socialismo é uma nova forma de vida contrária à forma da modernidade capitalista. E há uma perspectiva anarquista também, pois acreditamos que os povos que vivem sob esse sistema devem viver como quiserem, mas com uma organização. Essa é uma diferença importante em relação ao anarquismo que existe hoje. Há um anarquismo na Europa que rejeita a ideia de organização. Nós acreditamos que um povo e uma vida sem organização não é um povo e uma vida com liberdade.

No Confederalismo Democrático seguimos um critério ligado à ideia de uma sociedade ética e política. Política, aqui, significa “organizada”, e Ética é a “ética de vida” da sociedade antes do patriarcado, com uma mentalidade democrática e uma característica socialista. Hoje, na América Latina, há vários grupos anarquistas, feministas e partidos socialistas que apoiam esse sistema.

Neste modelo de auto-organização e autogestão implantado no território curdo na Síria, como funciona a gestão dos serviços públicos? Esse sistema prevê a existência de empresas públicas para administrar, por exemplo, o serviço de abastecimento de energia ou de água?

É preciso ter em mente que, agora, neste território, há uma guerra. E esse território, oficialmente, também não é dos curdos. O Confederalismo Democrático se organiza por meio de um sistema de comitês, assembleias e, mais acima, um conselho dos povos com representantes eleitos. E há três cantões que articulam esse sistema de assembleias. Há alguns princípios básicos como a paridade de gênero. Em qualquer instância há uma paridade entre homens e mulheres. E há uma paridade também do ponto de vista dos diferentes povos que habitam esse território. Cerca de 70% são curdos, mas aí também vivem árabes, sírios, turcomenos e outras etnias que também tem representação nas estruturas políticas.

Os comitês são criados de acordo com as necessidades de cada comunidade. Há comitês para a saúde, para as mulheres, para a economia (há uma economia alternativa baseada em cooperativas), para a educação e assim por diante. A energia elétrica vem da própria Síria, mas tem se desenvolvido formas alternativas de produção de energia.

Os três cantões que existem não são reconhecidos oficialmente. As fronteiras são fechadas para o comércio, para ajuda humanitária e para as necessidades do povo. As fronteiras com a Turquia e com o Iraque só estão abertas para o Estado Islâmico. Mas temos muito projetos para o futuro baseados em uma teoria econômica feminista. É uma economia alternativa com um pensamento criado fundamentalmente por mulheres.

A proposta dos curdos é implantar o Confederalismo Democrático por toda a Síria.

A proposta dos curdos é implantar o Confederalismo Democrático por toda a Síria.

Essa experiência do Confederalismo Democrático está ocorrendo só no território curdo na Síria?

Sim. Agora estamos trabalhando para levar esse sistema para outras partes também. Já temos territórios curdos, na Turquia, onde comunidades estão adotando esse sistema em administrações autônomas, começando uma guerra. Desde dezembro do ano passado, há uma guerra do exército turco contra o povo curdo não militante. Nos últimos quatro meses, o Estado turco já matou cerca de 500 civis, utilizando inclusive armas químicas. Em várias regiões, foi declarado toque de recolher, mas o povo curdo está resistindo e há unidades armadas para defender as cidades.

Você mencionou que as fronteiras com a Turquia e com o Iraque estão abertas para o Estado Islâmico. Existe, de fato, uma cumplicidade entre o governo da Turquia e o Estado Islâmico?

Sim. O governo turco diz que é contra o Estado Islâmico, mas ajuda a financiar esse grupo e abre as portas para ele na fronteira. A Turquia tem medo, pois esse sistema do Confederalismo Democrático instalado no norte da Síria há apenas três anos pode ser reconhecido pelos Estados Unidos e pelas Nações Unidas. Se a ONU e outras forças internacionais influentes reconhecerem esse sistema que construímos em Rojava terão que aceitar também a sua existência na Turquia. E isso o Estado não quer. Na fronteira da Turquia com a Síria, há uma cidade chamada Kobani, onde houve uma resistência muito importante em 2014, quando os curdos derrotaram o Estado Islâmico. Depois disso, Estados Unidos e Rússia disseram que as forças curdas não eram terroristas, mas sim lutadoras importantes contra o Estado Islâmico. Essa região é muito importante para o transporte de petróleo em todo o Oriente Médio, pois ela tem uma passagem para o mar, por onde os russos também podem comercializar seu gás para todo mundo. A Turquia não quer que os curdos tenham o controle desta zona.

Se o mundo reconhecer os curdos oficialmente, outras comunidades que vivem na Turquia podem querer fazer o mesmo, como em Esmirna, que tem ligação com a Grécia, e Capadócia, com a Romênia. O sistema ideal para a Turquia e, talvez, para todo o Oriente Médio é o da confederação. Na Turquia vivem hoje muitos grupos étnicos de diferentes cores, idiomas e religiões. Poderia virar um exemplo para o mundo. Mas a mentalidade do poder e do Estado nacional é um obstáculo para isso. Os curdos não querem mais um Estado independente, pois são contra o Estado. Podemos criar uma federação de povos turcos. A bandeira e a identidade turca podem continuar a existir, sem problema, mas nós queremos viver podendo falar o nosso idioma, por exemplo. E isso a Turquia não quer.

Se os cursos ganharem em seus territórios na Síria, no Iraque, no Irã e criarem esse sistema autônomo, a Turquia vai ficar isolada. Os curdos estão prontos para levar adiante o processo de paz na Turquia. Mas o que está acontecendo agora é o Estado turco matando civis. Se isso continuar acontecendo, os curdos estão preparados para resistir e não ceder aos ataques do exército. Hoje, há uma separação entre curdos e turcos, mas há algo mais grave acontecendo, o início de racismo contra os curdos. Acadêmicos, advogados e intelectuais, incluindo Noam Chomski, que apoiaram uma declaração pedindo o fim das hostilidades contra os curdos, foram declarados terroristas, sofrendo perseguições e prisões. Lançamos essa declaração também aqui no Brasil e em outros países da América Latina e conseguimos o apoio de muitos professores.

Outra coisa importante a assinalar é que o governo não está agindo somente em territórios de curdos. O exército, unidades especiais e paramilitares estão agindo também em outras áreas atingindo civis e chegando inclusive a matar crianças e bebês com poucos meses de idade. O povo curdo está pronto para desencadear uma luta mais forte nos próximos dias em todas as áreas onde vivem curdos, podendo chegar também a grandes cidades da Turquia.

Há quem diga que há uma pequena guerra mundial em curso hoje na Síria, pois as principais potências mundiais estão envolvidas no conflito. Quem são os aliados políticos dos curdos hoje na Síria e qual a proposta curda para a superação da guerra e da crise que vive este país?

A proposta dos curdos é implantar o Confederalismo Democrático por toda a Síria. Achamos que esse é o caminho para democratizar o país, com a construção de um sistema confederado onde todos os povos estariam representados, o que hoje não ocorre. Os curdos, antes do início dessa guerra, não podiam ter uma identidade própria, assim como ocorria também com outros grupos étnicos e minorias. Os Estados Unidos e outros países imperialismos não acreditavam que esse sistema confederado poderia funcionar. Agora, já começam a mudar de ideia e o Confederalismo Democrático começa a ganhar a simpatia de muitos países. Muitos militantes da América Latina, Ásia, Europa e África estão indo para Rojava para aprender mais sobre o confederalismo democrático e prestar solidariedade internacional.

Como é dentro do movimento curdo esse debate de crítica ao modelo patricarcal e de concepção de poder político protagonizado pelas mulheres? Como os homens curdos reagiram a essas ideias? Houve machismo e resistência a elas?

Há cerca de quarenta anos, as mulheres curdas não podiam sair e a sua palavra não era escutada. Suas tarefas eram cuidar das crianças e cozinhar. Mulheres eram mortas em nome da honra. Um homem podia se casar com três ou quatro mulheres ao mesmo tempo. As mulheres não sabiam o que era a rua e tinham que cobrir os rostos com véus e lenços. Hoje, os homens têm medo das mulheres curdas. Mas não só medo. Eles aceitam que sua libertação depende também da libertação das mulheres. Houve um processo muito forte, quando as mulheres curdas foram lutar nas montanhas. Elas dizem que a luta contra os próprios companheiros foi mais forte que a luta contra o Estado turco ou contra o Estado iraniano.

Esses militantes são um exemplo para o povo. Se eles não mudam sua mentalidade não podem também mudar a sociedade. Hoje, as mulheres têm uma posição que os homens aceitam. Nas estruturas políticas e institucionais há critérios de paridade de gênero e normas que impedem o homem de casar com duas mulheres. Se um homem quiser casar com duas mulheres, a assembleia da comunidade dirá que ele não pode fazer isso. Se ele insistir em fazer isso, não conseguirá viver nesta comunidade. Não será expulso, mas nenhum habitante desta comunidade irá cumprimentá-lo ou falará com ele. Há estruturas educacionais onde as mulheres são responsáveis pela formação dos homens com a ideologia da libertação das mulheres. Nas escolas em Rojava, onde existe esse sistema desde o primeiro ano até as universidades, essa ideologia está presente em todas as classes.

Há outro trabalho muito importante das mulheres curdas que estamos discutindo agora na América Latina a Jinealogi, expressão que em curdo significa “mulher” e “vida”. É uma ciência da vida, que não se resume a um trabalho acadêmico, sendo mais uma filosofia de vida. A ideia é criar uma economia feminina alternativa. Para nós, uma economia feminina significa uma economia comunal cooperativada cujo objetivo não é ganhar dinheiro em troca do trabalho. Estamos realizando um debate sobre esse tema aqui no Brasil com companheiras dos movimentos sociais.

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4 comentários para "A luta incomum das mulheres curdas"

  1. Samantha disse:

    São as mulheres é que vão mudar esse mundo. Parabéns, texto e lutas bárbaros.

  2. Muito obrigada por lutarem pelos direitos humanos!

  3. Fabiane disse:

    Onde estão ocorrendo esse debate gostaria de saber mais.

  4. Onde está sendo e quando esse debate Jinealogi no Brasil que a militante cita? Seria legal divulgar, fiquei muito interessada e acredito na filosofia.

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