A discreta subversão da Literatura Periférica

Menos conhecidos que “saraus”, encontros de escritores como Ferréz com jovens são frequentes. Por meio da leitura, revelam: outras realidades são possíveis

Por Julio Souto Salom, no Sul21

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Menos conhecidos que “saraus”, encontros de escritores como Ferréz com jovens são frequentes. Por meio da leitura, revelam: outras realidades são possíveis

Por Julio Souto Salom*, no Sul21 | Imagem: João Pinheiro

Quando, faz uma década, um novo movimento literário começou a se articular nas periferias do país, muitas reações foram de suspicácia. A grande circulação destes autores e obras, passando de pequenas editoras e revistas, a frequentar prêmios e eventos literários, boa parte da crítica não deu muita relevância ao movimento, acreditando que se trataria de uma moda passageira. Se argumentou que o seu sucesso se devia a uma estratégia do mercado editorial, que ante o interesse “voyeurístico” do leitor de classe média pela violência nas periferias, propunha o artifício da “autenticidade”: quem “vive” no tema tem o conhecimento direto, pelo que nada melhor que o “olhar interno” do “autor nativo”, a favela narrada “desde dentro”. Se só se reconhece o valor desta literatura pela sua pretensa “autenticidade”, se corre o risco de ignorar a grande qualidade literária de muitas destas obras, ademais de outros efeitos socioculturais paralelos que não são nada irrelevantes. Um deles, talvez dos mais interessantes, é a capacidade destes autores para conectar com crianças e adolescentes da periferia, despertando curiosidade e interesse pela literatura, gerando hábitos de leitura em ambientes nos que esta normalmente estava ausente.

A antropóloga Érica Peçanha do Nascimento, referência no estudo da Literatura Marginal Periférica, comenta a capacidade destes escritores auto-definidos “marginais” para a conexão com um público específico: “Pra um menino que ta lá na periferia e que tem um igual que também escreve, que virou notícia na televisão porque escreve, é extremamente significativo. Eu participei de pouco mais de 200 atividades nesses oito anos que fiquei pesquisando, e tive a oportunidade de acompanhar também esses escritores em escolas, também em ONGs; é impressionante o efeito pedagógico junto aos meninos de favela e periferias”. Ainda que sejam incipientes os estudos específicos sobre o potencial pedagógico desta corrente literária, a sua efetividade pode ser conferida observando essas atividades, como tivemos a oportunidade de ver na recente participação do escritor Ferréz na Feira do Livro de Porto Alegre (14/11/2013).

Dentre os muitos nomes e títulos que circulam por livros, antologias e saraus, Ferréz pode ser considerado um dos principais articuladores da Literatura Marginal Periférica. Convidado para participar no tradicional evento editorial de Porto Alegre, Ferréz não se limitou a cobrar o cachê e dar a palestra combinada. O escritor chegou um dia antes à cidade para visitar a escola “Nossa Senhora de Fátima”, no bairro do Bom Jesus. Estas palestras em escolas das periferias fazem parte da rotina de Ferréz faz alguns anos, como ele explica: “Tento mostrar que a literatura não tem por quê ser uma coisa chata, que a literatura pode fazer rir, pode dar tesão, pode gerar um sentimento de revolta… Meu objetivo é criar milhões de leitores, ganhar os moleques para a literatura”. Mas há também um esforço de provocar uma consciência crítica e indignação política que reforce a auto-estima das crianças: “Eu tento fazer eles observar e compreender. Quando estou nas vilas, mando eles olhar pelas janelas, e pergunto: por quê temos que morar entre o lixo, no córrego? Aí pensamos juntos: a gente mora no córrego, mas não é o córrego”. Consciente da eficácia deste trabalho de educação emocional e literária, o escritor não duvida em continuar com ele, ainda sem o apoio de nenhuma instituição: “Não tem edital para isso, não tem verba pública, não tem fundação. Eu faço isso porque eu amo isso”.

Os professores e professoras que já trabalharam estes autores na sala de aula sabem da empatia que gera nos seus alunos. Exemplo disso é o presente que Ferréz ganhou nesse dia, que nos mostrou orgulhoso e emocionado: um caderno artesanal que os alunos da escola do Bom Jesus tinham elaborado, com fragmentos do texto e desenhos das ilustrações dos contos infanto-juvenis de Ferréz, como Amanhecer Esmeralda (Planeta, 2005). Esse belo livro traz uma história de esperança e otimismo para uma menina que vive na periferia de uma grande cidade, que a partir de um pequeno presente do professor, e uma importante conversa com a merendeira da escola, vive uma experiência de afirmação e elevação da autoestima. Com sua pequena mudança na forma de ver as coisas, a menina vai criando no seu bairro “um efeito dominó, só que ao contrário – uma peça levanta outra, que levanta outra…”.

Este tipo de atividades e obras que levam histórias de superação e vitória ao público infantil, não são uma exclusiva de Ferréz, senão que estão cada vez mais presentes na produção dos autores periféricos. Por exemplo: a infinidade de visitas a escolas do poeta Sérgio Vaz (organizador do sarau da Cooperifa), com um roteiro semelhante ao descrito; o livro Zagaia, de Allan da Rosa (DCL, 2007), que traz fantásticas imagens com o esquema poético da literatura de cordel; Os Zumbis da Pedra, do repórter Manoel Soares (Besouro Box, 2009), que alerta as crianças sobre os riscos da droga; Dia das Crianças na Periferia, de Alessandro Buzo (Suburbano, 2011), onde a mensagem se reforça com as ilustrações de Alexandre de Maio. Através destas “portas de entrada”, os jovens leitores podem seguir aos autores em outras obras deles, e mais além, acompanhá-los para descobrir o imenso mundo da literatura.

O leitor de Amanhecer Esmeralda, procurando mais obras do autor, poderia descobrir Capão Pecado, um romance situado no bairro de Capão Redondo, extremo sul de São Paulo, onde o escritor mora até hoje. Nesse cenário periférico se desenvolvem também outros trabalhos do autor, como o romance Manual Prático do Ódioou o volume de contos e crônicas Ningúem é inocente em São Paulo. Em todas essas obras a violência urbana é enfocada da ótica do oprimido, tentando contestar a truculência da narrativa oficial. É possível que seja a ênfase nessa perspectiva, que se faz extensiva ao tratamento do texto (com abundância de gírias, ou usos anômalos de regência e concordância), pelo que as obras de Ferréz foram objeto de fortes polêmicas sobre sua utilização na escola. Mal compreendidos, estes textos provocam reações defensivas. Foi o caso da Federação de Pais de Minas Gerais, que pediu a proibição de Capão Pecado nas escolas pela presença de “palavrões” no texto. O presidente da Fapaemg, entendeu que esse livro sugere às crianças “que podem xingar o professor, porque os palavrões estão no livro que a escola dá”. A hipocrisia da polêmica irritou a Ferréz, que na época reclamava no seu blog: “O debate devia girar em torno da desigualdade social que o livro aborda, mas em vez disso se discute a linguagem.”

Mas além dos seus romances, o trabalho de Ferréz levaria ao leitor a conhecer outros autores, como os elencados nas coletâneas Literatura Marginal, números especiais da revista Caros Amigos (posteriormente publicados em livro, pela editorial Agir, 2006). Nesses três especiais apareceram escritores periféricos de todo o país, sendo essa a primeira publicação de tiragem nacional para muitos deles. Ferréz fala com verdadeira admiração de autores estreantes que foram publicados nessas coletâneas: Rodrigo Ciríaco, Cidinha da Silva, Allan da Rosa, Marcos Teles… Esta vontade de articular um movimento literário coletivo, com identidade própria, é uma das principais motivações do escritor, que para isso fundou a sua própria editora (Selo Povo – LiteraturaMarginal) publicando autores periféricos em livrinhos de bolso, ao módico preço de 7 reais. Na conversa, nos revelou que a editora de Capão Redondo está preparando uma mudança de imagem e novos lançamentos, dentre os que nos antecipa a publicação de um volume de crônicas do clássico Lima Barreto, além de novas apostas em jovens periféricos ainda inéditos, já que, como ele diz: “Se eu não aposto neles, quem o vai fazer?”.

Tudo isto faz que Ferréz tenha um caráter diferenciado no circuito literário convencional. “Me dou bem com alguns escritores, como Lourenço Muttarelli, que vai ilustrar meu próximo livro, Marcelino Freire, ou Marçal Aquino. Mas não tenho muitos amigos entre os escritores mais conhecidos. Normalmente não nos vemos, porque eu moro na favela e eles não vem muito por ai. Mas coincidimos nas viagens, como agora em [a Feira do Livro de] Frankfurt”. Ainda assim, a capacidade narrativa de Ferréz vem ganhando reconhecimento nos últimos anos. Seu último romance, Deus Foi Almoçar (Planeta, 2013), semi-finalista do prêmio Protugal Telecom, evita a localização específica num cenário periférico para armar uma profunda trama metafísica. Talvez seja o romance onde fique mais patente a influência do escritor alemão Herman Hesse, uma importante referência para Ferréz.

Com a desconstrução dos desejos e frustrações do indivíduo contemporâneo, o autor tenta relacionar as problemáticas que experienciou como cidadão (e se aproximam ao retratado em seus anteriores romances) com questões filosóficas mais amplas, da ordem da civilização e a modernidade, questionando nossa forma de “ser no mundo”. O autor se mostra satisfeito com o trabalho: “É o livro que sempre quis fazer, mas só agora me senti maturo e livre o suficiente para realizá-lo. Demorei oito anos para escrever esse livro, e não mudaria nem uma vírgula”. Sobre a mudança de ambientação do livro, reclama que esse aspecto tenha focado quase toda a atenção mediática: “Me perguntam muito sobre isto, por que parei de escrever da periferia? É claro, é um tema que domino, porque eu moro no tema, eu sou o tema. Mas eu não me limito a um tema só, à minha experiência. Afinal escrever literatura também é isso, né?”.

Nessa linha argumentativa corre a sua palestra na Feira do Livro de Porto Alegre, onde Ferréz relata sua trajetória biográfica e literária como uma história de esforço e superação, sempre baseada na confiança no seu próprio potencial, apesar das múltiplas vozes que tentaram desanimá-lo. Assim, ele reafirma a importância da imaginação e do sonho na vida das pessoas: “Quantos meninos aqui pretendem fazer Faculdade? Ih! só isso? Vamos sonhar! A gente tem que sonhar o nosso melhor, porque tem muita gente apostando no nosso pior, também. Porque é muito bom estar aqui participando neste evento, mas se não sonhamos, vamos a estar toda a vida montando o stand, e não falando nele”.

A grande capacidade de empatia do escritor com as crianças, jovens e adolescentes das periferias, acontece de maneira natural, pela forma dinâmica e descontraída de conversar. Ante uma platéia de crianças e adolescentes, Ferréz não duvida em parodiar o estereótipo do “escritor chato”. Em tom bem-humorado, ele critica: “Sabem porque vocês acham que a literatura é chata? Por que os escritores não falam com vocês! Eles não entendem vocês! É sério, eles preferem quatro velhos a todos vocês. Mas literatura não é isso, literatura é muito mais”. A admiração do auditório cresce quando Ferréz comenta as colaborações que, como escritor, realizou em outros formatos, seja escrevendo letras de rap (para grupos como RacionaisFacção Central,Outraversão…), roteiro de histórias em quadrinhos (Desterro, prémio HQMix ao melhor rotéiro original), ou roteiros de cinema ou tevê (episódios de séries como Cidade dos Homens ou 9mm).

Ao falar de rap, os jovens se animam a dirigir-se ao escritor, e o desafiam: “Tio, canta um rap!”. E assim, a palestra termina com um free-style sobre base coletiva, feita entre todos com palmas e chutes no chão. O jovem que lançou o desafio e rimou com o palestrante, ganhou dois prêmios: um vídeo gravado em celular, que já deve estar rolando pelo Facebook gerando a inveja e admiração de seus colegas, e um exemplar de Cronista deum tempo ruim, o livro de crônicas de Ferréz lançado pela editora Selo Povo. É assim, entre rimas versadas e páginas encadernadas, escritores como Ferréz vão criando leitores pelas periferias do Brasil.

*Julio Souto Salom é mestrando em Sociologia (UFRGS) e membro da equipe editorial da “Maria Papelão Editora”.

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