O significado da nova decisão do STF para o SUS

Thiago Campos, advogado do Instituto de Direito Sanitário Aplicado, explica como a decisão de Lewandowski pode assegurar mais recursos para o Sistema

U. Dettmar SCO/STF

Reflexos na fachada do prédio do Supremo Tribunal Federal

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14 de outubro de 2018

Por Maíra Mathias, do Outra Saúde

O financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) sempre foi um problema. Mas, a partir de 2015, se tornou um problema judicializado. Isso porque naquele ano, uma Emenda Constitucional, a 86, foi sancionada pela presidente Dilma Rousseff. Ficaria conhecida como EC do Orçamento Impositivo, e traria consequências deletérias para o SUS. Isso porque ela mudou o piso mínimo que a União precisa aplicar em ações e serviços públicos de saúde. Em 2016, ao invés dos 15% anteriores, o governo federal teria de aplicar apenas 13,2%.

Naquele ano, o Ministério Público Federal contestou a mudança. Assim nasceu a ADI, Ação Direta de Inconstitucionalidade 5595. E, sem demora, obteve uma vitória: em agosto de 2017, o relator da ADI, ministro Ricardo Lewandowski, concedeu uma liminar suspendendo os efeitos da EC 86 para a saúde. Mas a decisão não vem sendo cumprida, nem pelo governo federal, nem pelo órgão de controle, o Tribunal de Contas da União, ligado ao Congresso Nacional. Mas uma nova decisão de Lewandowski, publicada na semana passada, pode mudar isso. Thiago Campos, advogado do Instituto de Direito Sanitário Aplicado, o Idisa, explica como.

O que significa essa decisão e qual o impacto concreto para o SUS?

Para entender a decisão, é importante entender o procedimento. O que é uma reclamação constitucional? É um instrumento incluído no ordenamento jurídico, através da Emenda Constitucional 45 que, junto com a criação das súmulas vinculantes, estabeleceu mecanismos para fazer valer as decisões dos tribunais superiores. Desde então, se um ato administrativo contraria uma decisão do Supremo é possível acionar diretamente a Corte para fazer valer a sua competência. Através desse instrumento, não é preciso passar por uma instância e outra para anular aquele ato que confronta a decisão do STF.

No caso em questão, o Tribunal de Contas da União afrontou uma decisão do STF: a medida cautelar concedida no âmbito da ADI 5595. E o Idisa e a Ampcon [Associação Nacional do Ministério Público de Contas], que são amicus curiae na Ação  [entidades que se inscrevem para fazer a defesa de pontos de vista em julgamentos, dando subsídios para que os tribunais decidam sobre um determinado assunto] entraram com a reclamação constitucional que gerou uma decisão favorável publicada na última terça [9 de outubro] contra o TCU.

De que forma o TCU desobedeceu o STF?

Antes mesmo da publicação da cautelar da ADI 5595, os especialistas em orçamento público Élida Graziano e Francisco Fúncia fizeram uma representação junto ao Tribunal de Contas da União para que, observando a decisão do Supremo, o órgão verificasse se a União havia alocado os 15% da receita corrente líquida para ações e serviços públicos de saúde. Nesse meio tempo, e pela primeira vez na história, o próprio Conselho Nacional de Saúde não aprovou as contas do Ministério da Saúde. Esse processo no TCU teve parecer favorável do Ministério Público de Contas. E foi à julgamento. Mas apesar dos argumentos apresentados, nesse julgamento o Tribunal entendeu que houve aplicação de acordo com a previsão da Emenda Constitucional 86, superior a 13,2% não havendo aplicação menor do que o piso. Passando por cima da decisão do Lewandowski na ADI…

A ADI 5595 ainda não foi julgada. Como é possível que ela tenha efeitos imediatos?

Quando o Ministério Público Federal entrou com a ADI pediu a concessão de uma medida cautelar para garantir um efeito útil ao processo, tendo em vista o risco de uma decisão ser tomada só lá na frente. Traduzindo: que o próprio ministro decidisse, de forma individual, pela suspensão daquele dispositivo inserido pela EC 86 na Constituição, dali para frente, até que o plenário pudesse julgar.

Caso a cautelar não tivesse sido proferida, estaríamos aguardando até hoje uma decisão do STF sobre o tema, com danos efetivos ao direito à saúde. Por exemplo, em 2018 o assunto não vai mais entrar na pauta do Supremo. Mas os danos à sociedade acontecem desde 2016. Então, quando o Ministério Público, lá atrás, entra com a ação pedindo a declaração de inconstitucionalidade, ele pede, dado esse risco, que seja deferida uma decisão cautelar, uma liminar, uma decisão monocrática do ministro suspendendo a aplicabilidade da Emenda Constitucional 86. E foi isso que o Lewandowski fez. Essa decisão está válida.

Está válida, mas não está sendo cumprida…

Isso. Nem a União cumpriu, nem o TCU, que é o órgão de controle auxiliar do poder legislativo. O TCU deveria cumprir a decisão cautelar, e determinar não só a recomposição dos valores [não aplicados pelo Ministério da Saúde], mas medidas compensatórias.

Lá atrás, a ADI já sinalizava que a não suspensão imediata daquele dispositivo acarretaria um efeito cascata para a frente porque impactaria no valor que foi considerado para o congelamento do orçamento da saúde até 2036, feito pela Emenda Constitucional 95.

Por quê?

Qual é a base do congelamento? Na saúde, é o orçamento de 2017, corrigido pela inflação. Mas se 2017 leva em consideração a aplicação de 2016, nós temos um congelamento numa base menor. Por isso a decisão tem uma importância muito grande: determina que a União adote medidas, inclusive, para recomposição desses valores que não foram aportados em 2016 e, consequentemente, no ano de 2017, e daí em diante.

Como a decisão do Lewandowski impacta o governo federal?

Lewandowski suspendeu o acórdão do TCU que afronta uma decisão do Supremo Tribunal Federal, dada pelo próprio ministro Ricardo Lewandowski anteriormente. Por afrontar, determina a suspensão do acórdão, e mais: determina que a União adote mecanismos de compensação em razão de não aplicação dos valores do ano de 2016.

Ou seja, vai calcular a diferença entre o que aplicou – 13,2% – e os 15%, pegar esse montante e ter que aplicar agora? Vai ter que fazer essa recomposição no valor de 2016, no valor de 2017 e no valor de 2018?

A decisão fala em 2016, com consequente compensação nos anos subsequentes. Essa é uma questão, inclusive, que temos discutido: se vale a pena ou não pedirmos ao ministro Lewandowski algum esclarecimento a respeito do alcance da decisão. Porque ele se limita a pontuar 2016. É claro que ao suspender 2016, a compreensão lógica é de que esta deve ser a mesma interpretação para avaliação do recurso aplicado no ano de 2017. Se ele for menor que 15%, também terá que fazer recomposição.

E, a partir deste ano, com a EC 95 válida para a saúde, teria que fazer um cálculo em cima de 2017 com um valor maior do que aquele aplicado?

Isso.

Dado esse protagonismo nem sempre positivo do Judiciário, se discute hoje a pertinência dessas decisões monocráticas, que muitas vezes são contraditórias entre si. Nesse caso, é razoável que a decisão seja monocrática porque, caso contrário, não haveria como compensar o prejuízo?

Isso. A decisão cautelar existe no ordenamento jurídico para garantir a finalidade útil do processo. Sem ela, o dano pode ser irreparável. A não alocação de recursos públicos na saúde pode acarretar a morte de brasileiros. Ou o desatendimento de pessoas pelo Sistema Único de Saúde. Acarreta a diminuição da capacidade do Estado de adquirir vacinas, de honrar compromissos já assumidos, inclusive, com os serviços complementares contratados junto às Santas Casas e entidades filantrópicas. A não alocação desse recurso agora justifica uma decisão cautelar monocrática de um ministro porque se ele simplesmente remete ao plenário não se sabe quando isso será julgado. Não aplicar recursos suficientes para garantir o direito à saúde da população é justificativa mais do que suficiente para uma decisão monocrática cautelar.

O atual presidente do STF, Dias Toffoli, divulgou a pauta até dezembro – e, segundo ela, não há previsão do julgamento da ADI 5595 este ano. O Ministério Público Federal deu entrada na ADI em 2016, o julgamento começou em 2017. De lá para cá, o quanto andou a tramitação do processo?

O julgamento iniciou em 19 de outubro de 2017. Houve a sustentação oral dos amicus curiae. Falaram o Idisa e a Ampcon. O Ministério Público Federal [autor da ADI] não sinalizou interesse em fazer sustentação oral, mas ele ainda pode fazer, quando esse processo vier de novo à pauta. E houve um pedido de ingresso de novo amicus curiae, que precisou ser decidido. E, com isso, o processo foi retirado da pauta.

A ADI retornou uma vez mais à pauta do Supremo, em 2018. Foi colocada pela ministra Carmen Lúcia, então presidente da Corte, numa das sessões temáticas que ela realizava, neste caso sobre saúde. Nós estivemos no plenário do Supremo, na esperança de que o processo fosse julgado. Mas a discussão sobre um processo anterior se estendeu. E o julgamento sequer foi iniciado.

Não há votos ainda de nenhum dos ministros. É claro que o ministro Lewandowski preferiu a [medida] cautelar e a leva para o julgamento. Mas o voto do relator e dos demais ministros ainda precisam ser proferidos.

A esperança é que o processo seja pautado no início do próximo ano judiciário, após fevereiro. Aí, sim, poderemos pensar em ter essa ADI definitivamente julgada, com reconhecimento do princípio da vedação ao retrocesso e, consequentemente, da inconstitucionalidade da Emenda Constitucional 86.

E a decisão sobre a reclamação constitucional precisa ser julgada?

Será julgado na turma [é um colegiado de juízes; no STF há duas turmas, e Lewandowski pertence à segunda, que também é responsável por julgar os processos da Lava Jato].

Mas o TCU precisa cumprir imediatamente. Tem validade imediata. Mas será julgada não no plenário, com os 11 ministros, mas na turma. Esse julgamento na turma se dá sobre o seguinte aspecto: o TCU violou ou não a decisão proferida? Não se discute o mérito da ADI, pois isso vai ser julgado junto com a ADI. Isso é claro, não tem discordância: a decisão do ministro Lewandowski está válida, e a decisão do TCU é contrária a ela, logo, sem validade.

E esse julgamento pela turma tem previsão?

Não, ainda não há previsão.

Também pode ser uma coisa demorada?

É, pode ser uma coisa demorada. São prazos impróprios, não tem garantia nenhuma de quando será colocada em votação. O importante aí é: o parecer do Ministério Público foi favorável nesse caso à reclamação constitucional e a tendência é de um julgamento favorável.

Quem entrou com a reclamação foi Idisa e Ampcon e o Ministério Público deu um parecer favorável?

Isso. O ministro, por cautela, preferiu ouvir o Ministério Público Federal antes de proferir sua decisão. Agora o TCU será intimado para que preste informações nesse processo representado pela AGU [Advocacia Geral da União]. E aí, feita a manifestação do TCU, o processo estará pronto para julgamento na turma. E aí quem decide quando vai entrar é o presidente da turma [que, desde junho deste ano, é o próprio ministro Lewandowski].

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