O dilema do direito à saúde

Mesmo com o SUS, a saúde no Brasil continua cindida em duas e o abismo pode piorar no futuro, avalia José Gomes Temporão 

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Por João Vitor Santos, Vitor Necchi e Wagner Fernandes de Azevedo no portal IHU-Unisinos

Três décadas depois da implantação do Sistema Único de Saúde, em que estágio se encontram os princípios que sustentaram a sua criação?

Se analisarmos de um ponto de vista formal e factual, os princípios estão aí, inscritos na Constituição e garantidos na Lei Orgânica do Sistema de Saúde. Mas, do ponto de vista político, esses princípios – universalidade, gratuidade, integralidade, gestão democrática descentralizada – se encontram em risco. Isso porque nos últimos 30 anos, em vez de um sistema integrado, onde o Estado tem o controle do conjunto da rede pública e privada, houve um desenvolvimento desconectado, em paralelo, de dois subsistemas: do sistema público, que atende 75% da população brasileira em todas as suas necessidades, desde um procedimento bem simples até um transplante de órgãos; e de um segundo sistema que contempla os outros 25% da população que têm acesso a planos e seguros de saúde e medicina privada. Chama atenção que esses 25% que têm acesso ao setor privado para suas necessidades diárias dependem, para muitas das ações de saúde, do SUS. Por exemplo, o setor de transplante de órgãos atende a 90% da população brasileira, assim como a vigilância sanitária epidemiológica, e o mesmo acontece com o atendimento de urgência e emergência, vacinas etc.

Esta é uma das grandes contradições do sistema hoje: seus princípios filosóficos e suas garantias constitucionais estão em pleno vigor, mas, do ponto de vista prático, o que se vê é uma gradual fragilização – apesar dos avanços – do sistema público e um fortalecimento do setor privado. Se inserirmos essa pergunta no contexto atual, a situação se agrava, porque temos um governo que é inimigo do Sistema Único de Saúde, que trabalha cotidianamente contra ele, que representa os interesses privados e está o tempo todo colocando na mesa propostas de fragilização e privatização do SUS. Se do ponto de vista estrutural há uma fragilização do SUS, do ponto de vista conjuntural temos um ataque a ele.

” (…) sempre fico muito preocupado quando o ministro da Saúde de plantão assume com o discurso de que irá melhorar a gestão, afirmando que problemas de recursos não existem, porque isso é uma fraude”

Nesse cenário, os maiores limites do SUS hoje são de recursos ou de gestão?

Essa é uma falsa questão. Na verdade, a principal questão não é nem de gestão, nem financeira. O Brasil não avançou numa questão fundamental, que é quando a sociedade de um determinado país percebe, no seu sistema público universal, um patrimônio dessa sociedade que deve ser preservado, qualificado e garantido, no sentido de que ele ficará para as próximas gerações. É exatamente isso que acontece hoje nos países europeus. Mas nós, infelizmente, não alcançamos esse grau de consciência política sobre saúde. Esse é o principal problema, ou seja, trata-se de uma questão política.

Veja que o congresso aprova medidas que ferem a sustentabilidade econômica e política do sistema público, mas é curioso perceber que essas medidas não afetam os próprios congressistas, porque eles continuarão se utilizando do seguro de saúde privado e ficam imunes a eventuais problemas de acesso à saúde, precariedade e tempo de espera. Eles jogam essa problemática para o conjunto da sociedade, o que acaba afetando os mais pobres.

É claro que além dessa questão política existem problemas sérios de financiamento, e a própria aprovação da EC [Emenda Constitucional] 95, que congela os gastos sociais no país por 20 anos, é uma medida vil que está condenando milhares de brasileiros à morte. As evidências estão aí, com uma série de artigos mostrando que várias doenças infectocontagiosas voltaram, que a mortalidade infantil vinha caindo e voltou a subir, que há caos nas unidades de emergência etc. Portanto, existe um problema financeiro que é filho de um problema político. De outro lado, problema de gestão existe em todo sistema de saúde em qualquer lugar do mundo. Se você abrir os jornais europeus, verá que também existe tempo de espera e uma série de críticas aos modelos de saúde, ou seja, os sistemas de saúde estão sempre tentando se renovar do ponto de vista da gestão. Mas sempre fico muito preocupado quando o ministro da Saúde de plantão assume com o discurso de que irá melhorar a gestão, afirmando que problemas de recursos não existem, porque isso é uma fraude. Aliás, é o que está sendo dito desde o golpe que tirou do poder a presidente Dilma, mas hoje vemos como a situação piorou ainda mais. Os arautos da boa gestão fizeram o que para melhorar o sistema? Então, resumiria dizendo o seguinte: existe uma macroquestão que é política e existem os desdobramentos que essa questão afeta, que é o financiamento, a sustentabilidade econômica e a sustentabilidade do SUS.

O senhor mencionou anteriormente que também ocorreram avanços no SUS. Pode apontar alguns deles e mencionar também quais são as principais ameaças ao sistema?

Os avanços foram incontestes: a melhoria da expectativa de vida, a redução da mortalidade por doenças crônicas, a redução da mortalidade infantil e da mortalidade materna. No mundo todo, só os Estados Unidos fazem mais transplantes do que o Brasil, e os nossos programas de vacinação e de tratamento de Aids são referência mundial. Além disso, o Brasil é o país do mundo que tem o maior programa de atenção primária, que cobre 120 milhões de brasileiros. Ou seja, nesses 30 anos houve uma mudança brutal em termos de qualidade, de acesso, de cobertura, sempre com muita dificuldade e precariedade, mas ao mesmo tempo – e essa é uma questão paradoxal – ocorreram melhorias que poderiam ter sido mais significativas se tivéssemos governos que apoiassem mais o SUS e dessem recursos financeiros e tecnológicos necessários e suficientes. As ameaças são estas: a própria fragilização política do sistema ao longo dessas décadas.

Também é importante chamar atenção para uma contradição: ao mesmo tempo que os sindicatos dos trabalhadores sempre apoiaram o SUS na retórica, na prática eles sentavam com os patrões e negociavam para si e suas famílias planos e seguros de saúde, e isso envolveu os próprios trabalhadores do SUS, que se utilizam de seguros para si e para suas famílias. Isso criou uma situação esquizofrênica no sentido de que se tratava de um apoio apenas no discurso; na verdade revelou-se que esse estrato dos trabalhadores nunca apoiou o SUS na prática. Isso foi um vetor fundamental e importantíssimo de consolidação do setor privado, quando se considera que 90% das pessoas cobertas por planos de saúde fazem parte de planos coletivos, vinculados ao emprego, onde o patrão custeia parte dos gastos.

Em algum outro momento, ao longo desses 30 anos, o sistema já esteve mais ameaçado do que agora?

Diria que no seu nascedouro, porque o SUS nasce na contramão das políticas liberais dos anos 90, como o thatcherismo, na Inglaterra. Ou seja, nasce na contracorrente, porque conceitualmente ele se coloca contra a ideologia neoliberal e pressupõe um Estado forte e provedor de seguridade social. Naquele nascedouro, quando foi aprovada a Constituição e a Lei Orgânica, o SUS já nasceu atacado politicamente, porque foram colocados obstáculos a sua plena implementação e qualificação. Mas agora diria que é um dos momentos mais agudos no sentido de que temos um governo que está mais preocupado em resolver os problemas financeiros e econômicos do setor privado do que em construir um sistema público para todos.

A EC 95 limita os gastos públicos por 20 anos, fixando em zero o crescimento real das despesas primárias. Quase dois anos depois da promulgação dela, existem efeitos que já são percebidos no sistema de saúde?

Os efeitos são evidentes. No Rio de Janeiro, por exemplo, há um caos na rede pública de saúde: faltam leitos, pessoas estão desamparadas, estão morrendo sem assistência, há o retorno do sarampo, que estava completamente controlado, o retorno da mortalidade infantil etc. Está acontecendo o que houve na Grécia e em Portugal, ou seja, a austeridade faz mal à saúde.

A EC 95 está impactando a atenção básica da saúde dentro do SUS? Como a atenção básica era tratada até então e como ela vem sendo tratada agora em função da restrição orçamentária?

Sem dúvida as restrições não são apenas orçamentárias, porque ocorreram algumas medidas políticas, como, por exemplo, a redução do número de agentes comunitários de saúde, e isso afeta profundamente políticas de prevenção, promoção e de vacinação. Outra medida tomada de forma equivocada foi a flexibilização do repasse de recursos federais para os municípios. Antes existia uma série de exigências e de contrapartidas e destinos a serem dados a esses recursos, mas agora o gestor da ponta pode decidir como vai usar esses recursos, ou seja, se utilizará esses recursos em vigilância epidemiológica, em vigilância sanitária, em atenção básica ou hospitalar. Visões “hospitalocêntricas” e “medicalizantes” na ponta podem fragilizar as bases estruturais da atenção básica, da vigilância epidemiológica e sanitária do país. Então, são medidas que conjugam restrições financeiras e medidas tomadas pelo governo que afetam a qualidade e a sustentabilidade das políticas públicas.

o Brasil ainda tem uma cultura de que o que resolve saúde é hospital

Mesmo em período em que houve grande investimento na saúde básica, vem sendo muito forte no Brasil a chamada “cultura do pronto atendimento e das emergências”, levando a esses locais muitos casos que poderiam ser resolvidos na rede básica. Essa cultura pode ser atribuída a lógicas que, há 30 anos, tentam desidratar o SUS? Por quê?

Eu diria que essa afirmação tem um problema. O que está acontecendo é que há uma profunda mudança no Brasil, especialmente do ponto de vista demográfico, porque a população está envelhecendo de maneira muito rápida e isso significa uma redução drástica de doenças infectocontagiosas, desnutrição e um aumento significativo de diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares e câncer. Isso exige uma mudança radical do modelo de atenção, que então era um modelo baseado no pronto atendimento, na atenção de urgência e emergência. Mas esse modelo não dá mais conta da realidade epidemiológica, porque agora existem doenças crônicas, em razão das quais os pacientes precisam tomar medicamentes por longos períodos. Normalmente, esses pacientes têm comorbidades, ou seja, têm mais de uma doença conjuntamente, e precisam ser acompanhados permanentemente por profissionais de saúde e, nesse cenário, as políticas de prevenção e promoção à saúde têm um papel fundamental.

Por isso, se um prefeito acha que vai resolver os problemas de saúde instalando um pronto-socorro, está enganado, porque esse modelo está fadado ao fracasso. O modelo agora é uma atenção primária de qualidade, resolutiva, capaz de resolver na ponta do sistema 80% dos problemas de saúde. Todos os países do mundo que possuem sistemas de saúde que funcionam com qualidade têm seu sistema baseado na atenção primária. Mas o Brasil ainda tem uma cultura de que o que resolve saúde é hospital, e muitos prefeitos acreditam nisso. Então, ao invés de investir recursos e esforços na estruturação de uma rede básica de atendimento à saúde, ficam gastando dinheiro de forma irresponsável na construção de hospitais, que muitas vezes são caríssimos para serem construídos e mais caros ainda para serem mantidos. O que temos que buscar é um equilíbrio nesse modelo: a reconstrução de um modelo, colocando toda ênfase na atenção primária. É claro que o hospital é importante, mas ele se integra a uma rede e deixa de ser a referência central do sistema de saúde.

Atualmente, o Brasil vive um surto de sarampo, que há poucos anos foi praticamente eliminado do país. Como compreender esse recrudescimento da doença? Há equívocos nas políticas públicas de prevenção e imunização?

São vários fatores que contribuem para isso, e o primeiro deles é que existe uma nova geração de pais, que não conviveram com a doença, e podem ter relaxado na questão de manter a caderneta de vacinação em dia. Um segundo fenômeno é o movimento antivacina, que já é muito forte nos EUA, mas no Brasil isso é secundário, porque afeta mais um grupo de classe média, que tem uma visão crítica a respeito da medicina e de falsas notícias de que algumas vacinas poderiam causar problemas de saúde.

Mas, a meu ver, o motivo principal da volta de doenças antes controladas é a fragilidade da atenção básica e a falta de recursos financeiros. E aí existe uma especificidade: nos últimos anos houve uma perda da comunicação e da informação, ou seja, uma fragilização da capacidade convocatória do governo federal, estados e municípios em relação à população, para que ela se vacine e se proteja.

Recentemente, a ANS chegou a cogitar a liberação de outras modalidades de planos de saúde privados, para que as empresas buscassem mais clientes e em outras formas de atendimento. Que ameaças o avanço das lógicas de sistemas privados de saúde podem trazer ao SUS? E como fazer frente a essas ameaças?

Essas propostas de franquia, planos de saúde simplificados e clínicas populares, nada mais são do que estratégias que não têm nada a ver com a proteção da saúde da população brasileira. O impacto disso sobre a garantia de condições de saúde, redução de danos, de qualidade no acesso, é zero! Essas medidas se inserem numa lógica mercantil de resolver problemas financeiros do mercado. E diria mais: todas essas são falsas propostas de melhoria, de atendimento e de proteção, porque quando se estimula o plano simplificado, se fará com que o usuário se dirija ao SUS quando tiver um problema de saúde mais complexo. Então, esse movimento e o lobby existente no Congresso em relação a isso têm a ver com interesses em políticas anti-SUS, políticas que não têm nada a ver com o interesse público e com uma visão de saúde pública de proteger a população e melhorar a qualidade. São “gambiarras” que se tenta colocar na política de saúde, que não vão resolver nada.

Então, o grande desafio do Brasil é aumentar o gasto público. E como fazer isso se já temos uma carga tributária de 35%? É preciso mudar a lógica da maneira como os tributos são arrecadados no país.

Como garantir recursos para o financiamento da saúde pública? Quais os desafios para, de fato, se implementar a forma de financiamento que foi concebida à época da criação do SUS?

Na época da implementação do SUS foi garantido na Constituição que 30% dos recursos da seguridade social iriam para o SUS, mas perdemos isso nos anos 90, no início da construção do sistema.

Para garantir recursos adequados e suficientes para a saúde pública, é preciso, primeiro, dizer o seguinte: quando olhamos para os países que são referência em atendimento à saúde, como Inglaterra e demais países europeus, percebemos que a participação do gasto público no gasto total em saúde é muito alto; está acima de 80% na Inglaterra e acima de 70% nos demais países. No Brasil ocorre o contrário: menos da metade do gasto é público; a maioria do gasto é das empresas e das famílias e, no caso das famílias, esse gasto é com medicamentos, o que afeta proporcionalmente as famílias de baixa renda.

Então, o grande desafio do Brasil é aumentar o gasto público. E como fazer isso se já temos uma carga tributária de 35%? É preciso mudar a lógica da maneira como os tributos são arrecadados no país. Hoje quem paga imposto no Brasil são os assalariados, mas temos que enfrentar esse problema, e esse é o desafio da reforma tributária e fiscal, implantando impostos sobre grandes fortunas e heranças, e mudando a lógica do sistema de arrecadação dos impostos, que é altamente regressiva. Proporcionalmente, os mais pobres pagam mais impostos que os mais ricos. Então, enfrentando para valer uma reforma fiscal e tributária, teríamos recursos suficientes para gradualmente aumentar o gasto público em saúde no gasto total.

Tendo em vista o atual cenário da conjuntura brasileira e a conjuntura mundial, que projeções é possível fazer para o SUS?

Estamos diante da eleição presidencial e as campanhas vão começar, e há uma indefinição em relação a um dos candidatos, o ex-presidente Lula. Mas, por outro lado, a minha pergunta é: as candidaturas que vão se apresentar tratam da questão da saúde como uma prioridade? As pesquisas mostram que a principal preocupação do brasileiro hoje é saúde, e quando se pergunta à população sobre como ela vê o SUS, a resposta geralmente é positiva. A população brasileira vê o SUS como uma política que deve ser sustentada, estimulada e preservada.

Estamos diante de um desafio enorme: vamos ter um novo governo que vai recolocar o SUS como prioridade absoluta na saúde? Caso isso não aconteça, temo que estejamos no limiar de ter um SUS empobrecido, fragilizado, com uma visão negativa, que é para atender a população mais pobre. Mas não foi para isso que o SUS foi feito; ele foi feito e construído para atender a toda a população. Se o SUS não for fortalecido, teremos um sistema privado que cada vez cresce mais com subsídios e renúncias fiscais. Dados do Ipea mostram que cerca de 25 bilhões de reais por ano deixam de entrar no SUS para subsidiar clínicas, hospitais e planos e seguros de saúde. É essa questão que temos que enfrentar ou, do contrário, estamos determinando que o país terá dois sistemas de saúde: um para os pobres e outro para a classe média e para aqueles que podem pagar por planos e seguros de saúde. Isso seria o fim e a derrota desse projeto humanista, generoso e inovador que é o SUS.

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