Um novo (velho) caminho

Lançamento de programa da prefeitura do Rio voltado para usuários de álcool e outras drogas é marcado por oferta de facilidades a comunidades terapêuticas

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Antes da reação gerada pelo vazamento da reunião secreta de Marcelo Crivella com pastores, a gestão do prefeito promoveu no fim de junho atividades (também não divulgadas publicamente), em que facilidades foram oferecidas para representares de comunidades terapêuticas no âmbito de um programa recém-lançado 

Por Dayana Rosa* e Dionísio Borges** para o Outra Saúde

11 de julho de 2018

“Essa é uma viagem suicida

Que vai ao encontro a um beco sem saída

Quem entra não tem regras ou critérios

Ou vai para cadeia, hospício ou cemitério

Exportamos tantos craques da bola

E as crianças fumam crack fora da escola

As drogas rolam soltas nas esquinas

Tem pedra, maconha ou cocaína

Por isso vem,

Entre comigo nessa guerra

Vamos salvar os filhos dessa terra

Estou fazendo a minha parte cantando com você

Usando a arte, dando a cara para bater

Tudo isso tornou-se normal

Matéria boa no telejornal

Enquanto tem gente sofrendo submisso

Jogado na sarjeta comendo lixo […]”

(Música “Filhos da Terra”, de Toni Melo e Marcio Marins, que foi apresentada como hino do programa Um Novo Caminho)

A existência de instituições fechadas e especializadas no tratamento de pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas no Brasil remonta às primeiras décadas do século XX. À época, essa população era presa em hospitais psiquiátricos ou presídios (quando pobres), e em clínicas privadas situadas quase sempre em pequenas propriedades rurais (quando ricos). Essa realidade se manteve inalterada até meados da década de 1970, quando as primeiras comunidades terapêuticas (CTs) começaram a surgir no país. À medida que seu número foi aumentando, as CTs, ao lado de irmandades como a de Alcoólicos e Narcóticos Anônimos, ocuparam o vazio deixado pela quase absoluta ausência de iniciativas públicas dirigidas a pessoas e famílias em situações de risco e/ou vulnerabilidade social associadas ao uso dessas substâncias. Afinal, até meados da década de 1990, a oferta de serviços públicos não manicomiais para essa população restringia-se a uma meia dúzia de núcleos universitários situados em umas poucas capitais brasileiras, cuja tarefa era muito mais a de formar profissionais para clínicas privadas do que propriamente a de atender ao público.

O termo “comunidade terapêutica” foi cunhado pelo psiquiatra sul-africano Maxwell Jones (1907-1990). Radicado no Reino Unido, Jones não gostava de receitar psicotrópicos, e viu uma oportunidade de experimentar novos métodos ao ser convocado a atender soldados acometidos por transtorno de stress pós-traumático durante a Segunda Guerra Mundial. Sua ideia foi criar um ambiente acolhedor, no qual o medicamento e o trabalho médico eram substituídos por grupos de partilha, atividades artísticas, assembleias e realização de atividades cotidianas de manutenção da CT. Depois de algum tempo, Jones percebeu que aquela modalidade de tratamento poderia servir também a outros problemas, como o uso de álcool e outras drogas. A inclusão de elementos religiosos viria apenas na década de 1950, já nos Estados Unidos, e nada teve a ver com as experiências precursoras dos ingleses.

A realização de convênios com CTs, uma prática bastante difundida em todo o Brasil, esbarra na incompatibilidade entre alguns dos princípios e diretrizes expressos nos documentos oficiais do Ministério do Desenvolvimento Social, e diversos aspectos do cotidiano destas instituições. Da parte das CTs, há resistências quanto ao que pode ser considerado como uma ingerência do Estado sobre suas estratégias e metodologias de trabalho; já do lado do Estado, há o constrangimento em repassar recursos públicos para organizações que não se adequam aos princípios que norteiam as políticas socioassistenciais.

O ano de 2018 já bateu recorde de financiamento público para CTs e a principal crítica a isso se baseia no enfoque religioso dessas instituições, acusadas de violação de direitos humanos. Esse texto é um convite à reflexão sobre a relação do Estado com as comunidades terapêuticas, mas também pretende oferecer algumas perspectivas e ferramentas para o debate sobre drogas, saúde e direitos humanos. CTs existem, e agora?

Um “sonho”, uma “conquista”, uma “benção”…

No fim de junho, a prefeitura do Rio de Janeiro realizou a “1ª Semana Rio sem Drogas”, organizada pela coordenadoria de Política Antidrogas da secretaria municipal de Assistência Social e Direitos Humanos (SMASDH), referenciada por um decreto presidencial de 1999 que institui os dias de 19 a 26 de junho como a Semana Nacional Antidrogas. Já a Coordenadoria foi criada em abril deste ano (decreto 44.400), um texto que argumenta que são “necessários convênios e acordos para a aplicabilidade da Política Nacional sobre Drogas”. E, hoje, é liderada por Douglas Marques Correa, conhecido como Douglas Manassés. O “Manassés” vem do hebraico, e significa “fazer esquecer”. De acordo com dados obtidos no portal da Receita Federal, ele é presidente e proprietário do Instituto Manassés, que reúne 27 comunidades terapêuticas pelo país. E, em 2016, foi candidato a vereador do Rio de Janeiro pelo Partido Republicano Brasileiro (PRB), o mesmo do prefeito do Rio Marcelo Crivella.

Segundo os gestores, o objetivo principal dos eventos foi lançar o programa Um Novo Caminho, que através dos eixos prevenção, reinserção social e recuperação não só possibilita o acesso às comunidades terapêuticas como também facilita seu credenciamento e direciona o financiamento público a este modelo de tratamento.

A divulgação pública da Semana Rio sem Drogas tinha como chamariz duas grandes atividades. A mais chamativa consistia numa caminhada pela orla da praia de Copacabana e foi realizada no domingo, 24 de junho. Atraiu cerca de 300 pessoas. Quem esteve por lá, viu movimentação em torno de um caminhão de som e distribuição de camisas do programa. Já a segunda atividade divulgada pela Prefeitura aconteceu no sábado, 30 de junho. Era uma “ação social” no Parque Madureira, localizado no subúrbio da cidade.

O restante da programação, que efetivamente seria durante a semana, circulou nas redes sociais através de fotos amadoras feitas por gente interessada no tema, nada oficial. Era, contudo, a parte mais reveladora. No dia 26 de junho, foi realizado um workshop voltado para líderes de comunidades terapêuticas. Já o dia 28 foi dedicado à capacitação técnica. Detalhe importante: para saber o  local onde seriam realizadas essas atividades, foi necessário ligar para gabinetes da gestão e descobrir na véspera.

No workshop estava presente João Mendes de Jesus, secretário municipal de Assistência Social e Direitos Humanos, ex-vereador do Rio (pelo mesmo PRB) e autor do projeto de lei 1354, de 2012, que institui o Sistema Municipal de Políticas Públicas de Combate às Drogas. A participação do prefeito Marcelo Crivella tinha sido divulgada, mas ele não compareceu ao evento. O debate foi coordenado pela Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead), através da psiquiatra Analice Gigliotti e da psicóloga Mariane Caiado, que falaram sobre os “princípios básicos” da “dependência química” e o “papel da espiritualidade” no tratamento. Na sequência,foi a vez de a Prefeitura contribuir com o evento: a SMASDH apresentou um painel sobre captação de recursos e convênios. E a subsecretaria de Vigilância, Fiscalização Sanitária e Controle de Zoonoses (Subvisa) expôs um elementos da regulamentação, do licenciamento sanitário e do cadastro no sistema. Por fim, a Comunidade Católica Maranathá contribuiu com uma apresentação sobre “abordagem, triagem e acolhimento”. Das seis atividades propostas para o dia de capacitação técnica, apenas duas não eram ministradas por profissionais filiados à Abead. A Associação monopolizou o evento, explorando o conceito de dependência, modelos de recuperação e modos de “inserir o paciente em uma vida positiva”.

O secretário da SMASDH se referiu ao Programa como um “trabalho profundo para alcançar aqueles que infelizmente adoeceram com o uso de drogas”. E completou: “É um sonho meu. Você não sabe como a gente fica sensibilizado com tantos homens de bem, preocupados com as pessoas, mas tão precarizados”, em referência aos donos de comunidades terapêuticas. De acordo com Manassés, de agora em diante, tudo vai ser diferente: com o apoio direto da Prefeitura, haverá condições para “ajudar quem ajuda”.

Ele, então, apresentou o Programa se referindo aos 17 anos que as comunidades terapêuticas “estão na luta” pelo registro e alvarás. De acordo com ele, o Novo Caminho é uma conquista da coordenadoria de Drogas. Manassés destacou ainda a necessidade de as CTs se organizarem diante de uma demanda muito grande – que ele expressou com a informação de que existem, no grande Rio, cerca de 900 mil usuários de drogas. Um homem foi convidado ao palco para contar suas experiências nas cenas de uso do Parque União, região que integra o complexo de favelas da Maré. Ele informou que entrava ao vivo no Facebook com alguns usuários e, assim, encontrava a família de muitos. Compartilhou com os presentes como era grato por seu trabalho: “Adoro fazer e o prefeito ainda me paga. É uma benção, né?”

Workshop do novo programa da prefeitura do Rio deu o “caminho das pedras” para comunidades terapêuticas (no centro da mesa, Sabrina Presman (presidente da Abead), Douglas Manassés (coordenador de políticas antidrogas – SMASDH) e João Mendes (secretário da SMASDH)

Facilidades na vigilância sanitária

Não é só a Márcia, assessora do Crivella, que traz facilidades como pular a fila por cirurgia de catarata, para os cariocas de fé. Anunciada por Manassés como a hora mais esperada do dia, a Subvisa preparou uma apresentação muito elogiada e aplaudida pelos presentes. Era resultado de uma discussão feita com a secretaria de saúde, através da vigilância sanitária, para que fosse possível a inclusão das CTs no sistema público. “Tinha aqui uma normativa [da Anvisa] que se não regular eu não consigo trabalhar”, contou. A Subvisa se colocou de forma a “não ser obstáculo para qualquer atividade econômica, muito pelo contrário”. E nesse tom antiburocrático, para dizer o mínimo, apresentou disposição para fazer com que os líderes de CTs encontrem menos desafios para o credenciamento.

A materialização disso é o licenciamento sanitário por autodeclaração on line (instituído pelo decreto 40.723 de 2015), em que o responsável pela CT acessa o sistema Carioca Digital, preenche um requerimento e a Subvisa analisa… em um dia. Sendo deferido o pedido, o licenciamento é gerado automaticamente em um arquivo de pdf. Em caso de indeferimento ou se cair em exigência, a CT terá prazo para se adequar às normas e/ou poderá fazer um novo requerimento. “Só precisa de licenciamento, não tem nada de burocracia”, resumiu o funcionário da subsecretaria. (As legislações que teriam de ser seguidas podem ser acessadas: aqui, aqui, aqui e aqui.) Salientou-se a necessidade de segui-las, mas também se afirmou que “não vai ser a vigilância sanitária” que vai impedir um “negócio”, uma atividade econômica. “A gente está entregando a prova antes, com gabarito, para vocês tirarem dez”, afirmou o funcionário da Subvisa. Em resposta, Manassés concluiu o painel de um jeito que lembra a reunião Café com Comunhão, realizada por Marcelo Crivella no Palácio da Cidade, que até agora lhe rendeu três pedidos de impeachment: “O Rio de Janeiro está dando um show por tanta tranquilidade que estamos encontrando. (…) Hoje estamos tendo a oportunidade de termos o caminho com prazos e diálogo.”

Pequenas igrejas, grandes negócios 

Uma assistente social da SMASDH, preocupada em qualificar os projetos de captação de recursos e convênios para as CTs, apresentou ferramentas que ajudariam as instituições a navegar os mares do setor público e setor do privado. Focada na primeira modalidade, projetou o chamamento público 01/2018 da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, a Senad. O edital tem o objetivo de credenciar entidades privadas, sem fins lucrativos, que realizem o acolhimento exclusivamente voluntário, em regime residencial transitório, de pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas.

Um dos critérios para a distribuição das vagas em todo o Brasil é a prevalência do consumo e a oferta de vagas em comunidades terapêuticas por região, conforme dados levantados pela própria Senad. Para se ter uma ideia, o Sudeste detém 45,56% das vagas do país, enquanto o Nordeste tem 33,83%. O texto diz que toda pessoa com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas poderá ser acolhida pelas entidades credenciadas por até 12 meses consecutivos ou intercalados, no interregno de 24  meses. Caso o acolhido tenha permanecido em mais de uma comunidade credenciada, os períodos serão somados. Os valores mensais referentes à prestação dos serviços de acolhimento são: R$ 1.172,88 por adulto; R$ 1.596,44 por adolescente; e R$1.528,02 por mãe nutriz, acompanhada do bebê.

Ainda de acordo com o edital, esses valores destinam-se ao custeio de despesas com quatro refeições diárias; habitação; materiais de higiene e limpeza; e projeto terapêutico. Neste último, entra o pagamento de profissionais de nível superior e de nível médio (e os custos trabalhistas).

Para se habilitar, a entidade precisa encaminhar à Senad um parecer emitido pelos conselhos estaduais ou municipais de Políticas Públicas sobre Drogas, feito a partir de uma visita in loco. Nesse sentido a assistente social que apresentava o painel lembrou a “importância” dos líderes de comunidades terapêuticas “ocuparem” também esses espaços políticos de deliberação. Seguindo a lógica de não só dar o peixe, mas também ensinar a pescar, o milagre da multiplicação aqui consiste em recorrer não só à Senad, mas a todos os ministérios e secretarias possíveis, além de contar com as doações que, de acordo com estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, ainda são a maior fonte de financiamento dessas comunidades.

Na palma das mãos

O aplicativo do programa Um Novo Caminho dá mais destaque às comunidades terapêuticas do que aos CAPS

Um técnico apresentou o aplicativo do programa Um Novo Caminho, que pode ser baixado hoje no Google Play e em breve na Apple Store. “Utilizar a tecnologia para poder facilitar e ajudar uma jornada. Me emocionou conhecer a história de vida dele [Manassés]. E eu falei ‘tamo junto, vamos mudar essa cidade’ (…) Vamos fazer da tecnologia uma grande ferramenta para que a gente posso mudar a nossa cidade, salvar vidas e também mudar o mundo”, relatou o desenvolvedor.

Na aba “equipamentos públicos” há uma lista dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), mas no aplicativo o protagonismo ficou com as CTs, que foram distribuídas pelos eixos do programa. É possível acessar informações, como telefone, e-mail e endereço, sobre as seguintes instituições e respectivos eixos:

I) Prevenção: ADED Social Cajú, Grupo Crescimento Espiritual e Pastoral da Sobriedade.

II) Reinserção Social: Projeto Esperança e Vida, Instituto de Desenvolvimento Humano e Cooperação Guarda Sol.

III) Recuperação: Trazendo Vida e Paz, Centro de Ressocialização Leão de Judá, Associação Clínica Terapêutica Redenção – Clitere, Instituto Social Manassés, Tenda Azul, Comunidade Católica Maranathá, Marca de Cristo, Instituto Revivendo com Cristo, Desafio Jovem, Casa de Apoio Feminino Poramor, Casa o Vencedor e Vencendo o Gigante.

Além disso, em “grupos de apoio” é possível acessar aqueles direcionados ao usuário (Narcóticos Anônimos e Alcoólicos Anônimos), ao familiar (Nar Anom, Amor Exigente e Al Anom) e no estudo e pesquisa (Abead, Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas da UERJ e Projeto Dose de Apoio, da OAB-RJ).

A empresa que desenvolveu o aplicativo é a Starmade Tecnologia, que já havia criado outro, chamado “Guia da Calopsita”, que é isso mesmo que o nome sugere: um manual prático de como cuidar dessa ave.

Religiosidade e espiritualidade em políticas públicas

Mariane Caiado, também da Abead, apresentou a história da espiritualidade na dependência química, desde o Grupo Oxford, em 1928, aos 12 passos como são hoje conhecidos. “Se todos nós do mundo inteiro seguíssemos isso aqui à risca [12 passos], olha só que maravilha”, afirmou. De acordo com ela, o dependente químico perde o poder de fazer planos: “Diz que amanhã para e acredita mesmo nisso.” Ao mesmo tempo que falou sobre a importância da consonância com as crenças individuais dos trabalhadores, exemplificou com a seguinte cena: “para quê eu vou deixar o paciente me vendo deliciar um chope? É uma irresponsabilidade”. Contou também sobre um paciente, adolescente, que relatou apenas fumar maconha, consumir álcool, dormir e jogar videogame. Mariane questionou o estilo de vida do garoto, Para ela, o estilo de vida do adolescente não correspondia a uma “vida produtiva” e não espelhava uma “espiritualidade saudável”.

Representante da Comunidade Católica Maranathá, Alexandre Duque fez uma analogia da abordagem social com o trabalho da evangelização e aproveitou para fazer uso da metáfora servir com conotação bíblica (de servo de Deus): “Somos um serviço que serve indivíduos e objetivos do serviço”. Para ele, são objetivos da abordagem com o dependente: identificar, avaliar e modificar distorções; ampliar suas capacidades de expressão, de resolução de problemas e de tolerância a frustrações; reconhecer estados emocionais positivos e negativos; adquirir, no estabelecimento de suas relações, a prevalência de comportamentos assertivos; e adquirir habilidades específicas referentes ao uso de substâncias psicoativas (recusar droga, reconhecer e enfrentar situações de risco, fissura e recaída). Em sua opinião, o que precisamos é de “amor e capacitação”, fazendo referência à parábola do bom samaritano que ensina que é preciso exercitar o amor ao próximo.

A bancada da Bíblia, ou a Bancada de Babel como chamou a jornalista Magali Cunha, está organizada nas três esferas do Poder. Por exemplo: o pastor e deputado federal Marco Feliciano ex-Partido Social-Cristão (PSC) e atual Podemos (Pode) é mantenedor de CT. Do mesmo partido, ocupando o parlamento pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), está o pastor e deputado estadual Marcio Pacheco, que presidiu a CPI do Crack (2015) e também tentou fixar critérios para credenciar as CTs em âmbito estadual, além de defender abertamente a prática da internação compulsória e considerar o tratamento de entidades como a Maranathá mais eficientes do que o oferecido pelos CAPS.

No município do Rio, o prefeito Marcelo Crivella é também bispo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Em 19 meses de mandato é conhecido por barrar projetos culturais, sendo o mais recente o veto ao projeto que declara o Quilombo Pedra do Sal como patrimônio cultural, e outros tantos mais relacionados a outras manifestações que contemplem a diversidade – isso num contexto recente de ataques a terreiros de umbanda e candomblé pela cidade (que não é menos importante de ser tratado em um texto sobre drogas, política e religião – muito pelo contrário). A IURD tem um projeto de poder que está disponível no livro de autoria do bispo Edir Macedo e Carlos de Oliveira, estamos falando de uma leitura política do Antigo Testamento, na qual é incitado que os evangélicos se mobilizem partidariamente, seguindo o “projeto de nação” que Deus teria sonhado para os hebreus, que ele chama de cristãos.

O “religioso-político” é o novo “modelo-atriz-dançarina”? Interação para uns, confusão para outros, é a relação entre Estado e religião. Fato é que existe representação política-eleitoral daqueles que representam comunidades religiosas. Assim como também existe representantes no parlamento que defenderão pautas de outros segmentos da sociedade. Mas é necessária uma compreensão do Estado em seu sentido ampliado, que considere os partidos políticos para além de suas siglas e leve em conta os interesses públicos e privados envolvidos que estão sendo representados na arena política. O que está em jogo no campo das drogas é a forma como o Estado é capitalizado, capitula e, por vezes, aparelhado e aparelhador de interesses que ferem princípios constitucionais da administração pública como é a laicidade e a defesa dos direitos humanos.

Comunidades terapêuticas existem. E agora?

No mês passado o Conselho Federal de Psicologia (CFP) lançou o relatório que reúne os resultados da Inspeção Nacional em CTs, realizada em outubro de 2017. O documento evidencia o uso que vem sendo feito de CTs como locais em que se retoma o modelo de asilamento de pessoas com transtornos mentais, superado (pelo menos no plano legal) em 2001, pela lei 10.216, da Reforma Psiquiátrica. Privação de liberdade, uso de trabalhos forçados e sem remuneração, violação à liberdade religiosa e à diversidade sexual, internação irregular de adolescentes e uso de castigos – que podem, inclusive, configurar crimes de tortura – fazem parte dos achados da inspeção. A análise das informações está fundamentada em um amplo marco legal e normativo acerca dos direitos da pessoa com transtorno mental, de prevenção e combate à tortura, das políticas de drogas e dos princípios que pautam os direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal de 1988. Relatos de situações concretas identificadas durante as vistorias também integram o relatório.

Fazem parte da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) diferentes serviços, desde atenção básica, emergencial, CAPS até serviços hospitalares e residenciais, bem como dispositivos para a desinstitucionalização e produção de renda. Dentre os serviços incorporados à RAPS, as CTs ganharam espaço como serviços de atenção em regime residencial de caráter transitório, e têm incentivo financeiro de custeio garantido pela portaria 131/2012 do Ministério da Saúde. O movimento antimanicomial se posiciona contra a inclusão das CTs na RAPS, assim como os líderes de CTs presentes na I Semana Rio Sem Drogas se colocaram da mesma forma. Um lado acredita que incluir é legitimar um modelo violador de direitos humanos e majoritariamente religioso, além de aparecer como alternativa aos CAPS. O outro lado encontra na própria legislação seu principal desafio, pois ser um estabelecimento de saúde e estar incluso na RAPS requer que obediência a uma série de regras e diretrizes. Este pode ser um ponto de possível diálogo entre as partes. Entretanto, não é razoável compactuar com a violação de direitos humanos constatados por relatórios de inspeção como este do CFP. Pensando nisso é que alguns setores defendem, por exemplo, a regulação das CTs não para promovê-las, mas para possibilitar ao Estado a fiscalização com critérios. Ainda, os mais radicais vão pensar num cenário de CTs que atuem na lógica da redução de danos. Outro segmento verá nas CTs os “novos manicômios”. Há quem prefira as CTs na assistência social, há quem prefira na saúde, e há quem “não, não”. O campo está aberto para a disputa. Não há consenso.

O último dia da Semana Nacional Sem Drogas, que é inspirado pelo Dia Internacional das Nações Unidas contra o Abuso e o Tráfico Ilícito de Drogas, é também marcado como o dia de ação global “Acolha, Não Puna” ou Support, don’t punnish. Em resposta à data proibicionista, desde 2013 pessoas do mundo inteiro se reúnem para realizar atividades locais e simbólicas em prol de melhores políticas de drogas que considerem a saúde pública e os direitos humanos. Mais cuidado, menos punição. Isso lembrou o Manassés bíblico. O livro de Crônicas conta a história dele, que foi Rei de Jerusalém:

“Reconstruiu os altares idólatras que seu pai Ezequias havia demolido; também ergueu altares para os baalins e fez postes sagrados. Inclinou-se diante de todos os exércitos celestes e lhes prestou culto. Construiu altares no templo do Senhor, do qual o Senhor tinha dito: ‘Meu nome permanecerá para sempre em Jerusalém’. Nos dois pátios do templo do Senhor ele construiu altares para todos os exércitos celestes. Chegou a queimar seus filhos em sacrifício, no vale de Ben-Hinom; praticou feitiçaria, adivinhação e magia, e consultou médiuns e espíritas. Fez o que o Senhor reprova’” (2 Crônicas 33:3-6, NVI).

Manassés não somente se desviou do caminho do Senhor, como também “desencaminhou Judá e o povo de Jerusalém, a ponto de fazerem pior do que as nações que o Senhor havia destruído diante dos israelitas” (v. 9). Durante muito tempo, o Senhor falou a Manassés e a seu povo, chamando-os à conversão, mas não quiseram ouvi-lo (v. 10). O resultado: Deus permitiu que os comandantes do exército do rei da Assíria prendessem Manassés colocassem um gancho no nariz dele e algemas de bronze e o levassem para a Babilônia (v. 11). Em sua angústia, ele buscou o favor do Senhor e humilhou-se muito diante de Deus. Quando ele orou, o Senhor o ouviu e atendeu o seu pedido, de forma que o trouxe de volta a Jerusalém e a seu reino. E assim Manassés reconheceu que só o Senhor é Deus (vv. 12-13).

A punição integra parte do método de “cura” necessário para fazer valer determinada normatividade, nesse caso divina, e é reafirmada através da linguagem bélica de guerra e salvação. Esse processo contém elementos da pedagogia do sofrimento como “se não doer não sara”; “estou te castigando por que eu te amo”; e “suei para conquistar”. No Brasil, tudo isso se soma a uma cultura política ainda escravocrata e patrimonialista. Nesse quadro, a persistência de instituições totais como as CTs, que hoje no Rio de Janeiro são alvo de facilidades do poder público como ficou demonstrado nos eventos promovidos em junho,tem tudo para perpetuar o isolamento dos indesejáveis, dos diferentes, dos pecadores.

 

*Dayana Rosa é administradora pública, mestre e doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ

**Dionísio Borges foi o pseudônimo escolhido pelo coautor do texto

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