Mentiras de pernas longas

A lógica das notícias falsas e as estratégias para se lidar com elas

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Como funciona a lógica das notícias fabricadas e quais as estratégias para se lidar com seus efeitos, inclusive na web

Por Ana Cláudia Peres, na Radis

01 de julho de 2018

Fato: Era um domingo, 20 de julho de 1969, quando o homem pisou na Lua. Versões: 1) A Missão Apolo 11 nunca esteve na superfície lunar. O feito foi na verdade uma farsa para que os americanos assumissem a dianteira durante a corrida espacial contra os soviéticos na década de 60. 2) Neil Armstrong disse a sua famosa frase — “Este é um pequeno passo para o homem, um salto gigantesco para a humanidade” — dentro de um estúdio, diante das câmeras do cineasta Stanley Kubrick, que transmitiu o espetáculo para televisões em todo o mundo. 3) A figura de uma pessoa de jaqueta e jeans, que aparece refletida no visor do traje espacial de um dos astronautas em “uma fotografia”, é “prova” de que tudo não passou de montagem.

Os muitos rumores em torno de um mesmo acontecimento já existem bem antes da internet ser usada para difundir informação em tempo real. Mas, na era das mídias digitais, as notícias falsas se sofisticaram: relatos inverídicos, verdades parciais e boatos estapafúrdios são compartilhados por meio de blogs, sites, perfis (legítimos ou não) em redes sociais e aplicativos como o WhatsApp, na velocidade de um foguete. Como se não bastasse, grupos das mais diferentes doutrinas e ideologias têm se especializado na criação de portais para produzir “fake news” — como ficaram conhecidas aquelas notícias com cara e corpo de jornalismo, mas que não são jornalismo. É muito provável que você que está lendo esta reportagem agora também já tenha caído no “conto do vigário” e passado adiante informação infundada. Como diz aquele famoso “meme”, termo utilizado para se referir a uma ideia, textos, imagens ou vídeos bem humorados que viralizam na web, “Quem nunca?”.

O diagnóstico

Para Ivana Bentes, professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o mundo contemporâneo colocou em xeque os antigos regimes de verdade em que as figuras de autoridade tradicionais eram inquestionáveis. “Agora, existe uma espécie de ‘ruidocracia’, com muitas pessoas disputando a produção de verdades, o que coloca a autoridade do médico, do professor ou do político, por exemplo, sob suspeita”, alerta a pesquisadora. “É como se todo mundo fosse corrupto. E, em meio a essa nuvem tóxica de desconfiança, quem mais sofre os efeitos é a democracia”. A “nuvem tóxica” já vem deixando um rastro considerável. As últimas eleições norte-americanas, que levaram Donald Trump ao poder em 2016, podem ter sido seriamente influenciadas por fake news, assim como o resultado do Brexit, quando um referendo levou o Reino Unido a deixar a União Europeia, em junho de 2016.

Segundo estudos dos cientistas políticos Brendan Nyhan (Dartmouth College), Andrew Guess (Princeton University) e Jason Reifler (University of Exeter), um em cada quatro norte-americanos visitou sites de fake news e 27% dos eleitores teriam acessado pelo menos uma dessas notícias durante a campanha presidencial. Longe do domínio dos fatos, surgiram notícias de que Barack Obama, do mesmo partido democrata de Hillary Clinton, era o fundador do Estado Islâmico ou de que o casal Clinton comandava uma rede de prostituição ou ainda de que o Papa Francisco havia declarado apoio a Trump. Mesmo que os pesquisadores afirmem não haver evidências concretas de que as fake news tiveram peso decisivo sobre o voto dos eleitores de Trump ou que prejudicaram a adversária Hillary, as pesquisas indicam que pessoas com gosto de leitura mais conservadora consomem e difundem com maior facilidade esse tipo de informação.

Igor Sacramento, pesquisador e professor do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS/Icict), da Fiocruz, concorda que as fake news emergem de forma avassaladora em um contexto de crise das instituições contemporâneas que atinge inclusive a política, a ciência e o jornalismo. “O mundo passa de um regime de verdade baseado na confiança das instituições para outro regulado pelos dogmas, pela intimidade e pela experiência pessoal”, sustenta. Para ele, não se trata apenas de opor “true” news, no sentido de existir uma verdade absoluta, a “fake” news. “Existe uma disputa de narrativas em que lugares de verdade tradicionais são tensionados por outras vozes, agentes sociais e grupos que se organizam nas redes”, diz Igor. O pesquisador sugere que, para pensar o tamanho do problema, é preciso entender como se dão essas disputas em um contexto “digitalmente engajado”, em que as pessoas sentem-se estimuladas a procurar informação o tempo inteiro. “O problema hoje não é a falta, mas o excesso de informação e de busca por informação”, decreta.

O contágio

Certa vez, o jornalista e escritor colombiano Gabriel García Márquez afirmou que, se você diz que há elefantes voando no céu, as pessoas não vão acreditar. Mas se você disser que “há 425 elefantes alados”, não faltará quem acredite. Era uma maneira de chamar a atenção para o modo como as estatísticas, os dados e o nível de detalhamento são utilizados para comprovar a veracidade de uma informação. Em épocas de fake news e “pós-verdade” — escolhida palavra de 2016 pelo Dicionário Oxford e que, apesar de ser um conceito questionável, se refere exatamente à constatação de que, hoje, os fatos têm menos importância para a opinião pública do que o apelo às crenças pessoais —, verdadeiro passou a ser aquilo que circula mais.

“Fake news, pós-verdades e outras crises” foi o título da palestra que Ivana Bentes apresentou durante o 6º Seminário Anual Científico e Tecnológico de Biomanguinhos, no Rio de Janeiro, em 8 de maio. “Os critérios de verdade não são mais os argumentos, mas a quantidade de vezes que uma história é visualizada”, observou a pesquisadora para uma plateia de jornalistas e comunicadores de diversas áreas da Fiocruz que lotavam a sala durante o evento. Algo equivalente ao velho ditado popular que enfatiza que uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade. A pesquisadora acrescentou que as fake news vêm trazer explicação para aquilo que as pessoas já querem acreditar. “Você acha que o mundo vai acabar amanhã? Visite aqui este portal!”, exemplificou Ivana. “Que a Terra é plana e que o homem não foi à Lua? Venha pegar a sua notícia falsa!”

São os chamados sites caçadores de cliques, que funcionam em um ritmo de produção industrial de notícias falsas, explicou a pesquisadora. “Trata-se de verdadeiras ‘fábricas de fake news’, que constroem notícias para alimentar determinadas crenças”. Funciona assim: um grupo qualquer mantém um site para produzir notícias que podem ser completamente inverídicas ou partir de determinadas informações verdadeiras e misturar com dados falsos, fazer recortes de informações, exagerar nos argumentos ou até mesmo lançar mão de notícias descontextualizadas e de outro tempo histórico como se fossem atuais. A partir daí, eles combinam endereços na web e páginas no Facebook e isso viraliza, ou seja, ganha enorme repercussão. Quanto mais cliques tiverem, melhor para a guerra de informação a que se propõem. “Fake news pegam como um vírus, por contágio, todos se contaminam”, disse Ivana, referindo-se ao “efeito manada” que essas informações provocam a partir de cliques, likes e compartilhamentos. “Tudo começa com um pequeno grupo e vai arrastando grandes massas.”

Mais recentemente, escândalo envolvendo a maior rede social da web não deixou dúvidas sobre o impacto desse tipo de estratégia. A Cambridge Analytica — empresa que faz análise de dados de comportamento — é acusada de ter roubado informações de 50 milhões de usuários do Facebook para o envio de marketing político nas eleições norte-americanas. Quando o assunto veio a público, reportagens em jornais demonstraram que a empresa montou “psicográficos”, espécie de perfis baseados em traços da personalidade dos eleitores americanos, com o objetivo de formar opiniões e direcionar votos ao candidato Donald Trump.

No Brasil, um levantamento realizado pela Fundação Getúlio Vargas ano passado apontou que, durante as eleições presidenciais de 2014, cerca de 10% das interações no Twitter — outra rede social online — foram realizadas por contas vinculadas a “bots”, um diminutivo para “robots”, softwares criados para interagir com humanos no universo online. Ao divulgar os dados da pesquisa, o Nexo Jornal explicou que o conteúdo publicado ou compartilhado por “robôs” na internet inclui notícias falsas, ataques a políticos adversários e posts favoráveis ao nome que apoiam. “Seus objetivos incluem o arrebanhamento de seguidores, a difamação de oponentes e a criação de discussões artificiais”, exemplificou a matéria. Segundo ainda o estudo, na época dos protestos contra o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, o número de interações por robôs chegou a 20%.

Igor Sacramento acredita que, em meio a esse fenômeno, as pessoas estão cada vez menos dispostas a ter suas verdades contestadas, ao mesmo tempo em que, em um cenário de polarização política, sentem-se mais inclinadas a polêmicas para reafirmar suas opiniões. Para melhor entender essas bolhas informacionais — que o pesquisador da Fiocruz prefere chamar de “guetos” —, o portal The Intercept Brasil (30/5) fez uma reportagem em que um repórter conviveu durante três dias em um grupo de WhatsApp intitulado “Intervenção Já”, que defendia a volta da ditadura militar no país e contava com mais de 200 membros. Para fazer jus ao nome do grupo, valia tudo. Um dos membros chegou a afirmar que Jesus Cristo era a favor do militarismo. Como justificativa, ele argumentou: “Tá na Bíblia. ‘Dai a César o que de César’. Verdade. César era militar”. A reportagem apontava que a veracidade dos vídeos, textos e imagens compartilhadas era sempre questionada pelos integrantes, que, apesar disso, não cansavam de negar uma fake news com outra fake news.

Epidemia na saúde

Se o campo da política pode ser contaminado por fake news, a saúde também não está vacinada. No Brasil, durante a epidemia de febre amarela do ano passado, que registrou os mais altos índices de transmissão silvestre da doença, com 1.098 casos e 340 óbitos entre julho de 2017 e março deste ano, um somatório de boatos e fake news causaram pânico na população e trouxeram desafios para a saúde pública. Em meio à guerra de informação sem responsabilidade, macacos foram mortos como se fossem os responsáveis pela doença, pessoas ficaram desnorteadas e campanhas de vacinação não tiveram o efeito desejado — até maio, a estimativa era de que 80% da população brasileira estivesse vacinada, mas o número não passava de 55%. Os baixos índices levaram a epidemiologista Laurence Cibrelius, chefe de estratégia de combate à febre amarela na Organização Mundial da Saúde (OMS), a afirmar em entrevista ao G1 (18/5) que as fake news podem ter influenciado as metas de vacinação no país (veja quadro com os maiores boatos sobre a doença).

O sanitarista e pesquisador da Fiocruz Cláudio Maierovitch considera que a saúde sempre foi um terreno fértil para a propagação de boatos e informações inverídicas. Seja para atender a algum tipo de interesse do mercado, como a comercialização de medicamentos ou quaisquer outros produtos sob a alegação de que trazem benefício para a saúde, seja enquanto histórias folclóricas, como a crença secular de que manga e leite não se misturam. Segundo Cláudio, isso ocorre porque são assuntos que afetam direta ou indiretamente a vida da população. “No caso de uma doença, a própria pessoa pode apresentar um sintoma ou ter algum familiar atingido pela enfermidade”, diz, alertando para o fato de que o medo é o grande motivador para a disseminação de notícias falsas sem critérios no campo da saúde. Ele acredita que, muitas vezes, o sujeito passa a ser um reprodutor até bem intencionado. “Na medida em que o interlocutor tem alguma credibilidade com essa pessoa, aquela informação passa a ter ressonância”.

Mas Cláudio adverte que, se algumas dessas notícias podem ter consequências inócuas, na grande maioria dos casos há um perigo iminente, principalmente quando estão relacionadas à orientação para o consumo ou não de certos produtos e serviços. Preocupado com o crescimento no país do chamado movimento antivacinas, que tem lançado mão das fake news com bastante frequência para descredenciar sua segurança ou utilidade, ele explica que este é um clássico exemplo do quanto a disseminação de notícias inverídicas pode trazer consequências nefastas. “O Brasil tem um dos maiores programas públicos de imunização do mundo, com um calendário de vacinas discutido à exaustão por um conjunto de especialistas e de setores da sociedade de forma a oferecer a proteção mais adequada e da melhor maneira possível para o público alvo”, reforça.

Quando se vê em meio aos áudios ou textos de WhatsApp que distorcem o sentido das vacinas — como, por exemplo, um boato de que vacina contra a febre amarela era um veneno mortal —, Cláudio conta que a sensação, enquanto sanitarista, é a um só tempo de “frustração” e revolta ao perceber os interesses que existem por trás de cada manipulação. “É um perigo constante as pessoas deixarem de adotar uma medida sabidamente importante para sua proteção porque foi mal informada ou recebeu informação mentirosa”, acentua, demonstrando que o contrário também acontece.

Antídotos

De acordo com Igor, as instituições que compõem a saúde pública no Brasil devem estar preparadas para uma atuação cada vez mais próxima das redes sociais online. Ele não sugere um combate às fake news, mas uma forma de lidar com elas. Em artigo para a edição de abril da Revista Eletrônica de Comunicação, informação e Inovação em Saúde (Reciis), o pesquisador foi categórico. “Não é a tecnologia que gera a disposição social atual pelas fake news”. Numa sociedade midiatizada, ele escreve, há uma luta pelo poder do discurso na saúde, na política e na vida e os processos de comunicação online ampliam essas disputas. Em entrevista à Radis, Igor admite que, neste momento, a sensação é que “estamos perdendo diante do excesso de informação, perdendo para os bots, perdendo para esses grupos organizados que fabricam notícias”. Mas é preciso ter um pensamento estratégico, ele convoca.

Como ficou claro para quem assistiu à palestra de Ivana Bentes, a disputa de narrativas se dá no próprio campo da informação, nas redes. “O antídoto está no mesmo lugar da doença”, disse. “A tecnologia que automatiza e massifica também pode ser usada em favor das boas causas”. Ela acredita que as soluções passam por comunicação e   formação e orientou uma educação para as mídias e pelas mídias que invista em um melhor uso das redes. A pesquisadora citou a pedagogia da checagem, que já vem sendo exercitada por grupos de verificação do discurso público a exemplo de Aos Fatos, Lupa e Truco, e em uma outra vertente por sites como Boatos.org (ver pág. 20) e E-farsa. Para Ivana, a saúde também deve apostar em suas próprias agências de checagem, sites de averiguação de boatos científicos e ainda na articulação com comunidades de mídia livre e grupos no WhatsApp, formados por pessoas de referência na área, a fim de produzir contrainformação a ser difundida fora das redes, nos territórios.

Na ocasião, ela citou os robôs “Rosie” e “Fátima” como exemplos de boas respostas em outras áreas. O primeiro é uma ferramenta criada por um grupo de oito jovens e financiada coletivamente em rede, que se transformou em uma espécie de “robô cidadão”, utilizada para reconhecer gastos públicos ilegais por parte dos parlamentares. Batizada em uma homenagem à faxineira-robô do desenho animado “Os Jetsons”, Rosie faz uma limpa nas contas dos deputados e senadores desde 2011 e, segundo Ivana, já virou o pavor do Congresso Nacional. “Fátima” é a abreviação de Fact-Machine, um aplicativo que vem sendo desenvolvido pela agência de checagem de notícias Aos Fatos exatamente para que os brasileiros passem a identificar fake news. O “robô” foi um dos projetos premiados em campanha lançada pelo Facebook que, depois do escândalo do vazamento de dados, anunciou algumas mudanças em seus algorítimos.

Ivana sugeriu que o campo da saúde também aposte em inteligência artificial, produzindo os seus próprios “agentes não-humanos”, capazes de difundir informação verdadeira, testada, científica. Além disso, como fã declarada da linguagem bem humorada dos “memes”, a pesquisadora indicou que a cultura memética pode ser um potente aliado na disputa de narrativas. “O meme não argumenta, não discute, ele já vem pronto e pode ser uma arma poderosa”.

À Radis, Igor Sacramento adianta que o projeto de um robô para a saúde pode não estar longe. Ele é autor de uma ideia, que pretende ver implementada pela Fiocruz, de criação de um aplicativo para checagem de informações na área da saúde que possa trazer confiabilidade às notícias. Mas, além das atuações digitais, o pesquisador também defende que, paralelamente, sejam buscadas soluções locais para promover informação e educação. Ele destaca estratégias que possam ser capilarizadas nos territórios, contando inclusive com o apoio de profissionais de campo como os agentes comunitários de saúde. “Há um trabalho mais imediato que pode e deve ser feito nas redes digitais, mas um trabalho local é fundamental”. Para Igor, isso torna as instituições mais democráticas e deixa a relação com os usuários do SUS mais dinâmica.

Pandemia no jornalismo

A onda de boatos e fake news vem obrigando o jornalismo tradicional a se reinventar, mas até aqui o principal movimento tem sido apostar em agências de checagem (ou fact-checking, como também são chamadas). Inicialmente independentes, aos poucos, veículos de grande porte, a exemplo do jornal Extra, no Rio de Janeiro, e do portal Uol, também começaram a oferecer o serviço. Apesar de considerar uma boa resposta no contexto atual, Igor avalia que essa corrida por checagem pode trazer alguns efeitos colaterais. “Acho que é um sintoma da crise, mas também uma tentativa de reafirmar o papel de autoridade do jornalismo no sentido de mostrar que ele continua sendo ‘o senhor da verdade’”, analisa. “Isso pode gerar ainda mais desconfiança”.

Agências de checagem acabam cumprindo um papel que deveria estar na base do bom jornalismo: checar a fala de seus entrevistados em vez de meramente reproduzir declarações. Em entrevista à Radis, o professor Ivan Paganotti, das Faculdades Integradas Alcântara Machado (FIAM-FAAM), não tem dúvidas de que as agências de checagem trazem grandes benefícios em meio à crise de informação que se vive hoje. Mas ele também sustenta que os jornalistas profissionais devem seguir um código de conduta, norma e ética, sendo responsáveis legais pelas informações que publicam. Para ele, muito além das agências, o jornalismo de uma maneira geral precisa deixar mais transparente o seu método de trabalho para o público (leia entrevista)

Ambos os pesquisadores citam como exemplo de enfrentamento de fake news o modo como as redes se mobilizaram para desmentir o boato envolvendo a vereadora Marielle Franco (Psol-RJ), assassinada no Rio de Janeiro em 14 de março. Dias depois da morte da vereadora, uma série de informações circularam na web, inclusive com montagem de fotos, com a intenção de associar Marielle ao crime organizado. Quando a desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Marilia Castro Neves reproduziu textos de uma corrente de WhatsApp afirmando que a vereadora havia sido casada com o traficante Marcinho VP, ela ativou a fábrica de fake news. A campanha difamatória prosseguiu com o Movimento Brasil Livre (MBL) compartilhando o conteúdo em seu perfil no Facebook.

Não havia uma só informação verdadeira nesses posts e a mentira foi rechaçada poucos minutos depois em uma urgência poucas vezes vista na web. Posteriormente, a magistrada disse que “se precipitou ao falar no assunto” e, dez dias depois, o Facebook retirou do ar a página Cetiscismo Político, ligada ao MBL, conhecida por distribuir versões distorcidas de notícias. “Acho que houve não só uma comoção mas uma mobilização muito grande da equipe de assessoria de comunicação e jurídica da vereadora e de outros setores que conseguiram reverter a situação até mesmo junto à imprensa mais conservadora”, comenta Igor. Mas sempre fica um rastro, lamenta o professor Ivan Paganotti. “Por mais bem sucedido que esses eventos de desmentidos possam ser, alguns indivíduos continuam propagando os conteúdos inverídicos. O boato viaja mais rápido e mais longe do que a retratação”, lembra ele que, quase três meses após o boato ter circulado, ainda precisa responder a perguntas de alunos em sala de aula “se aquela história era verdade”.

Antídoto perigoso

Assim como em praça pública não se pode dizer tudo o que se deseja sem que haja consequências, nas redes sociais também não. Os efeitos amplificados na web podem ser devastadores, causando estragos e destruindo reputações em instantes. Existem, atualmente, 20 projetos de lei tramitando no Congresso Nacional relacionados a fake news. As propostas chegam a enquadrar a criação de notícias falsas na Lei de Segurança Nacional. Dois desses projetos levam em consideração ainda a divulgação de notícias inverídicas nos jornais. O problema é que, da forma como foram elaborados e no afã de combater as fake news, os projetos podem abrir brechas que acabem fomentando um ambiente de censura.

Em carta aberta sobre fake news e eleições na América Latina divulgada no início deste ano, o Instituto Igarapé — que reúne organizações defensoras do direito à comunicação — se mostrava preocupado com os rumos do debate. “Já vimos iniciativas problemáticas e uma proliferação de leis que visam monitorar e regular ativamente as vozes online e delegar a verificação de fatos às autoridades, enfraquecendo assim o papel de iniciativas independentes de fiscalização da mídia”, apontava o documento. A jornalista Bia Barbosa, coordenadora do Coletivo Intervozes, acredita que a melhor resposta não é a criminal. Em entrevista à Agência Pública (11/5), ela afirmou que, do modo como vem sendo pensada, a legislação traz muitos riscos. “Pode gerar medo, e teremos milhões de cidadãos que, para não serem considerados criminosos, vão fazer uma autocensura, o que vai gerar um bloqueio no fluxo de informações e compartilhamento de conteúdo.”

Uma coisa é certa: no país em que 12 milhões de pessoas compartilham fake news, como apontado em levantamento do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (Gpopai) da Universidade de São Paulo (USP), esse fenômeno terá interferência direta nas eleições do próximo dia 3 de outubro. Durante seminário internacional que discutiu o assunto em 22 de junho, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luiz Fux, informou que o TSE e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) vão atuar contra fake news dentro dos limites constitucionais, mas acenou que, se comprovado que o resultado das eleições foi influenciado pela difusão de notícias falsas, elas poderão inclusive ser anuladas. Na dúvida, não compartilhe.

Falsiane

Durante o surto de febre amarela que atingiu o país no ano passado, o site Boatos.org levantou as sete maiores histórias falsas que viralizaram na internet:

A culpa é dos macacos

A tese de que macacos têm alguma responsabilidade nos surtos de febre amarela viralizou na internet e fora. A notícia é falsa, mas acabou provocando uma verdadeira caça aos primatas. Somente o estado do Rio de Janeiro registrou a morte de 132 macacos em menos de um mês, 60% deles assassinados. Macacos não transmitem a doença para humanos nem para outros macacos. Na verdade, cumprem uma função importante: ao contrair o vírus, transmitido por mosquitos do gênero Hemagogo, eles servem de alerta para o surgimento da doença no local e contribuem para que as autoridades sanitárias tomem medidas protetivas.

Febre amarela é uma farsa criada para vender vacinas

Teorias de que as doenças são inventadas para beneficiar a indústria farmacêutica não são novas. No caso do último surto de febre amarela, havia um vídeo afirmando que a doença teria sido criada pelo governo para desviar recursos. A informação não se sustenta.

Médica do Butantan alerta contra vacina

Um áudio que circulou pelo Whatsapp e dizia ser de uma suposta médica do Instituto Butantan causou alvoroço ao alardear que a vacina contra a febre amarela não era segura. O fato de a mulher usar o nome do instituto e misturar informações falsas e verdadeiras no áudio enganou muita gente. Mas a história não passava de mais um boato.

Médico diz que vacina paralisa o fígado

Dessa vez, a suposta esposa de um médico afirmava ter sido alertada pelo marido sobre os riscos da vacina, entre eles, o de que a vacina destruiria o fígado. No texto que circulou na internet e dizia ser “da minha prima Simone, que mora em Sorocaba”.

Enfermeira diz que ninguém deve tomar vacina 

Mais teoria da conspiração. O texto dizia ser “o relato de uma enfermeira que pensa” mas apontava a febre amarela como “uma farsa” de “um governo comunista que quer destruir o povo”. Boatos.org considerou que a história não passava da soma de desinformação e sensacionalismo.

Enfermeira do HC fala sobre epidemia em SP 

Ao contrário dos outros boatos, dessa vez uma enfermeira afirmava que todas as pessoas deveriam se vacinar contra a febre amarela, o que contribuiu para causar pânico na população paulistana. A vacina é recomendada prioritariamente para indivíduos não vacinados e que se expõem em áreas de risco.

Própolis espanta o mosquito da febre amarela

Mais uma história recomendava beber de 3 a 6 gostas de própolis por dia. Tal medida faria com que o corpo produzisse um cheiro desagradável para repelir o mosquito transmissor da doença. O boato já circulou em outros momentos, mas foi refutado por inúmeros especialistas, merecendo inclusive um desmentido da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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