A política da Política de Drogas

No debate sobre as drogas, é grande a tentação de simplificar, apontando um lado do ‘bem’ e um do ‘mal’ 

Opostos, quadro de Sumit Mehndiratta

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Por Dayana Rosa* para o Outra Saúde

18 de junho de 2018

Há um mês ocorreu o Fórum legalização das drogas – ouvindo os dois lados: quais são os conflitos de interesse envolvidos?, organizado pela Associação Brasileira Psiquiátrica de Brasília (ABPbr) durante o II Congresso Brasileiro de Impulsividade e Patologia Dual. Ele se apresentava como algo do tipo “o debate do século”, pela proposta não convencional e por estar inserido em um evento da elite médica do país. Mas se apresentou também como uma oportunidade de levantar o debate para além do ‘sim’ ou ‘não’ à  legalização, mesmo que o objetivo aparente fosse a polarização, já que a mesa foi formulada de uma forma opositora. De um lado, aqueles que eram contrários, representados por três médicos: o deputado federal Osmar Terra (PMDB-RS), Ronaldo Laranjeira (SP) e Valentim Gentil Filho (SP),além de Antonio Geraldo (DF) que coordenou o debate. Do outro lado, os favoráveis à legalização, representados por Andrea Galassi (terapeuta ocupacional/DF), Maurício Fiore (cientista social/SP) e Regis Barros (médico/DF).

Estamos falando de uma clara disputa do/no campo das drogas, entendido como um espaço simbólico no qual lutas dos agentes legitimam representações – o poder simbólico estabelecendo classificações sobre o que é ou não adequado a partir de uma perspectiva de valores específica.

O discurso médico-científico em jogo

Em uma mesa formada por médicos e/ou acadêmicos é muito provável que o discurso médico-científico seja predominante – mesmo que outras abordagens sejam possíveis, por exemplo, através da inclusão de movimentos sociais e usuários na mesa. A importância depositada às evidências científicas é visível nas apresentações de ambos os lados, sendo quase sempre colocada em oposição à política, à ideologia. “Contra fatos não há argumentos” — números incontestáveis e verdades absolutas estavam batalhando no campo das drogas através de atores que podem não ter os chamados conflitos de interesses, mas que têm motivações para fazer essa disputa.

Laranjeira apresentou os dados do II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas, de 2012, chamando atenção para o policonsumo (73%) e para o uso entre adolescentes. “A maconha é um problema pediátrico”, disse o médico, quando afirmou que 62% dos usuários tinham o primeiro contato com a droga antes dos 18 anos. Outro número: 75% das pessoas entrevistadas são contra a legalização, um dado que inclusive embasou a Portaria 679 de 20 de março de 2018 do Conad, o Conselho Nacional que redirecionou a política nacional de saúde mental e drogas para um novo fortalecimento de serviços de internação no país, como os hospitais psiquiátricos especializados e as comunidades terapêuticas.

Osmar Terra apresentou estimativas do Datasus e da Abead (Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas), argumentando ser falso dizer que o uso recreativo é regra (há 30 milhões de dependentes de drogas lícitas e sete milhões de drogas ilícitas), distorcendo o que Galassi havia dito antes: que os problemas com uso de drogas são a exceção. Assim, ao mesmo tempo que o lado proibicionista considera o policonsumo, ele deixa de considerar as diversas possibilidades de uso que extrapolam a categoria recreativa e a categoria “problemática”, como os usos medicinal, religioso, de aprimoramento, alimentício e industrial.

O deputado federal também apelou para que a discussão não fosse dividida entre uma questão de esquerda ou direita, citando um instituto ultraliberal americano e os países de “regime comunista” como os principais proibicionistas da história mundial. Após se apresentar como o primeiro prefeito a implantar a Estratégia Saúde da Família em um município e se colocar como agente envolvido nos primeiros anos da Reforma Psiquiátrica, que analisa ter desandado, citou a frase “o critério da verdade é a prática”, se referindo a Karl Marx, e indagou aos presentes: “Os CAPS com redução de danos estão há 20 anos batendo na mesma tecla. Está melhorando?”

Ele partiu para dois minutos de fala sobre a União Soviética e assassinos em série, enquanto slides com imagens de neurônios eram projetados. E ainda se referiu com deboche à “tentativa” da Fiocruz de provar que não existe epidemia no país.Terra se referia à pesquisa Perfil Nacional de Usuários de Crack e/ou Similares, lançada em 2014.

Diálogos entre os “dois lados”, dialética possível?

Não é porque é possível dividir os agentes envolvidos no campo das drogas em dois grupos que eles não tenham algo em comum. Foi assim que Régis Barros começou sua fala, lembrando do clássico Flamengo e Fluminense, e que Maurício Fiore tonalizou sua intervenção, chamando o dualismo proposto de “polemismo estéril”.

Partindo desse ponto, Fiore propôs a reflexão de que ambos os lados parecem concordar em alguns pontos, o principal deles sendo a comercialização em um contexto de legalização da maconha. A questão foi lançada por Laranjeira, que dedicou boa parte do seu tempo para falar da “nova indústria do tabaco”, da apropriação de artistas ao fazer merchandising, dos riscos de se ter uma maconha “medicinal” comercializada e da diversificação dos produtos. Usou , para isso, slides com imagens de revistas e propagandas americanas. A crítica estava lançada: a lógica do mercado está se impondo. Alguns antiproibicionistas defendem não só a comercialização, mas também o autocultivo, por exemplo. A regulação do comércio seria, então, um possível denominador comum entre os dois lados, mesmo que por motivações diferentes?

O grupo a favor e o grupo contra a legalização concordam também que o consumo está elevado. Regis Barros, Galassi e Fiore citaram o encarceramento exponencial no país para demonstrar isso, destacando a seletividade do sistema penal e a fragilidade do judiciário em estabelecer critérios. Osmar Terra apresentou um gráfico do INSS com dados sobre o aumento da concessão do benefício de auxílio-doença para afirmar a elevação do consumo. Há ainda outra concordância entre os lados: a banalização das drogas lícitas. Indo além, Valentim Gentil Filho disse que a dependência química não é o problema, que a questão são os problemas permanentes. “E a dependência não é permanente”, reiterou.

Nesse emaranhado de linguagens diferentes que, por vezes, formulam coisas semelhantes, Fiore defendeu que não é possível discutir com fatos. Então o que está em jogo são os valores, a moral e a ética tanto do proibicionismo quanto do antiproibicionismo – e, aí sim, é possível separar com mais clareza um grupo de outro.

Então de que interesses estamos falando?

Pois foi partindo do próprio discurso médico, da consolidação da Medicina enquanto ciência, que Galassi fez uma exposição sobre a proibição desde o século 19. Primeiro ela identificou  uma oposição entre liberalismo e antiliberalismo quanto à interferência da Igreja na consciência. Em seguida,  passou pelo proibicionismo norteamericano, que declarou guerra contra determinados grupos de pessoas ao criminalizar o ópio (chineses), a cannabis (imigrantes mexicanos), a cocaína (negros) e a heroína (delinquentes). E, por fim, chegou à  manifestação contemporânea do proibicionismo: hiperencarceramento de pobres; endurecimento da Lei de Drogas por meio do PL 37/2013, de autoria de Osmar Terra; internação compulsória pela Lei 10.216, que daria “carta branca” para psiquiatras e juízes operarem na inexistência de processo legal; e, por último, a afirmação da redução de danos como incentivo ao uso ou permissividade.

A atualização do proibicionismo se expressa no Congresso brasileiro através das chamadas  bancadas ‘do boi’, ‘da bala’ e ‘da bíblia’, diretamente relacionadas com os interesses da produção, distribuição e consumo de drogas pelo que uma possível legalização ou a manutenção da proibição interferiria nas terras/latifúndios, na economia do tráfico e no domínio da consciência. Menos oficial e mais oficioso é o lobby da indústria farmacêutica, das bebidas alcoólicas e das armas e, claro, das comunidades terapêuticas. “Eu faço política para mudar o mundo”, disse Osmar Terra para justificar sua presença no evento, complementando com a informação de que é mais bem remunerado como médico do que como parlamentar.

Para Regis Barros, o conflito de interesses está na promiscuidade do Estado diante das diferentes substâncias e na desigualdade de julgamento. Ele citou  o exemplo da performance da Justiça diante do menino ‘aviãozinho’ do morro e do “helicoca” do filho do senador. Esse Estado que pune, e pune de forma desigual, é o mesmo que cuida, como bem lembrou Galassi. É fácil perceber isso quando olhamos para a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), por exemplo, com dispositivos atentos e atualizados aos mais vulnerabilizados.

E não podemos deixar de falar da Open Society Foundation, lembrada por Fiore como uma das principais financiadoras das pesquisas sobre drogas no mundo – inclusive da Plataforma Brasileira de Política sobre Drogas, da qual ele compõe a diretoria. Em outras palavras, não é tão simples assim colocar agentes e problemas em caixinhas “do mal e do bem”. A política da Política de Drogas é uma trama de empreendedorismo moral de diversas motivações e valores, como bem lembra Howard Becker.

Por uma ética do cuidado e uma moral libertadora

Laranjeira encerrou sua fala defendendo o PL 37/2013, afirmando que a instituição responsável por legislar é a Câmara dos Deputados, e não o STF. O próprio Terra fez fala no mesmo sentido, desautorizando a Anvisa e empoderando o Congresso. Em outra oportunidade, ele comentou: “Esse negócio de apenadas e suas crianças fomos nós que botamos na lei, o STF que está tentando fazer algo com isso…”, se referindo à concessão de prisão domiciliar para mulheres condenadas que tenham filhos de até 12 anos de idade.

Estava clara a defesa do parlamento federal e da produção e fiscalização das leis, em um ano eleitoral e quando um dos palestrantes é pré-candidato. Estava claro também que não eram três contra três, mas um palco para os agentes da proibição classificarem o que é ou não adequado a partir de sua escala de valores conservadora. Beira a ironia a defesa do parlamento, uma vez que resoluções como a do Conad e a outra empreendida por Quirino na Saúde Mental estejam ganhando maior peso que as leis da Reforma Psiquiátrica, por exemplo.

“As leis não definirão a cultura das drogas”, disse Fiore, categórico. O cientista social lembrou que a maconha vive seu ápice cultural e que teremos que lidar com isso, citando um editorial da revista The Lancet publicado no mesmo dia do evento. Intitulado Changing the conversation to make drug use safer, o trabalho demonstra que o consumo aumentou, mas que a percepção de risco diminuiu. Quando os aspectos socioculturais e políticos extrapolam o aspecto médico, estamos falando do aspecto político. A política das drogas é Política.

Como disse Fiore, “o risco de morrer de tiro é maior que o risco de ficar psicótico [por consumir maconha]”. Vamos ter que lidar com isso e também com os recentes avanços, como bem colocou Galassi: a capilarização das marchas da maconha em todo o território nacional, a matéria que tramita no STF com três votos favoráveis à descriminalização do consumo de pequeno porte, a regulação nos Estados Unidos (dos 50 estados, só três ainda não autorizam nenhum tipo de uso da maconha) e 23 habeas corpus impetrados e 16 concedidos para autocultivo no Brasil.

 

*Dayana Rosa é administradora pública, mestre e doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ

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