Do pronto-socorro ao sistema penal

Série de reportagens mostra a face oculta (e cruel) do aborto no Brasil

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Série de reportagens mostra a face oculta (e cruel) do aborto no país

Por Paula Guimarães, no Portal Catarinas

15 de junho de 2018

CAPÍTULO 1

“Eles (policiais) chegaram de madrugada e quando acordei estava algemada. Tive que tomar banho de porta aberta. Não tinha policial mulher para me acompanhar. Mesmo que enfermeiras falassem que eu não poderia fugir, pois a janela do banheiro era muito pequena, eles ficavam me vigiando. No dia em que fui liberada, os policiais assinaram minha alta e me levaram para a delegacia. Depois do depoimento, o delegado disse que eu poderia ir para casa. Liguei do orelhão para minha mãe me buscar”. O relato entrecortado pelo choro é de uma jovem de 21 anos que foi levada à emergência de um hospital após passar por um aborto, em 2016, quando estava com 19 anos e cursava o ensino médio. A agente de telemarketing nos recebeu em sua casa, onde mora com os pais que trabalham com coleta de papelão para reciclagem. Contou que não sabia da gravidez, pois apesar do sobrepeso, menstruava regularmente no momento em que passou mal e foi socorrida em casa com dores e sangramento. Não identificaremos o caso a pedido da advogada, porque está sob investigação da polícia civil.

A série “Do pronto-socorro ao sistema penal” aborda casos de criminalização de mulheres por profissionais de saúde em atendimento emergencial por abortamento. Após meses de investigação, conseguimos entrevistar duas jovens que sofreram aborto, foram algemadas ao leito e vigiadas durante toda a internação. Uma delas relatou o que viveu nos dois dias em que ficou hospitalizada. Essas situações comuns a muitas brasileiras são silenciadas pelo estigma que se soma à discriminação social e étnica, à relação assimétrica entre profissionais de saúde e pacientes e à ausência de políticas públicas que assegurem direitos. Para monitorar esses casos em que uma paciente se transforma em criminosa quando busca socorro para não morrer, lançamos o Mapa Colaborativo da Criminalização por Aborto, produzido como um diagnóstico com base em matérias jornalísticas veiculadas na imprensa. A intenção é expandir a pesquisa com outras notícias não listadas e relatos de mulheres que foram criminalizadas enquanto recebiam cuidados médicos após um abortamento.

A criminalização de pacientes pela prática de autoaborto durante atendimentos emergenciais é uma das principais formas de entrada das brasileiras no sistema penal, como apontou estudo recente da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Em 65% dos casos, as acusadas foram denunciadas durante emergência médica. Em 20%, as denúncias foram feitas por familiares e vizinhos. “Um dos elementos que nos chocou é a frequente quebra do sigilo médico. A realidade constatada no Rio de Janeiro reproduz-se em outros estados. A mulher que responde processo por autoaborto é aquela que busca o hospital público, que já fez tentativa de abortamento e acaba passando mal. A maioria dos processos é de mulheres que estavam exatamente nessa situação e foram denunciadas por enfermeiras/os e médicas/os”, descreveu Arlanza Rebello, aposentada da coordenadoria Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. De acordo com o estudo da Defensoria, que identificou 136 processos entre 2005 e 2017, em algumas situações a denúncia do hospital ocorre relacionada a um pedido de remoção do feto. Há também registros de denúncia em postos de saúde e unidades de pronto atendimento (UPA). Em dois casos ocorridos na capital, o policial de plantão do hospital passou por assistente social, disse que estava para ajudar e, quando a mulher contou a história, deu-lhe voz de prisão.

De acordo com o estudo Resultados da pesquisa mulheres incriminadas por aborto: um diagnóstico a partir dos dados da segurança pública, divulgado pelo ISER (Instituto de Estudos da Religião) e Ipas (organização internacional em defesa dos direitos reprodutivos) em 2012, em mais de uma situação, a mulher denunciada foi algemada à maca do hospital público e, antes mesmo de se recuperar, o processo criminal estava curso. Enquanto o aborto é uma realidade da mulher brasileira, como revelou a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) de 2016, realizada pela Anis – Instituto de Bioética, o cárcere é para poucas. Conforme os levantamentos sobre criminalização, a maioria das mulheres denunciadas é negra, moradora de áreas periféricas, com filhos e sem antecedentes criminais. A marca da discriminação social e étnica é perpetuada no lugar onde a mulher busca socorro para não morrer, depois de um procedimento feito com pouca ou nenhuma segurança.

O retrato dos danos da criminalização às mulheres pela Defensoria do Rio de Janeiro foi apresentado na Ação de Descumprimento de Preceito Institucional (ADPF) 442 que reivindica a descriminalização do aborto até os três primeiros meses de gestação ao Supremo Tribunal Federal (STF). A ação que contesta a constitucionalidade da criminalização bateu recorde de pedidos de “Amicus Curiae” (que em latim significa “Amigo da Corte”) para participar da discussão, apresentando argumentos aos ministros. São 39 pedidos, 28 favoráveis, entre eles o da Defensoria, e 11 contrários. “A criminalização do aborto, mais uma vez confirma o racismo institucional em patamar sistêmico, não só reforçando a vulnerabilidade da mulher negra no sistema de saúde, mas também no sistema de justiça criminal”, argumentou a advogada Lia Manso, no Amicus Curiae proposto pela organização Criola, voltada aos direitos das mulheres negras.

Duas situações em que consultas médicas de emergência se transformaram em investigação policial, apuradas pelo Portal Catarinas, são citadas na ADPF. Em uma delas, a mulher fora escoltada pela polícia durante o atendimento médico depois de sofrer um abortamento espontâneo em casa, demonstrando que a nocividade da criminalização não se limita a atingir aquelas que provocam a interrupção da gestação. “Essas mulheres desconhecem seus direitos. Uma mulher que teve a privacidade violada porque foi denunciada e o prontuário usado contra ela, pode entrar na justiça contra essa equipe de saúde. Não estamos ativando isso de uma forma estratégica. É uma questão de avançar a advocacia em relação a isso no país”, afirma Beatriz Galli, assessora de políticas para a América Latina do Ipas. Ainda, conforme a advogada, ao constatar que uma unidade de saúde viola sistematicamente os direitos das mulheres, o Ministério Público pode ser acionado para que apure ou intervenha de alguma forma.

Uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), em 8 de março deste ano, abriu precedente contra a criminalização de mulheres durante atendimento no sistema de saúde, demarcando a ilegalidade da criminalização quando resulta de violação do direito ao sigilo médico. A Corte aceitou o argumento da Defensoria Pública do estado de que as provas utilizadas para incriminar uma jovem de 21 anos, além de insuficientes, eram ilícitas, pois foram obtidas após a denúncia da médica que a atendeu num hospital público. O pedido integra um conjunto de 30 habeas corpus impetrados em favor de mulheres acusadas de aborto.

A relatora do habeas corpus, desembargadora Kenarik Boujikian, acolheu o argumento da inconstitucionalidade da criminalização e classificou a prática da denúncia como constrangimento ilegal. “A conduta da médica, ao violar os princípios fundantes da medicina por publicizar os fatos que tinha conhecimento em razão do exercício profissional, sem estar em qualquer das hipóteses permissivas, deixa esta relatora, deveras, chocada”, escreveu no acórdão.

Mesmo que a prática do aborto seja crime, o atendimento humano e sigiloso no socorro à mulher que recorre a ela é direito, como orienta a Norma Técnica “Atenção humanizada ao Abortamento” do Ministério da Saúde: “A prática do aborto não deveria ser crime no Brasil, mas é. Porém, a quebra de sigilo também é. Então nenhuma mulher pode ser criminalizada por meio da violação de seu direito. É preciso que seja processada dentro da legalidade, que a regra do jogo seja respeitada. As mulheres podem ser punidas a qualquer custo? Não. As regras e os princípios garantidores do direito precisam ser respeitados”, argumenta Ana Rita Prata, coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo, uma das responsáveis pelo pedido.

Em 2017, 18 estados brasileiros registraram 331 processos pela prática do autoaborto, crime tipificado no artigo 124 do Código Penal: “provocar aborto ou permitir que outra pessoa provoque”. Um aumento de 15,3% em relação ao ano anterior. Conforme o estudo produzido pelo Portal Catarinas em parceria com a organização GHS Brasil, São Paulo é o estado com o maior número de processos por aborto provocado pela gestante do Brasil: ao todo, foram 250 entre 2015 a 2017, um aumento de 25% no período.

De acordo com o estudo Delatando as mulheres: o dever de cada prestador de serviços de denunciar, publicado pelo Ipas em 2016, profissionais de saúde na América Latina tornaram-se o ponto de entrada de meninas e mulheres no sistema jurídico, forçando-as a escolher entre a prisão ou a morte. “A relação de confidencialidade entre prestador de serviços e paciente está se deteriorando silenciosamente. Muitos países agora exigem, protegem ou encorajam que médicos não cumpram seu dever de confidencialidade quando atendem a mulheres que precisam de cuidados pós-aborto”, diz o relatório.

A advogada Beatriz Galli analisa que há uma tendência maior de denúncias nos hospitais devido ao contexto político de estigma e criminalização em relação ao aborto. “Existe um movimento no Congresso Nacional que está propondo projetos de lei que criminalizam ainda mais a prática, e um aumento da religiosidade misturada com políticas de saúde. As pessoas acham que é dever delas denunciar. Outro fator que influencia é o próprio desconhecimento sobre o marco legal”, avalia.

A pesquisa Criminalização das jovens pela prática de aborto: análise do sistema de segurança pública e do sistema de justiça do Rio de Janeiro, realizada pelo Ipas e Iser em 2012, indicou que 20,2% dos processos sobre crimes de aborto tramitavam no âmbito da justiça juvenil. “Em tese, menores de 14 são vítimas de violência sexual e têm direito ao aborto legal. Mas, não há um esforço para apurar a violência que elas sofreram. Não existe essa sensibilidade, pelo contrário, há julgamento moral sobre o exercício da sexualidade”, argumenta Beatriz que atuou no estudo.

CAPÍTULO 2

Passava das 10 horas da noite de sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017, quando a jovem Elisa (nome fictício) de 27 anos chegou ao Hospital Universitário Evangélico de Curitiba com cólicas e sangramento. Ela havia ingerido medicamentos abortivos e junto com o namorado buscou socorro a 30 quilômetros de sua casa, para que os moradores do bairro não soubessem o que estava acontecendo. A distância, no entanto, não evitou que sua intimidade fosse devassada e que a família e vizinhos a vissem no noticiário de uma emissora de televisão. Ela passou 60 horas no hospital, onde policiais e profissionais de saúde se revezavam em julgá-la. Não há um dia em que Elisa não se lembre das algemas que prenderam seus pés ao leito do hospital, e de toda humilhação que passou.

“Cheguei com muita dor no hospital e disse ‘estou perdendo meu filho’. Eu queria esconder porque sei que é crime. Eles me abandonaram numa maca por 40 minutos. Comecei a chorar de dor. O médico e a enfermeira não ligaram pra mim, até que resolvi falar a verdade, que havia tomado remédio abortivo, porque senão eu ia acabar morrendo e ninguém faria nada”. O relato sobre o estado de saúde, protegido pelo direito ao sigilo na relação médico paciente, foi recebido por profissionais daquele plantão como confissão de um crime. Além da denúncia à polícia, a punição, segundo conta Elisa, sobressaltava em falas, tom de voz e olhares, durante o atendimento.

“O médico me levou para uma sala e aplicou uma injeção. Viu que o coração ainda tava batendo. Ele e a enfermeira me olharam com uma cara de raiva e disseram ‘nossa, ele tá vivo ainda’. Me deixaram mais uma hora morrendo de dor. Colocaram uma roupa em mim e disseram para eu andar até outra sala. Lá deitei numa maca e me deixaram abandonada por mais duas horas. Comecei a sangrar muito. Vieram uma médica e umas quatro enfermeiras e pediram para eu fazer força. Eu fazia força, mas não saía nada. A maca ficou cheia de sangue. Uma enfermeira que enfiava a mão em mim disse ‘não era isso o que você queria? Agora faça força’. Ela viu que eu não ia conseguir. Me levaram para outra sala, aplicaram anestesia e fizeram a cirurgia. Acordei meio sedada, tonta, e o quarto estava cheio de policiais em volta de mim, junto com a assistente social. Eles fizeram perguntas, um policial algemou minhas pernas ao leito, e me deixaram ao lado de uma mãe que tinha acabado de ganhar bebê, acho que para me maltratar. Depois me levaram para o quarto, onde eu ficaria internada. Os policiais voltaram e continuaram a fazer perguntas. Perguntavam por que eu tinha feito aquilo, por que eu não tinha doado, já que havia muita gente querendo adotar. Eram perguntas maldosas. Me deixaram durante um período com as algemas, até que um policial disse que não precisava e as tirou”.

Elisa ficou vigiada todo o tempo por uma escolta policial. “Fiquei trancada no quarto sem receber visitas e a cada três horas mudavam os policiais que estavam de plantão do lado de fora. Eles batiam na porta a cada 30 minutos para saber se eu não tinha pulado a janela. Conversavam alto para eu escutar, lembro-me de uma enfermeira que falou ‘nossa, como é que pode, porque ela não doou, porque não deu’. Me incomodavam 24 horas. Nesses dias que fiquei lá foi assim”. A cada troca de plantão, um novo policial entrava na sala. “O que teu namorado faz? Por que você fez isso? Por que você não deixou na adoção?”, perguntavam, segundo o relato da jovem. Sem direito a receber visitas, pediu ao então namorado, por telefone, que levasse para ela uma sacola com roupas. Ele foi orientado a deixar na portaria do hospital, mas a encomenda não foi entregue.

Na segunda-feira, dia da alta, Elisa saiu do leito direto para o cárcere da Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). “Na saída do hospital, me levaram no carro da polícia, com todo mundo olhando”, conta. Presa, ela teve os pés algemados enquanto aguardava o pagamento da fiança no valor de R$ 900, pelo namorado. “Eles ligavam para o meu namorado dizendo que se não pagasse rápido eu ficaria presa. Fiquei por mais de quatro horas numa sala nojenta, com os pés algemados a uma cadeira. O lugar fedia, era horrível”. Quando descobriram que ela estava com um celular, ameaçaram ligar para cada contato da lista até encontrar a pessoa que tinha vendido o abortivo. “Falei-lhes quem tinha vendido e onde o encontrariam. Mostraram a foto e eu o reconheci”. Na volta para casa, a família já sabia o que tinha acontecido. Sua irmã assistiu à notícia na televisão que trazia imagens da jovem na delegacia. A família, no entanto, a apoiou e concordou com a decisão. “No bairro da minha mãe todo mundo ficou sabendo, por isso passei um tempo sem aparecer. Morei durante meses na casa do meu namorado, bem longe”.

Elisa achava que estava protegida de uma gravidez. Sem nunca ter consultado uma ginecologista, passou a tomar com frequência a pílula do dia seguinte. Só mais tarde descobriu que o medicamento perdia a eficácia quando usado repetidamente. “Não engravidei porque quis. Eu tomava a pílula do dia seguinte e achava que estava me prevenindo. Tinha medo de tomar injeção e me esquecia de tomar o anticoncepcional”. A menstruação irregular fez com que descobrisse tardiamente a gravidez. “Descobri a gravidez quando desmaiei no ônibus depois de fazer uma escova progressiva no cabelo. Pensei, ‘só posso estar grávida’. Fiz a ultrassonografia, já estava de quase cinco meses. Tinha um dinheiro guardado, não pensei duas vezes”. A jovem fez o procedimento medicamentoso sozinha em casa. Cinco horas depois de ingerir as pílulas, sentiu forte cólica e foi ao hospital com o namorado.

Elisa mora com a mãe, que é diarista, em um dos bairros mais pobres da região metropolitana de Curitiba. Concluiu o ensino médio e faz trabalhos temporários como manicure, ajudante de cabeleireira e babá. O ex-namorado de 29 anos chegou a afirmar, em entrevista na época, que gostaria que ela mantivesse a gravidez. “Me imaginei depois da gravidez e pensei ‘isso não vai prestar’. Ele acha que é assim ter filho. Dizer que quer ter filhos é fácil, quero ver criar. Ele ganhava uma miséria e dava R$ 300 para a filha de oito anos. Imagine como seria. Ele queria ter para a criança passar fome, e eu nunca aceitaria isso. Eu pensava ‘meu filho não vai sofrer dessa forma, nunca, jamais’. Achei melhor interromper a gravidez do que passar necessidade”.

A cada dois meses a jovem precisa pegar quatro linhas de ônibus para chegar ao Fórum Criminal de Santa Cândida e assinar o documento que garante a suspensão condicional do processo. Sob condições como comparecimento periódico à justiça, a suspensão impede que o processo tenha seguimento na Vara do Júri. Mesmo que o mérito fosse julgado, a pena para quem comete o crime de aborto, de um a três anos de detenção, geralmente é convertida em prestação de serviços à comunidade.

Elisa só teve conhecimento de seu direito a uma advogada quando compareceu ao fórum no início da ação penal. O contato com a defensora dativa, que lhe informou sobre a oferta da suspensão condicional do processo pelo Ministério Público, ocorreu por mensagem telefônica dias antes da audiência. Na sessão de audiência, cinco meses depois do flagrante, a advogada pouco conversou com a cliente. “Só disse que eu teria que assinar o documento por dois anos”.

Desde que o atendimento de saúde a levou para o sistema penal, a rotina dela é relembrar cada detalhe do que viveu naqueles dias. “Nesse ano eu parei. Sinto muita tristeza com tudo, nem gosto mais de sair de casa, saio só quando muito necessário. Uns dizem que estou com depressão. Até peguei anemia depois do que aconteceu. Minha rotina é ficar em casa chorando o dia todo. Quando eu lembro de tudo, quero só ficar sozinha e trancada”.

CAPÍTULO 3

A prisão de Elisa por aborto no Hospital Universitário Evangélico de Curitiba, em fevereiro de 2017, suscitou manifestações dos conselhos de classe de Enfermagem e de Medicina. Por meio da assessoria de imprensa, o hospital informou a abertura de sindicância para investigar a quebra de sigilo. “O Hospital Evangélico de Curitiba considera a quebra de sigilo profissional uma atitude condenável. Já foi aberta uma sindicância para apurar o fato e, caso seja confirmado, imediatamente serão tomadas as providências cabíveis”, comunicou. No entanto, o hospital, que é referência no atendimento a vítimas de violência sexual e oferece o serviço de aborto legal, reformulou sua posição inicial ao informar, neste ano, que o processo administrativo interno constatou que “não houve irregularidade alguma por parte de qualquer funcionário”, em atendimento à lei 10.778 de 2003 que trata da notificação obrigatória em casos de violência à mulher.

“Foi realizado um Processo Administrativo Interno concluindo-se que, não houve irregularidade alguma por parte de qualquer funcionário do Hospital (HUEC) e que, seguimos, rigorosamente, o protocolo do Ministério da Saúde (decreto 5.099 de 03/06/2004, que regulamenta lei 10.778 de 24/11/2003), que determina a notificação obrigatória, nestes casos. A paciente deu entrada no HUEC já em processo de expulsão fetal e afirmando, ela mesma, ter ingerido medicamento para interromper a gestação”, informou em nota enviada por e-mail ao Catarinas.

O equívoco da justificativa enviada pelo hospital se dá em três pontos fundamentais: a lei 10.778/2003 obriga a notificação compulsória para fins epidemiológicos nos casos de violência contra a mulher; detalha que a notificação deve ser feita em formulário ao Ministério da Saúde (e não à polícia), e afirma o caráter sigiloso do processo. “A notificação compulsória dos casos de violência de que trata esta Lei tem caráter sigiloso, obrigando nesse sentido as autoridades sanitárias que a tenham recebido”, diz o artigo terceiro. Conforme expressa o texto, esse tipo de registro no Sistema Único de Saúde (SUS) é considerado fundamental para o desenvolvimento de políticas e atuações governamentais.

“É uma leitura maliciosa, mais do que equivocada. A lei trata dos casos de violência doméstica e não tem nenhum outro propósito que não seja defender mulheres e pensar medidas mais eficazes de proteção. Não há nada que permite nem remotamente sugerir que essa lei possa ensejar informação à polícia ou ao sistema de justiça dos casos de abortamento provocado”, pontuou a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, sobre o posicionamento do hospital.

A procuradora entende que esse tipo de prática só prospera devido ao ambiente de polarização religiosa que tem prejudicado também o acesso ao aborto legal. “O grande problema é que as instituições estão fortemente atravessadas por essa concepção religiosa”.

A lei define como violência contra a mulher “ação ou conduta, baseada no gênero, inclusive decorrente de discriminação ou desigualdade étnica, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público quanto no privado”. O texto é específico ao situar a violência também na esfera institucional: “Entender-se-á que violência contra a mulher inclui violência física, sexual e psicológica e que seja perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra” (artigo 1, parágrafo 1º).

No artigo 2º, parágrafo 3, estabelece que para seu cumprimento devem ser observados convenções e acordos internacionais assinados pelo Brasil, como a Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher, realizada em Pequim, 1995. Contraditoriamente, a Conferência é reconhecida por considerar o aborto inseguro um grave problema de saúde pública e recomendar aos países que revejam suas legislações restritivas. “Em todos os casos, as mulheres devem ter acesso a serviços de boa qualidade para o tratamento de complicações derivadas de abortos”, diz parte do texto da conferência.

A posição do hospital compactua com a manifestação, à época, do corregedor-geral do Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR), Maurício Marcondes Ribas. Ele, porém, usou outra justificativa para defender a prática de denúncia. Segundo Ribas, os profissionais seguiram o protocolo utilizado em casos de violência contra o “concepto” ou de “violência presumida” – termo substituído pela atual lei de violência sexual para classificar estupro de vulneráveis. “Podemos fazer uma analogia com uma suspeita de agressão em paciente pediátrico, caso em que avisamos o conselho tutelar. Toda situação de violência exige notificação. Não houve quebra de sigilo, porque o protocolo de violência presumida foi feito de acordo com os trâmites legais. Esse tipo de notificação está prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no programa de atendimento às vítimas de violência sexual do MS”, afirmou o corregedor.

Já o Conselho Regional de Enfermagem (Coren/PR), informado de que a comunicação havia partido de um profissional da categoria, posicionou-se contra a violação do sigilo e chegou a pedir oficialmente à delegacia o nome do profissional que fizera a denúncia. Até o fechamento desta investigação, porém, não havia recebido resposta. “O Coren espera que os profissionais de enfermagem acolham as mulheres em suas necessidades com um atendimento digno e humanizado. Criminalizá-las não compete ao profissional de saúde”, afirmou a assessora executiva Maria Goretti Lopes.

A advogada Sandra Bazzo, consultora da Comissão de Violência Sexual e Interrupção da Gestação da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), argumenta que a afirmação do conselheiro foi equivocada. “Não estamos diante de violação desse feto. Os procedimentos de violência contra menores são voltados somente aos nascidos vivos”, defendeu. De acordo com o o artigo 2º do ECA “considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”. “O ECA fala em pessoa, logo, nascida viva. Segundo o Código Civil, em seu artigo 2º, a personalidade civil da pessoa começa no nascimento com vida”, explicou Sandra.

Conforme o artigo 66 da Lei de Contravenções Penais é dever legal do profissional de saúde comunicar as autoridades crimes de ação pública incondicionada – que não requerem representação da vítima – como em casos de violência contra menor de idade, exceto quando a comunicação expor o paciente a processo criminal. Segundo a advogada, o segredo médico só pode ser relevado quando a paciente é a vítima ou em caso de dano à coletividade, nunca para criminalizá-la.

“O médico não pode comunicar um aborto à autoridade policial ou judicial, em razão de estar diante de uma situação típica de segredo médico. O segredo médico pertence ao paciente. O médico é apenas seu depositário e só poderá revelá-lo em situações especiais: dever legal, justa causa ou autorização expressa do paciente. Há que se considerar primeiro que o aborto não representa dano à coletividade. Segundo, quando a paciente chega em processo de abortamento, é uma emergência médica. Não se trata mais de procedimento de aborto, mas de uma sequela de situação médica posterior”.

O direito ao sigilo profissional é tematizado no artigo 5º da Constituição Federal que garante, entre outros, a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas. O conselheiro Antonio Pereira Filho, coordenador do Departamento de Comunicação do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), explica que o sigilo médico envolve os códigos Civil, Penal e de Ética Médica. A quebra de sigilo no exercício da profissão é crime previsto no artigo 154 do Código Penal (dos crimes contra a inviolabilidade dos segredos) e tem como pena detenção de seis meses a dois anos ou pagamento de multa. Na maioria dos casos ocorre o pagamento de multa, porque trata-se de um crime de menor relevância social, mas o médico perde a primariedade. “O Código de Ética Médica é taxativo: é vedado ao médico revelar fato que tenha conhecimento no exercício de sua profissão. Cabe à pessoa prejudicada mover ação civil de reparação de danos, ação criminal frente ao crime que foi cometido e denúncia ao CRM por infração ao Código de Ética Médica”, destaca o conselheiro.

A prática do aborto é considerada crime no Brasil, mas o atendimento humanizado e sigiloso é um direito. Mulheres que chegam ao hospital público com complicações de uma interrupção voluntária ou não da gravidez devem ter garantido esse atendimento, conforme prevê a Norma Técnica do Ministério da Saúde (MS) “Atenção Humanizada ao Abortamento”. De acordo com Débora Duprat, o Código de Ética Médica tem status de Lei Federal e todas as profissionais que tiverem acesso à informação no sistema de saúde devem se comprometer com o sigilo. “Não há possibilidade alguma de permitir a quebra do sigilo médico para dar ensejo a um procedimento criminal contra um paciente. Isso só é possível quando para auxiliar a paciente ou outra pessoa, ou em grave situação de saúde pública, mas jamais para incriminá-la. O hospital não pode fornecer dados, a polícia não pode buscar, o ministério público e o juiz não podem requisitar prontuário médico”, esclareceu a procuradora.

Em 16 de março deste ano a juíza Mychelle Pacheco Cintra Stadler, da 1ª Vara Privativa do Tribunal do Júri da Região Metropolitana da Comarca de Curitiba, enviou ofício ao Hospital Evangélico para que este encaminhasse o prontuário médico da investigada no prazo de dez dias, e ao Instituto Médico Legal para o envio do laudo pericial. Por meio do acesso ao Processo Eletrônico do Judiciário do Paraná não foi possível saber se o hospital enviou o documento. Por meio de suas assessorias de imprensa, o Ministério Público do Paraná e a Polícia Civil informaram que não vão se manifestar sobre o caso. A assessoria de imprensa do Ministério da Saúde comunicou que se posicionaria por meio de uma nota oficial, o que não ocorreu.

Quando um profissional de saúde denúncia uma paciente que buscou atendimento emergencial para tratar de um pós-abortamento o que está em jogo não é somente o direito à intimidade, mas fundamentalmente a vida da mulher.

“Há um consenso internacional que garante que a intimidade precisa ser preservada senão as mulheres deixam de procurar o serviço e de se tratar. Isso tem efeitos adversos à saúde. Se estou sabendo que vou chegar ao serviço de saúde e serei estigmatizada não vou mais lá. É o círculo vicioso do abortamento inseguro”, afirma a médica Leila Adesse, Integrante da Rede Inroads – International Network for the Reduction of Abortion Discrimination and Stigma (Rede Internacional para a Redução da Discriminação e do Estigma do Aborto).

Apesar do autoaborto ser crime previsto no artigo 124 do Código Penal de 1940, não existe obrigatoriedade de denunciar mulheres à polícia durante atendimento médico. De acordo com a pesquisadora, ao denunciar uma paciente com a justificativa de cumprir a lei, o profissional de saúde está, na prática, fazendo o contrário.

“Não estamos incentivando que o profissional de saúde não obedeça às leis, a gente quer exatamente que sigam protocolos jurídicos. Eu não posso abrir meu prontuário, fazê-lo é um grande equívoco. O profissional precisa cruzar princípios legais e éticos da profissão: é obrigação manter confidencialidade e segredo de toda informação e não revela-la nem direta ou indiretamente. Sigilo é princípio, prática fundamental do cuidado com a saúde. O médico faz um juramento é o sigilo que define o seu profissionalismo”, afirma Leila.

Em sua pesquisa de doutorado “Aborto e estigma: Um estudo sobre a assistência às mulheres em situação de abortamento no Sistema Único de Saúde”, a médica entrevistou profissionais de algumas maternidades que revelaram também terem sido alvos de suspeitas quando buscaram socorro médico para abortamento espontâneo. “Elas também foram estigmatizadas. Falavam-lhes ‘você como enfermeira tem acesso à medicação, deve ter tomado alguma coisa’. Há uma pressão punitiva, policialesca”.

Geralmente a denúncia não vem desacompanhada, é seguida de um ritual de julgamento, humilhação verbal e negligência no atendimento. “Há um enquadramento da mulher que aborta pelo profissional de saúde. É tratada como criminosa, assassina, promíscua. Perguntam ‘por que você fez isso?’. A mulher é questionada e começa a receber pressão psicológica muito forte. Mesmo que reaja, ela conta para outras mulheres que vão temer voltar àquele lugar. De novo, elas fogem do serviço de saúde”, argumentou Leila.

A pesquisadora identificou que a estigmatização da paciente não se restringe à atuação do médico, ocorre desde a porta de entrada do hospital. “As mulheres escondem como forma de prevenir essa pressão, mas quando profissionais encontram medicamento na vagina delas aí ocorre uma reação forte, por se sentirem traídos. O médico não está para julgar quais causas a levaram a tomar decisão de interromper gravidez. Não cabe ao profissional de saúde ser julgador, nem religioso, nem juiz. Não cabe identificar se é pecado nem crime”.

O estudo do Ipas Delatando a las mujeres: el deber de cada prestador/a de servicios de denunciar apontou que mulheres e meninas são forçadas a escolher entre procurar atenção médica, o que muitas vezes leva ao encarceramento, ou evitar receber cuidados, o que poderia causar lesão permanente ou morte. Segundo o levantamento, o não cumprimento da confidencialidade pode ocorrer quando os profissionais de saúde desconhecem a legislação e pensam que têm o dever de denunciar. Em outros casos denunciam por convicção religiosa, ou moralidade ou simplesmente por acreditarem plenamente nas leis anti-aborto, mesmo que não tenham a obrigação legal de fazê-lo. Outra motivação é a necessidade de punir as “mulheres que não cumprem o rígido estereótipo de gênero”, que determina o comportamento da mulher como esposa e mãe.

“Antes os médicos denunciavam com a justificativa de que estavam se resguardando, tinham medo de serem criminalizados também. Hoje defendem que denunciam por uma justa causa em defesa da vida. Se o abortamento já aconteceu, é inócuo dizer que é para proteger outra vida, isso não é justificativa para quebrar a confidencialidade. Que vida estão protegendo? Não é a da mulher. Isso é falácia, o que tem é violação da confidencialidade médica”, afirma a advogada Ana Paula Sciammarella, integrante do Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem).

Para a advogada, que também é consultora do IPAS Brasil e atuou na pesquisa “Mulheres incriminadas por aborto no RJ: diagnóstico a partir dos atores do sistema de justiça”, publicada em 2012, as denúncias nos hospitais partem de um senso de justiçamento, constituído a partir de uma visão moralista e religiosa. Ela lembra-se do caso de uma jovem que, denunciada em um hospital e sem poder pagar a fiança, ficou algemada ao leito durante três meses até que a Defensoria Pública, representando a acusada, conseguiu que ela respondesse ao processo em liberdade.

“É violência institucional e de gênero. Há relatos de mulheres que ficam sangrando no corredor e de outras algemadas em camas, escoltadas por policiais homens. Mulheres que sofrem aborto espontâneo também são hostilizadas mesmo nessas circunstâncias”, argumenta.

Em média, o DataSUS (banco de dados do Sistema Único de Saúde) registra por ano 200 mil procedimentos pós-abortamento como curetagem e esvaziamento do útero, sem contar outros ligados a complicações. Não é possível dizer quantos atendimentos resultam em denúncias por profissionais de saúde porque não há dados estatísticos. A pesquisa recente da Defensoria Pública do Rio de Janeiro enfatizou que são criminalizadas as mulheres pobres, em sua maioria negras, que recorreram ao aborto medicamentoso de forma autônoma ou a procedimentos totalmente inseguros em clínicas ou em casa com a introdução de objetos perfurantes e sustâncias corrosivas. De acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto de 2016, 50% das mulheres que realizaram aborto e recorreram ao sistema de saúde foram internadas devido a complicações. “Parte significativa dessas internações poderia ter sido evitada se o aborto não fosse tratado como atividade clandestina e o acesso aos medicamentos seguros fosse garantido”, diz trecho do estudo.

CAPÍTULO 4

Nos últimos sete anos, 192 processos pelo crime de autoaborto foram enviados ao Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, de acordo com o levantamento do Portal Catarinas. A criminalização estende-se à situação de abortamento espontâneo, conforme apurado em março do ano passado, quando partes de um feto foram encontradas no vaso sanitário, transformando o socorro médico a uma mulher em caso policial. A paciente recebeu assistência em casa pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), foi levada até o Hospital Regional Rosa Pedrossian, onde permaneceu vigiada pela polícia e só recebeu alta depois de ser interrogada. O histórico de abortos espontâneos na sua vida reprodutiva, no entanto, a salvou de ser presa em flagrante.

Ainda que não menstruasse desde novembro, quando fez o primeiro teste de gravidez e resultou negativo, a mulher não sabia da gestação. Segundo esclareceu o delegado da 5ª Delegacia de Polícia de Campo Grande, João Reis Belo, a paciente sentiu fortes cólicas e começou a sangrar, momento em que percebeu que passava por um aborto. Mesmo que os indícios não apontem para o crime de autoaborto, o caso ainda está sob investigação da polícia civil como “morte a esclarecer”. “A mulher e o companheiro informaram que ela tem um histórico de três abortos espontâneos. O médico dela já havia alertado sobre o risco de novas situações. A polícia não descarta a possibilidade de aborto provocado, mas admite que a chance de ter sido espontâneo é muito grande”, esclareceu à época o delegado.

O hospital, o primeiro do estado a oferecer o serviço de aborto legal – previsto por lei nos casos de estupro, feto anencéfalo e gravidez de risco – informou em nota que: “a paciente foi trazida pelo Samu (juntamente já com o feto sem o crânio) com relato de dor em baixo ventre, seguida de sangramento vaginal, com saída de feto via vaginal, no vaso sanitário de sua própria residência. Relata que tracionou o feto para auxiliar a saída. A paciente ficou sob sedação e escolta policial, uma vez que houve denúncia do fato”.

Um médico do setor de obstetrícia, que não quis se identificar, contou que o policiamento gerou desconfiança entre médicas/os e enfermeiras/os que não sabiam de onde havia partido a denúncia. “Ela já chegou escoltada e durante o atendimento houve rotatividade de policiais. Horas antes da alta, uma delegada inquiriu a paciente dentro do hospital”, relata.

Em posicionamento recente, o Samu informou que o sigilo médico pode ser quebrado em algumas situações e que o abortamento é uma delas. “Havendo suspeita de crime, a equipe deverá preservar as evidências e aguardar a chegada de autoridade policial competente previamente comunicada. Neste caso, a confidência, que é um princípio básico na relação médico paciente, pode ser quebrada”.

Na época, a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Saúde de Campo Grande, à qual o Samu está vinculado, citou a Portaria 2.048/02, do Ministério da Saúde para afirmar que a denúncia à polícia é rotina em suspeita de crime. Porém, a portaria não faz menção à obrigatoriedade de denúncia, pelo contrário, prevê o sigilo como pré-requisito para o exercício profissional. “Velar para que todos os envolvidos na atenção pré-hospitalar observem, rigorosamente, a ética e o sigilo profissional, mesmo nas comunicações radiotelefônicas”.

A norma técnica Regulação Médica das Urgências também reafirma o sigilo como fundamental ao exercício da profissão e orienta que só poderá ser quebrado por “justa causa, dever legal ou autorização expressa do paciente”. A exceção ao sigilo, no entanto, só é possível quando não expuser a paciente a procedimento criminal, conforme prevê o artigo 66 da Lei das Contravenções Penais.

“O caso de Campo Grande deve nos causar um profundo mal-estar. Primeiro, pela dor desta mulher: de paciente foi transformada em algoz de si mesma, e vigiada como criminosa por quem esperava ser cuidada. Segundo, pela distorção do papel do SAMU ao entrar na intimidade das pessoas em sofrimento – é para cuidar, jamais para vigiar ou denunciar. Por fim, e o mais importante, é por nos mostrar como o estigma do aborto impede até mesmo cuidados emergenciais de saúde. Se há mesmo algo a esclarecer sobre este caso, não é o aborto espontâneo desta mulher, mas a humilhação que sofreu pela violação de sua intimidade”, analisou a antropóloga Débora Diniz em artigo no site Huffpost Brasil.

Especialistas estimam que a interrupção involuntária da gravidez atinge cerca de 20% das gestações. “Há uma lógica criminal impregnada no atendimento à mulher em situação de aborto incompleto, totalmente contrária ao que diz a legislação. Partem do pressuposto de que toda mulher que sofre aborto é criminosa. Outro aspecto grave é a denúncia de um crime feita sem nenhuma evidência”, Sonia Corrêa, co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW).

Para a pesquisadora, socorristas deveriam se guiar pela Norma Técnica de Abortamento Humanizado do Ministério da Saúde, segundo a qual o julgamento e a denúncia podem ensejar procedimento criminal, civil e ético-profissional contra quem revelou a informação. “O sigilo na prática profissional da assistência à saúde é um dever legal e ético, salvo para proteção da usuária e com o seu consentimento”, diz a norma.

Informada pela equipe do Portal Catarinas na época, a coordenadora do Nudem (Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher) da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, Edmeiry Silara Broch Festi, manifestou que faria contato com a vítima. “Nós pedimos para que a assistente social do hospital nos coloque em contato com a mulher, uma vez que a atuação da Defensoria Pública deve ser provocada. Em que pese a necessidade de provocação, entendemos que cabe uma maior investigação pelos órgãos responsáveis para saber quem fez a denúncia de aborto”, explicou.

Em entrevista realizada na sede da defensoria, dez meses depois do fato, a coordenadora afirmou que não houve manifestação da vítima. Caso fosse procurada, a defensoria poderia entrar com um mandado de segurança para o trancamento do inquérito ou ação penal, questionando o não cumprimento de direitos, e uma ação de indenização por danos morais e materiais. “A ação não seria preventiva, mas sim para fins de indenização, reparação desses danos e de educação. O Nudem criou mecanismos de expandir o conhecimento para a população e a sociedade, porque muitas vezes as mulheres não conhecem as normas que garantem seus direitos”, colocou a defensora.

Edmeiry refere-se à campanha desenvolvida pelo Nudem contra a violência obstétrica, cuja abordagem, no entanto, não contempla situações de discriminação no atendimento pós-abortamento. “A violência obstétrica ainda precisa ser reconhecida, estamos tentando nominar porque ela é invisível. Recentemente, ocorreu em uma audiência pública, ouviu-se falas de que não existe violência obstétrica. O Estado é muito conservador, temos dificuldade maior de penetrar nos organismos, o trabalho é mais árduo”, assinala.

Campo Grande (MS) protagonizou há onze anos, em abril de 2007, o maior caso de violação de sigilo médico de que se tem notícia no mundo. Cerca de dez mil prontuários médicos foram violados pela polícia durante a investigação de uma clínica de planejamento familiar, deflagrada a partir de uma reportagem feita com câmera escondida pela TV Morena, emissora da TV Globo. Trabalhadoras da clínica que funcionava há 20 anos, pacientes e a proprietária, a anestesista Neide Mota, tiveram suas vidas devastadas. Fichas e prontuários médicos de 9.896 pacientes, que formaram a base dos indiciamentos, denúncias e processos, ficaram disponíveis durante três meses e meio no site do Tribunal de Justiça do estado. Dois anos e meio depois da devassa, a médica foi encontrada morta dentro de seu carro. O inquérito apontou suicídio como causa da morte.

“Pacientes tiveram sua privacidade violada, seja porque decidiram interromper uma gravidez indesejada ou porque simplesmente fizeram uma consulta. Embora 1.500 mulheres tenham sido indiciadas, não é exagero afirmar que todas as quase dez mil mulheres tiveram seus direitos violados, na medida em que nem o sigilo médico e nem sua privacidade foram respeitados”, analisa a pesquisadora Alexandra Lopes da Costa, no artigo Inquisição Contemporânea: uma história de perseguição criminal, exposição da intimidade e violação de direitos no Brasil.

“Foi um escândalo, uma denúncia para o mundo, saiu na televisão em uma cidade pequena, onde todos se conheciam. O nome das pessoas apareceu no site do Tribunal de Justiça, elas não tiveram a menor privacidade, todo mundo manuseou as fichas médicas. Os processos não foram tratados com sigilo”, lembra a advogada Beatriz Galli, integrante do Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem Brasil). Segundo a advogada, mesmo depois de esgotados os recursos na Justiça, não foi possível construir uma denúncia internacional devido à ausência de uma organização local em Campo Grande. Ela avalia o caso como uma “experiência piloto” de grupos conservadores, que não se repetiu naquela proporção porque houve uma resposta da sociedade civil. “Fizemos relatórios com denúncias aos comitês de direitos humanos da ONU, uma publicação com histórias de oito mulheres que relataram o impacto da violação na vida delas e exposição fotográfica no Congresso Nacional. Tentamos ao máximo chamar a atenção da sociedade, tínhamos muito apoio da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) da época”, conta.

“Certamente esse episódio de Mato Grosso do Sul poderá ensejar uma punição do Estado brasileiro junto à Corte Interamericana de Direito Humanos”, assinalou a defensora pública estadual do Núcleo de Direitos Difusos e Coletivos, Neyla Ferreira Mendes, no pedido de habeas corpus coletivo em favor de todas as pacientes da clínica para o trancamento da ação penal, em maio de 2009. O habeas corpus alegou constrangimento ilegal, ausência de provas e ocorrência de provas obtidas por meios ilegais, além de contestar a constitucionalidade da criminalização do autoaborto, classificando-a como “ofensa ao direito reprodutivo das mulheres”. Os juízes da Segunda Turma Criminal do Tribunal de Justiça não aceitaram o pedido na modalidade de coletivo com o argumento de que a medida não poderia beneficiar “pessoas indeterminadas”, pois correria o risco de anistiar a prática. Para a defensora a decisão é contestável posto que a possibilidade de habeas corpus coletivo é garantida pela Constituição Federal. “Essas mulheres já estavam em outra fase da vida. O estigma do aborto é grande e o preço a pagar é muito alto. A punição ocorre pelo fato de associar a mulher à figura da mãe. É como se questionassem ‘como você, mulher, não aceita ser mãe?’”, afirmou a defensora em entrevista.

De acordo com Neyla, a lógica de coação moral na perseguição de gênero tomou contornos ainda mais nítidos de crueldade com a imposição de uma pena com fins pedagógicos. Como condição para reversão da sentença de prisão, as acusadas deveriam prestar serviços comunitários em creches. “As mulheres beneficiadas pela medida e as que ainda serão, terão a oportunidade de meditarem sobre o que fizeram. Elas deveriam criar os filhos e não optarem pelo aborto”, argumentou o juiz Aloísio Pereira dos Santos em entrevista a um jornal.

A defensora explica que o pressuposto do Direito Penal é punir o que é relevante para a sociedade, e não o que é desaconselhável pela moral. Para ela não há relevância penal na prática do aborto, por não colocar em risco a comunidade. “A relevância da gravidez para a sociedade é discutível do ponto de vista penal e moral. Qual o mal causado pela prática do aborto para as demais pessoas, senão para a própria? A criminalização é uma interferência desproporcional do Estado na vida das mulheres”, defende.

Em entrevista exclusiva, uma funcionária pública de 57 anos, que preferiu não se identificar, contou que havia acessado a clínica para fazer dois abortos. Durante o depoimento à polícia sentiu-se coagida a demonstrar arrependimento. “O escrivão perguntou: ‘você está arrependida?’ Eu disse que não, porque naquele momento foi uma decisão minha e eu tinha claro o que tava fazendo. Ele perguntou novamente: ‘mas você tem certeza de que não está arrependida?’ Aí eu entendi que eu tinha que falar que estava arrependida para constar nos autos”, relatou.

A exposição da intimidade, passados vários anos do atendimento na clínica, trouxe tensões para o convívio social da mulher. “Você se sente mal com a situação, por mais que estivesse claro que a decisão era minha. As pessoas cobram demais, questionavam ‘como uma profissional liberal não teria condições de criar seu filho?’ Quando falei para o meu ex-companheiro, ele perguntou ‘por que você não me consultou?’. Senti um peso por mais que eu tenha feito o que queria”, contou.

Ela recebeu a suspensão condicional do processo e durante dois anos teve que comparecer mensalmente em juízo. “O juiz nem olhou para mim, o defensor público menos ainda. Ele leu nos autos o meu depoimento onde confirmava que eu tinha feito o aborto e estava arrependida perante o ato. Era uma pessoa idônea, ré primária, que tinha casa e trabalho”, conta sobre o dia da audiência. A confissão era condição imposta pelo juiz para que o constrangimento não fosse ainda maior, conforme relatou a defensora no habeas corpus. Ainda que as investigadas tivessem ido até a clínica somente para fazer exames ou curetagem de um abortamento espontâneo, o ato de negar o crime dava margem para que a vida delas fosse devassada. “Trocando em miúdos: a mulher pode negar se quiser, mas lhe será imediatamente imposta a pena de execração pública”, disse a defensora.

Na época em que a devassa foi instaurada não havia nenhum serviço de aborto legal no estado, mesmo com a garantia do direito desde o código penal de 1940. Com a maior taxa de estupros do país, conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública – 54,4 para cada 100 mil habitantes em 2016, o estado realizou somente duas interrupções da gravidez por motivo de violência sexual durante o ano. Os homens, partícipes da gravidez, que teriam incentivado e até pago os abortos, não foram processados. Alguns figuraram apenas como testemunhas.

CAPÍTULO 5

Enquanto famílias se preparavam para as festas de fim de ano nos meses de novembro e dezembro do ano passado, três jovens foram denunciadas à polícia pela prática de autoaborto durante o atendimento médico em Unidades de Pronto Atendimento de Rio Preto e Birigui, municípios do interior de São Paulo. Procurada pelo Portal Catarinas, a assessoria de imprensa da prefeitura de Rio Preto informou que “em casos de tentativa de aborto provocado há registro em boletim de ocorrência”. No entanto, em resposta a um pedido de esclarecimento da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, a Secretaria Municipal de Saúde respondeu que não há qualquer orientação que estabeleça a denúncia como prática institucional, uma vez que o sigilo é dever médico.

Ana Rita Prata, coordenadora do Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo, recomendou à prefeitura de Rio Preto que o Código de Ética Médica e a lei sejam respeitados nos serviços de saúde municipais. Nos casos em que a porta da unidade de saúde é entrada para o sistema penal, a confissão de um crime – um dos elementos mais importantes para a abertura de uma ação penal – é obtida pela violação do direito ao sigilo médico. A pedido do núcleo, em 8 de março, o Tribunal de Justiça de São Paulo em decisão inédita, reconheceu a ilegalidade das provas obtidas por meio da quebra de sigilo por agentes de saúde e aceitou o arquivamento de uma ação criminal contra uma jovem de 21 anos que foi acusada de ter praticado o aborto. Ana Rita é uma das responsáveis pelo pedido que integra um conjunto de 30 habeas corpus para arquivar ações penais contra acusadas por esse crime. Cinco habeas corpus foram aceitos, um deles por ilegalidade das provas produzidas durante atendimento médico, 24 foram negados e um ainda aguarda análise do Tribunal.

Há outras decisões que estabeleceram jurisprudência sobre a nulidade de ações penais constituídas a partir de provas obtidas pela quebra de sigilo. Essa, no entanto, é primeira no TJSP. “É uma jurisprudência e precedente importante. Nossa perspectiva é que esse entendimento passe a ser adotado por outras câmaras criminais e juízes de primeiro grau, que reconheçam de fato que as provas colhidas a partir dessas violações são ilegais”, analisa a defensora. O argumento pauta-se na inconstitucionalidade da criminalização e falta de justa causa para a abertura de ações penais. A negativa à maior parte dos pedidos se deu pelo entendimento de alguns juízes de que as análises propostas no pedido deveriam ser feitas no mérito do processo, e não no habeas corpus que, em tese, discute a legalidade, conforme explicou Ana Rita.

Os pedidos envolvem todos os processos identificados no estado entre 2011 e 2016, em que as rés respondem pelo crime previsto no artigo 124 do Código Penal com pena de um a três anos de detenção: provocar aborto em si mesma ou consentir que outra pessoa o provoque. 24 profissionais foram denunciados por quebra de sigilo aos conselhos de classe, entre eles 11 enfermeiras/os, 11 médicas/os e três assistentes sociais. De acordo com Ana Rita, a denúncia criminal contra eles precisa partir das vítimas da violação do sigilo. A Constituição Federal afirma em seu artigo 5º que são inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos. O sigilo médico é tematizado no mesmo artigo, que garante, entre outras coisas, a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas. Além de processo criminal, a violação do segredo médico pode levar à ação indenizatória de danos morais e materiais e processo ético-profissional no conselho de classe.

Pesquisa realizada pelo Portal Catarinas e GHS Brasil em tribunais do país revelou que São Paulo é o estado com o maior número de processos por aborto: ao todo foram 250 processos por aborto provocado pela gestante entre 2015 e 2017. Desde 2017, o Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo) abriu 10 sindicâncias para apurar quebra de sigilo médico envolvendo denúncias de mulheres pela prática. “O Código de Ética Médica é taxativo: é vedado ao médico revelar fato que tenha conhecimento no exercício de sua profissão. No momento em que o médico revela que uma paciente fez o aborto, ele infringe o Código Civil, o Código Penal e o Código de Ética Médica, e cabe à pessoa prejudicada mover ação civil de reparação de danos, ação criminal e denúncia ao Conselho Regional”, colocou o médico Antonio Pereira Filho, Conselheiro e Coordenador do Departamento de Comunicação do Cresmesp.

De acordo com Ana Rita, a atuação da defensoria busca fomentar o debate sobre a ilegalidade da abertura de ação penal sem que haja materialidade e indício de autoria – fundamentais para a caracterização da justa causa. “Há elementos importantes a considerar: houve aborto e foi provocado? As questões seguintes: existe indício de autoria, foi essa pessoa que o praticou? Quando o promotor denuncia, o juiz precisa avaliar, tem que haver justa causa para instalar o processo penal. Muitas vezes essas informações relevantes e essenciais para justificar a instalação do processo são deixadas de lado”, apontou Ana Rita.

O aborto é um crime de ação penal pública incondicionada, ou seja, não há necessidade de representação da vítima, basta que a polícia ou Ministério Público sejam acionados para a abertura do inquérito. O crime integra o capítulo do Código Penal “dos crimes contra vida”, e como no caso de homicídio, é julgado no plenário do Tribunal do Júri. Caso não haja elementos que comprovem a acusação, o juiz pode determinar a absolvição sumária da ré. Quando ocorre a condenação pelo Tribunal do Júri, a detenção resulta em regime aberto, normalmente convertida em prestação de serviço à comunidade.

Nos processos em que Ana Rita atuou, as acusadas não foram a júri popular porque receberam o benefício da suspensão condicional, oferecido pela promotoria a quem não tem antecedentes criminais e responde por crimes cuja pena mínima não ultrapasse um ano, como prevê a Lei nº 9.099/95. Em geral as acusadas do crime de autoaborto sem antecedentes criminais aceitam o benefício, conforme estudo da Defensoria Pública do Rio de Janeiro em processos criminais no estado, publicado em 2017. O estudo “Mulheres incriminadas por aborto no RJ: diagnóstico a partir dos atores do sistema de justiça”, realizada pelo Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Poder Judiciário e Sociedade (UERJ) e IPAS Brasil, divulgada em 2012, já havia constatado a realidade. “É verdade que em geral o Ministério Público cumpre um papel importante propondo a suspensão condicional do processo, mas até chegar a este ponto, a mulher passa por uma verdadeira via crúcis”, diz trecho dessa pesquisa.

Sob condições como comparecimento periódico à justiça, pagamento de multas, prestação de serviço à comunidade e restrições como não frequentar bares e não alterar o endereço sem autorização, o benefício da suspensão condicional interrompe o processamento da ação e a produção de provas. O processo pode ser reaberto caso a mulher não cumpra o que foi determinado no período de até dois anos. Com o cumprimento das condições, a beneficiária volta a ser ré primária. “A suspensão é um benefício interessante. No entanto, para haver suspensão condicional, assim como para haver abertura da ação, é preciso que haja materialidade e indício de autoria nos autos. Há casos em que não existe sequer a prova que a mulher estava grávida. Ela buscou o hospital com sangramento e o feto nunca foi encontrado. Ouviu-se falar que ela abortou e ocorreu a suspensão”, pondera a defensora.

Na opinião da defensora, o fato de que a mulher irá responder a ação criminal já impõe peso moral e social, mesmo que a culpa não seja provada. A notícia sobre o possível crime e a abertura de processo criminal, principalmente em cidades pequenas, leva a consequências como a perda de empregos e até a mudança de endereço.

“Num dos casos, a mulher pediu na delegacia para que ninguém do trabalho fosse comunicado. A primeira atitude do delegado foi chamar o chefe dela para ser ouvido. Ela era secretária na prefeitura. Não havia relevância para a oitiva da pessoa. Não se tem ideia do quanto isso interferiu na rotina daquela mulher”, relata.

Para a advogada Ana Paula Sciammarella, integrante do Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher – Cladem, além do caráter moralista que prevê a impossibilidade de frequentar locais sociais à noite, a suspensão é um fardo para mulheres mesmo quando exige somente a assinatura mensal do termo de compromisso.

“Tecnicamente falando não é pena. Mas é como se tivessem com a espada da justiça na cabeça e dissessem ‘se você sair da linha te prendo’. Há um caso em que a mulher teve gêmeos e não conseguiu mais cumprir a assinatura mensal. Havia mudado do Rio de Janeiro para São Gonçalo, que é bem distante. Tinha dificuldade de se deslocar e de deixar os filhos, precisou justificar para não ser presa”, conta a advogada, uma das responsáveis pela pesquisa realizada pelo IPAS.

Como os processos por autoaborto dificilmente chegam aos tribunais superiores, porque em regra culminam em suspensão condicional, a maioria acaba sem julgamento sobre a constitucionalidade da criminalização e ilegalidade das provas obtidas. Na primeira vez que uma turma do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou habeas corpus para a soltura de funcionários de uma clínica clandestina, o pedido foi acatado com o argumento de que a criminalização da prática até os três primeiros meses de gestação é inconstitucional. De acordo com o voto do ministro Luís Roberto Barroso, que alcançou a maioria, além de não estarem presentes no caso os requisitos que autorizam a prisão cautelar, a criminalização do aborto é incompatível com direitos fundamentais, entre eles os direitos sexuais e reprodutivos e a autonomia da mulher, a integridade física e psíquica da gestante e o princípio da igualdade. O julgamento em 2016 pela primeira turma do STF não altera o entendimento da corte sobre o tema, porém, abre precedentes para a descriminalização da prática. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) proposta à Suprema Corte, pauta-se nessa decisão ao considerar a criminalização inconstitucional e pedir a garantia do aborto até os três meses de gestação como direito a ser assegurado à mulher.

CAPÍTULO 6

Especializado no atendimento a gestantes e bebês de médio e alto risco, o Hospital da Mulher Heloneida Studart (HMHS), em São João de Meriti, é a principal unidade de referência da Baixada Fluminense (RJ), cuja população é de 3,73 milhões de habitantes. O número de mulheres atendidas com complicações graves e com abortamento tem aumentado nos últimos anos, de acordo com a ex-diretora do hospital, a ginecologista Ana Teresa Derraik. Somente no dia 8 de janeiro de 2018, dois dos dez leitos da Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) materna estavam ocupados por pacientes que tiveram o útero e outros órgãos perfurados, após recorrerem a métodos inseguros para interromper a gravidez. “Nossa UTI tem expertise na abordagem desses casos graves e que geralmente são pacientes que se arriscaram muito na tentativa de abortar. Voltamos a ver situações graves que não víamos mais desde 2005 e 2006. Há casos de mulheres com útero perfurado e alça intestinal saindo pela vagina”, relata a ginecologista.

A médica que trabalhou durante oito anos no hospital, cinco deles na direção, relembra o caso de uma jovem de 25 anos que, transferida de outro pronto-socorro foi atendida na UTI com uma infecção grave no útero pelo uso de soda cáustica. Provedora da família, a jovem que morava com a mãe de 70 anos e duas filhas, uma de cinco e outra de três anos, contraiu uma infecção generalizada e suas pernas foram amputadas para que pudesse sobreviver.

“A gente conversa com essas mulheres, acolhe do jeito que dá, explicando a gravidade da situação. Ela chegou morredoura. Sabíamos que o foco era o útero, pensamos ‘vamos tentar tirar o foco da infecção’, mas pode ser que ela morra. O fato é que ela sobreviveu, mas a medicação usada para manter a pressão prioriza as vísceras em detrimento das extremidades. Conseguimos recuperar as mãos com fisioterapia, mas os pés necrosaram. O aborto inseguro tem consequências inimagináveis. Acho essa história insuportável”, afirma.

Ana Teresa orgulha-se do atendimento humanizado a mulheres em emergência de pós-abortamento. Ela afirma que não há registro de denúncia policial por parte dos profissionais da unidade. “É uma diretriz institucional, o nosso atendimento é o mais respeitoso possível, tanto na acolhida dessa mulher, como na acolhida da família. Tem serviço psicológico, assistência social e enfermagem, toda uma equipe voltada para respeitar, acolher e cuidar da paciente”.

Médicos que se recusam a realizar o aborto nos casos previsto por lei (gravidez resultante de estupro, risco de morte para a mulher e anencefalia fetal), alegando objeção de consciência por crença moral ou religiosa – direito que lhes é garantido quando o procedimento fere suas convicções – não podem se negar a prestar atendimento emergencial para pacientes em situação de pós-abortamento. “A objeção só cabe quando o profissional vai causar o abortamento e não quando o aborto já está consumado”, explica.

A médica explica que em situações clínicas mais complicadas é preciso levantar a história da paciente para relatar as condições que levaram ao agravamento do quadro de saúde, que será posteriormente discutido em comitê de ética. Na maioria das situações, a informação de aborto provocado ou em estado de infecção já está expressa no pedido de vaga para outro hospital. Na opinião dela o aumento de casos graves tem como causa as constantes operações de fechamento de clínicas clandestinas e as dificuldades para acessar medicamentos abortivos, proibidos de serem comercializados no país, como o misoprostol que figura entre os essenciais para uso em obstetrícia, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). “Mulheres não estão acessando misoprostol como antes. É muito triste a gente tirar o útero de uma jovem de 18 anos que nunca teve filho. Geralmente os quadros são infecciosos, hemorrágicos, que podem condenar a uma esterilidade. O útero é o foco inicial, tentamos sempre preservar desde que não imponha maior risco de morte”.

Mesmo contraindicado pela OMS por causar perfurações no útero e outros órgãos, a curetagem pós-aborto, que consiste no esvaziamento ou limpeza do útero com o auxílio de uma cureta, continua sendo o método mais utilizado para este fim nos hospitais. É o terceiro procedimento cirúrgico mais realizado no Brasil, e o segundo em obstetrícia. De acordo com os dados do Datasus, somente em 5% dos atendimentos pós-aborto os médicos utilizaram a AMIU (Aspiração Manual Intra-Uterina), procedimento rápido e menos invasivo. “A curetagem passou a ser regra em algumas maternidades e os médicos vão perdendo o hábito de usar o AMIU. Há pouco tempo estávamos sem AMIU. Na época não consegui convencer gestores da importância de comprá-lo. Não há fornecimento periódico”.

O abortamento inseguro é a quinta causa de mortalidade materna, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde, mas não é possível saber ao certo quantas mulheres morrem devido à incidência de subnotificação. “Há algumas situações em que as famílias não querem que apareça ‘morte por aborto’ no atestado de óbito. É preciso pensar que morte por doença estigmatizante é subnotificada. Então, morte por aborto é estigmatizante e sempre vai ser subnotificada. E nós vamos ter que buscar essa informação sem dizer quem está morrendo, mas sabendo quem está”, afirmou Maria de Fátima Marinho, diretora do Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde do Ministério da Saúde, em recente audiência pública na Câmara Federal sobre a mortalidade por aborto.

A redução da mortalidade materna foi a única meta dos sete Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), estabelecidos pela ONU, que não foi cumprida pelo Estado brasileiro. Só em 2015, morreram 1.738 grávidas no Brasil. A taxa de mortalidade materna do país foi de 54,9 para cada 100 mil nascidos vivos, bem acima da meta da ONU que é de 35 mortes a cada 100 mil nascidos vivos. O número de mortes pode chegar a 100 para cada 100 mil habitantes, dependendo da região do país. De acordo com a OMS o aborto seguro, com o uso de medicamentos, tem mortalidade menor do que o parto e reação à penicilina.

“Você planejou sua gravidez?” Apenas 20% das 400 gestantes atendidas na maternidade do Hospital da Mulher Heloneida Studart no último ano respondeu “sim” à pergunta feita por médicas e enfermeiras. Apelidado de “Formigueiro das Américas”, o município de São João de Meriti, na Baixada Fluminense, tem a maior densidade demográfica da América Latina com 13 mil habitantes por km². Para Ana Teresa, a criminalização do aborto é a ponta de uma sucessão de violação de direitos para as brasileiras. “Os direitos sexuais e reprodutivos estão sendo negligenciados. Mulheres não querem engravidar e se deparam com a gravidez indesejada. O Brasil não consegue aprovar leis permissivas em relação ao aborto e atender demanda contraceptiva das nossas mulheres. É o país com o maior número de gestações indesejadas da América Latina. Onde estamos errando? Por que essas mulheres estão engravidando?”, questiona a ginecologista.

O estudo da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fiocruz, publicado em 2016, apontou que entre as mulheres que tiveram filhos no Brasil, 55,4% não planejaram a gestação, enquanto a porcentagem média mundial é de 40%. Os métodos contraceptivos são acessados por apenas 33% das mulheres, de acordo com a Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos no Brasil (PNAUM), de 2014. “Quem tem que dar conta da contracepção é a unidade básica de saúde, que é de competência do município. No hospital, se a mulher não sai com laqueadura tubária, o médico geralmente não coloca o DIU”, disse.

Para a médica, a falta de acesso aos métodos contraceptivos de longa duração, em parte por falta de capacitação dos médicos, é barreira para o acesso das mulheres ao planejamento reprodutivo. O DIU de cobre, único disponível nos postos de saúde, é subutilizado, sua taxa de prevalência – que considera o número de pessoas que fazem uso no momento em que o dado é coletado – é de menos de 2% em todo o país. Há mitos sobre o método que são perpetuados por médicos como, por exemplo, a possibilidade de aplicação somente após a primeira gravidez.

Recentemente, prefeituras de São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba, passaram a oferecer o método de implante subdérmico (inserido debaixo da pele, na região do braço) para mulheres em situação de vulnerabilidade social e que não desejam engravidar. O foco inicial do programa são mães adolescentes, usuárias de drogas, mulheres com HIV positivo e que passaram a viver nas ruas, conforme recomendação da OMS. O método considerado de longa duração pode durar até três anos. Em dezembro do ano passado, o Ministério da Saúde publicou a portaria Nº 3.265 que estabelece a disponibilização imediata de DIU de cobre pelos Estados, Distrito Federal e municípios às maternidades integrantes do SUS. A aplicação deve ocorrer no período entre 10 minutos a 48 horas depois do parto ou abortamento.

Conforme a OMS, o advento da pílula anticoncepcional reduziu a quantidade de gravidezes não desejadas, porém não eliminou a necessidade do acesso a um abortamento seguro: a cada ano em média 30 milhões de mulheres engravidam no mundo mesmo fazendo uso de contraceptivo.

Dos 400 partos mensais no hospital, 20% são de meninas com menos de 18 anos e 8% a 12% com menos de 14. Preocupada com o elevado índice de adolescentes grávidas, a então diretora criou um projeto de conscientização no Centro Integrado de Educação Pública (Ciep) Lima Barreto, vizinho do hospital, onde atuou com oficinas sobre sexualidade e prevenção de gravidez precoce. O colégio tem dois mil estudantes, metade identificado como pertencente ao sexo feminino.

A médica, ativista dos direitos sexuais e reprodutivos, mobilizou uma campanha de arrecadação de recursos para colocação de implantes contraceptivos de longa duração nas adolescentes. A aplicação foi feita no hospital após a autorização dos pais. “Preparei uma aula com papo reto para tirar o mito do sexo. Falei da importância do cuidado com o corpo como realizador dos sonhos e como a gravidez atrapalha quando vem na hora errada. Conversamos também sobre o enfrentamento à violência e a importância de se unir em rede com outras colegas”, relatou. Com a ação, o número de grávidas passou de 35, em 2015, para 5 em 2016 e nenhuma em 2017. “Quantas meninas ficaram grávidas no mesmo período no colégio da zona sul, onde minha filha estuda? Nenhuma! Quando minha filha de 15 anos contou que estava namorando, também apliquei o implante”.

O Brasil apresenta dados sobre gravidez na adolescência acima da média latino-americana, segundo informações da OMS em 2018. São 68,4 bebês nascidos de mães adolescentes a cada mil meninas entre 15 e 19 anos. Enquanto a média latino-americana é estimada em 65,5, no mundo a média é de 46 nascimentos a cada mil.

“Em princípio, toda menina com menos de 14 anos tem direito ao aborto legal se assim ela quiser, porque a lei entende que ela foi estuprada mesmo que a relação tenha sido consensual. São possibilidades importantes a serem reivindicadas. A gravidez na adolescência alimenta o ciclo de vulnerabilidade: quando ela engravida, deixa a escola e fica menos capacitada a uma parte do mercado de trabalho mais nobre. É assim perpetuado o ciclo de violência, a jovem fica suscetível a relações de dependência e violência.”

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