Agronegócio avança, Cerrado sofre

O agronegócio agora mira as áreas inexploradas de Cerrado brasileiro

Crédito: Coloradogoias

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Por Flávia Milhorance e Alicia Prager, em The Intercept Brasil e Mongabay

16 de março de 2018

Plantações sem fim de soja, algodão e milho se contrapõem à vegetação nativa na beirada do asfalto no trajeto de 600 km de Brasília a Barreiras, no Oeste da Bahia. Outdoors de produtos agrícolas e caminhões abarrotados são companheiros na BR-020 em linha reta. A monocultura se expande na mesma direção que percorremos no fim de fevereiro rumo a Matopiba.

Após décadas de exploração das regiões central e sul do país, o agronegócio agora mira nas áreas inexploradas de Cerrado do Norte e Nordeste. Mercado e governo veem a região como estratégica para aumentar a produtividade nesta década. Terras baratas, relevo e clima adequados e legislação ambiental fraca a tornam atraentes. E a expansão da fronteira agrícola ocorre na mesma velocidade que a devastação do bioma até então ofuscado pela Amazônia.

“É dramático o que está acontecendo”, diz Edegar de Oliveira, coordenador do programa de Agricultura e Alimentos da WWF Brasil. “O Cerrado não está sendo protegido nem por unidades de conservação, nem pelo Código Florestal”.

O desmatamento ilegal da Amazônia persiste. Mas, no caso do Cerrado, ele é permitido. O Código Florestal preserva 80% da floresta amazônica, mas apenas entre 20% e 35% do Cerrado. Essas áreas são as chamadas reservas legais – trechos de propriedades privadas em que os donos precisam manter uma determinada parcela de vegetação nativa. Aprovado em 2012, o código teve a constitucionalidade recentemente mantida pelo Supremo Tribunal Federal. Além disso, 7,5% do Cerrado é protegido por unidades de conservação, como parques nacionais. Na Amazônia, são 50% – seja por áreas de conservação ou terras indígenas.

5% da biodiversidade do planeta

Tem sido difícil competir com a atenção que a Amazônia recebe, mas o Cerrado é a savana mais rica do mundo: 5% das biodiversidade planeta vive ali. E 137 espécies animais do bioma correm risco de extinção, segundo a organização International Union for Conservation of Nature and Natural Resources, que mantém uma lista vermelha de biodiversidade ameaçada. O cerrado também é essencial para a distribuição de água do país porque alimenta oito das 12 bacias hidrográficas brasileiras, incluindo os rios Amazonas e São Francisco, além de três grandes aquíferos: Guarani, Bambuí e Urucuia.

O Cerrado já ocupou dois milhões de quilômetros quadrados, abrangendo 20% do território brasileiro por dez estados e o Distrito Federal. Hoje, metade está de pé. E a velocidade de desmatamento desse bioma esquecido é mais rápida que a da Amazônia. Segundo o Ministério do Meio Ambiente, 9,4 mil quilômetros quadrados foram desmatados de Cerrado, contra 6,2 mil da Amazônia em 2015 – para quando há dados de comparação.

Enquanto isso, o Ministério da Agricultura olha para o bioma como uma área de exploração do agronegócio. Num relatório recente, escreveu que “a expansão (agrícola da década) deve ocorrer em áreas de grande potencial produtivo, como as de Cerrado compreendidas na região que atualmente é chamada de Matopiba”.

Soja toma a paisagem

Matopiba é a região que compreende os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, nas regiões Norte e Nordeste. Pode ser pouco familiar para a maioria, mas é conhecido pelo setor como sinônimo de “última fronteira agrícola”. E não é apenas uma projeção. A ocupação da área começou lentamente nos anos 1980, mas agora galopa. Investidores de terras vêm comprando territórios na região, onde só a produção de soja cresceu 253% em pouco mais de uma década.

O desmatamento segue junto com o avanço da fronteira agrícola. Um levantamento feito com base nos dados do Ministério do Meio Ambiente revela que 65% da perda de Cerrado brasileiro entre 2013 e 2015 ocorreu dentro destes quatro estados. Além disso, as cidades-chave do agronegócio de Matopiba mencionadas pelo relatório do governo são também as campeãs de desmatamento: Balsas, no Maranhão; Uruçuí e Baixa Grande do Ribeiro, no Piauí; e Formosa do Rio Preto, São Desidério, Correntina, e Barreiras, na Bahia, correspondem a 1,5 mil (quase 10%) dos 17 mil km² desmatados de Cerrado no país no mesmo período.

Lei “exigente”

O Código Florestal permite ao agricultor desmatar até 80% de sua fazenda para a plantação. Essa regra recebe uma enxurrada de críticas de ambientalistas. Mas o engenheiro agrônomo Fernando Sampaio pondera. Ele diz que o código “é uma das leis mais conservacionistas e exigentes do planeta”. E explica que a lei ambiental de outros países não impõe a reserva legal como faz o Brasil. Na maioria, é o Estado que assume a responsabilidade pela conservação através da criação de parques e áreas de preservação.

“Imagine dizer a um fazendeiro texano ou australiano que eles não podem usar 20%, 50% ou 80% de sua propriedade privada. Lá isso é impensável”, diz Sampaio, diretor-executivo da Estratégia Produzir, Conservar e Incluir do Estado do Mato Grosso. “O problema todo está em colocar nas costas de uma parcela da sociedade, os produtores, todo o custo de um benefício – clima, água, biodiversidade – que em tese é de todos”.

Sampaio sugere, portanto, que o governo dê compensações ambientais a fazendeiros para que eles não desmatem o que poderiam legalmente e que crie novas áreas de proteção com as terras sem destinação.

Economia dependente do agronegócio

O agronegócio correspondeu a 23% do PIB e 44% das exportações em 2017 no Brasil. Enquanto o país continua imerso em uma crise econômica, a pequena recuperação – de 1% de aumento do PIB no ano passado – ocorreu devido ao setor.

Já Matopiba representa em torno de 10% da produção de grãos do país, e a projeção é de um aumento de 30% na produção (244,3 milhões de toneladas) e 15% (65,0 milhões de hectares) na área plantada na próxima década, segundo o relatório do Ministério da Agricultura.

Essa relevância econômica da região só se intensificou nos últimos anos. O agrônomo Deosdete Santiago chegou a Barreiras em 1980 e testemunhou o boom do Oeste baiano. Ele veio à região trabalhar em um extinto programa do governo, mas acabou seduzido, diz ele, pelo agronegócio. Por anos, vendeu agrotóxicos da Monsanto. “No início, eu trabalhava com pequenos produtores, mas hoje eu percebo a região tomando o rumo do Mato Grosso, dos grandes celeiros do agronegócio do Brasil”, conta.

A expansão foi estimulada principalmente por proprietários privados, e a presença do estado tem sido intermitente. Em 2015, o Ministério da Agricultura lançou um plano para resolver a falta de infraestrutura e estimular o setor por lá. A ex-ministra do governo Dilma Rousseff, Kátia Abreu, política e pecuarista do Tocantins, se encarregou de perto do projeto, acessando investidores internacionais e distribuindo recursos.

A crise política que levou ao impeachment de Dilma em 2016 mudou as prioridades. Quando assumiu, o presidente Michel Temer extinguiu o plano e indicou como novo ministro da Agricultura Blairo Maggi, empresário do agronegócio do Mato Grosso. A mídia especializada do Norte vem pressionando o ministro pela pouca atenção à região, enquanto aumenta recursos a prefeituras de seu Estado. Durante a viagem, observamos projetos de ferrovia e termoelétrica abandonados em São Desidério. O Ministério da Agricultura foi contactado para falar destes e outros desafios gerais de Matopiba, mas não respondeu às questões.

Apesar da momentânea pouca atenção de Brasília, a expansão rumo ao norte acontece por conta própria. Além disso, tramita no Congresso o projeto de lei 279/16, que se aprovado, autoriza a criação da Agência Matopiba para fortalecer a posição do agronegócio na região.

É no Congresso que as políticas ambientais vêm sendo afrouxadas. O agronegócio é representado por 40% dos deputados através da bancada ruralista. “Sua influência é muito forte, não se faz nada sem o consentimento deles no Congresso”, critica Tiago Reis, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).

Existe saída

À medida que a fronteira agrícola se expande, ambientalistas de diferentes organizações têm fortalecido seu papel na área e estabelecido conexões com os atores locais para acompanhar os potenciais impactos na paisagem e nas populações. Edegar de Oliveira viajou numa expedição da WWF para os estados do Matopiba no ano passado. Dali foi lançado um relatório com recomendações para investimentos responsáveis de companhias que produzem e compram commodities. Ele acredita que é possível aliar objetivos do agronegócio e dos conservacionistas do Cerrado, mas apenas com muita atenção. A expedição da WWF observou experiências responsáveis com produtores de soja, ele diz, mas outras “muito traumáticas”.

Pesquisadores também argumentam que é possível salvar o Cerrado e aumentar a produção agrícola. Por exemplo, a produtividade do setor pecuário em Matopiba é baixo, de acordo com um estudo publicado no periódico Nature Ecology & Evolution. Ao se aumentar a produtividade das fazendas de gado e se limpar parte delas para a cultura de soja, é possível promover o crescimento evitando o desmatamento ao mesmo tempo, diz o relatório.

“As peças do quebra cabeça já estão na mesa”, diz Bernardo Strassburg, fundador e diretor executivo do Instituto Internacional para Sustentabilidade (IIS), no Rio de Janeiro. Algumas ações precisam apenas ser fortalecidas e reajustadas, acrescenta.

Entre as mudanças sugeridas está a expansão da moratória da soja para o Cerrado, já que esse foi um dos fatores-chave para reduzir o desmatamento da Amazônia por produtores do grão. Esse acordo veta a compra da produção de áreas desmatadas ilegalmente e foi firmado entre governo federal, ONGs e produtores de soja em 2006. Uma década depois, um relatório publicado em janeiro mostrou que apenas 1,2% do desmatamento na floresta amazônica ocorreu pelo plantio do grão. Cerca de 20% dos 5 milhões de quilômetros quadrados da Amazônia Legal são de Cerrado e não estão coberto pelo acordo, nem o resto das terras do bioma ainda sem destinação no país.

Já se nota mais mobilização pelo Cerrado. Em outubro do ano passado, 23 companhias globais – na maioria cadeias de fast food e supermercados – assinaram o Cerrado Manifesto, uma convocação para cortar o desmatamento na região. Em três meses, o número de integrantes saltou para para 61 e ganhou a atenção de representantes do Fórum Econômico Mundial em Davos . Além disso, a campanha nacional “Sem Cerrado, sem água, sem vida” também se populariza: 43 entidades, entre elas ONGs e o Ministério Público Federal (MPF), pressionam o governo brasileiro, a ONU, o Banco Mundial e outras instituições por mais fiscalização dos prejuízos ao bioma. A campanha lançou na última sexta-feira uma petição para que o Cerrado se torne patrimônio nacional. Em menos de uma semana, já ultrapassou as 50 mil assinaturas.

Contactamos a Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia, baseada em Barreiras e representante de 1.300 produtores da região. A associação não nos recebeu durante a visita à cidade nem respondeu às questões por e-mail.

Muito nas mãos de poucos

A concentração de terras é grande em Matopiba: apenas dez empresas controlam uma área de um milhão de hectares de fazendas. Grandes agroindústrias amarram os menores produtores através de financiamento para suas plantações e venda de produtos agrícolas, explica a economista Julliana Ramos Santiago, que escreveu sua tese de mestrado pela Universidade Federal da Bahia sobre o desenvolvimento do agronegócio nos cerrados baianos.

Deosdete Santiago largou o trabalho na Monsanto nos anos 1990 depois de se cansar do “jogo pesado”, do “deslumbramento perverso”, do modelo “cheio de contradições”.

“Eu decidi ficar com coisas mais simples”, conta.

Santiago nos recebeu no negócio da família, uma grande loja de ferramentas agrícolas no centro de Barreiras. Mas o que ele queria mesmo mostrar era uma pequena cafeteria no canto do estabelecimento, onde ele vende produtos feitos por comunidades tradicionais com plantas do Cerrado. Aquilo é parte de seu mais recente empreendimento: a Fundação Mundo Lindo.

Criar conscientização sobre a importância do Cerrado é um processo lento, ressalta. “Trabalhamos duro, mas provavelmente você não verá ninguém entrando aqui hoje”, diz com um riso.

A principal tarefa da fundação é, na verdade, recuperar áreas desmatadas de nascentes da região. A água, ele diz, é um dos maiores passivos ambientais do agronegócio por lá:

“O cálculo do crescimento econômico não pode desconsiderar este passivo, que só faz crescer ao longo do anos”.

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