Internar e punir

O que está por trás do giro de 180 graus do governo nas políticas de drogas e saúde mental

Gustavo Frazão / Agência Brasil
Exército faz operação na Rocinha, no Rio de Janeiro
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“Ampla, geral e irrestrita”. Por essas artimanhas que povoam a história brasileira, o lema da campanha pela anistia de presos e exilados políticos durante o regime militar foi usado para caracterizar algo bem diferente. Foi assim que entidades comemoraram a decisão tomada pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) na última quinta-feira (1/3), que consolida a guinada no entendimento do governo federal sobre como deve ser o cuidado de pessoas com transtornos mentais e usuários de substâncias psicoativas.

A partir de agora, o consumo de drogas será entendido como dependência química e o método de tratamento preferencial será a abstinência. Ao invés dos serviços públicos de saúde, criados ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, serão as comunidades terapêuticas e os grupos de mútua ajuda, em grande parte vinculados a igrejas, os locais onde as pessoas deverão se ‘tratar’. E o debate sobre a legalização, cada vez mais quente na sociedade brasileira, foi considerado carta fora do baralho. Inclusive no caso da maconha medicinal, já que o Conad aprovou uma resolução que condena tanto o uso recreativo, quanto o terapêutico.

O documento se coaduna com as mudanças aprovadas em dezembro passado pelos gestores da saúde, que deram seu aval para o aumento dos repasses públicos para leitos em hospitais psiquiátricos e estão de acordo com o anúncio do ministro da Saúde, Ricardo Barros, que pretende quadruplicar o número de vagas financiadas com dinheiro da Viúva em comunidades terapêuticas ainda em 2018, chegando a 20 mil.

Coincidência ou não, o giro de 180 graus nas políticas que norteiam a forma como o setor público entende a questão das drogas e dos transtornos mentais aconteceu no momento em que o governo Michel Temer estava preparando a troca da reforma da Previdência pelo embarque na agenda da segurança pública, que veio a se concretizar com a intervenção federal do Exército no Rio de Janeiro e a criação de um ministério extraordinário para tratar do tema, comandado por Raul Jungmann. Em seu discurso de posse, o político – que não pensava assim em 2016 – colocou a culpa da violência… no consumo de drogas.

O sequestro do Conad

O Brasil “vive uma epidemia de dependência química”, responsável pela “violência e pela pobreza”. Essa é a tese que o ministro do Desenvolvimento Social e Agrário, Osmar Terra, repete há meses, em todos os eventos e ocasiões possíveis e que, finalmente, pôde ser usada para defender a urgência da aprovação no Conad das mudanças de sua autoria. A história de como isso aconteceu merece ser contada.

O Conad é um conselho ligado ao ministério da Justiça que reúne membros do governo e da sociedade. Criado em 2006, o órgão tem como objetivo discutir e acompanhar a execução da política de drogas. Para isso, as reuniões devem realizadas com alguma regularidade. Mas desde que Temer assumiu o Planalto, o conselho só havia se reunido uma vez. Aconteceu em agosto de 2016 com um único propósito: dar posse a Osmar Terra. Vários ministérios têm assento no conselho – mas o normal, até aquele momento, era que os ministros indicassem técnicos de suas pastas para desempenhar a função. Terra, ao invés disso, se autonomeou.

Mais de um ano se passou desde então. Eis que no apagar das luzes de 2017, quando o mandato de 15 dos 22 membros já havia expirado, outro acontecimento inusitado se deu. Tendo sido avisados com apenas uma semana de antecedência, os conselheiros foram chamados a Brasília no dia 19 de dezembro. O Conad estava sendo reativado com uma pauta-bomba: Osmar Terra queria mudar radicalmente a Política Nacional sobre Drogas.

“Eles sabiam que tinham maioria e votaram goela abaixo, independente de qualquer argumentação”

A partir daí as reuniões passaram a ser presididas não pelo titular da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), como de costume, mas pelo próprio ministro da Justiça, Torquato Jardim – que deu a entender que poderia passar o Conad para a pasta de Osmar Terra. Desde então, vários conselheiros relatam que, na prática, Terra passou a protagonizar a condução dos trabalhos. Com um objetivo muito definido: aprovar sua proposta.

E sem discussão. Em 1º de fevereiro, a votação do texto foi incluída na pauta da reunião em cima da hora. Lançando mão do regimento, a União Nacional dos Estudantes (UNE), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e o Conselho Federal de Serviço Social pediram vistas e conseguiram adiar a decisão.

Já na reunião da semana passada, a proposta de resolução apresentada não foi a mesma de dezembro. “Conseguiram piorar bastante o texto”, diz Clarissa Guedes, que representou o Conselho Federal de Psicologia (CFP), referindo-se à inclusão das comunidades terapêuticas como lócus privilegiado de “tratamento” às drogas. Essas organizações, que têm representantes no Conad, levaram plateia para comemorar a aprovação, dada como certa.

As entidades contrárias tentaram apresentar críticas e emendas ao texto de Osmar Terra. “Mas de maneira muito truncada, porque o ministro a todo tempo se inscrevia e atropelava o debate”, conta Clarissa, que afirma que o Conad já foi mais plural e seguia certos ritos técnicos. “Os debates eram precedidos pela formação de grupos para analisar os temas com mais seriedade. Havia pareceres”, diz. “Hoje nós temos todo o direito de aprovar a resolução. E, a partir daí se discuta os detalhes da proposta”, defendeu o ministro, “inovando” no método de deliberação usado em órgãos públicos.

Valendo-se da manobra regimental que tinha sido bem-sucedida anteriormente, o CFP quis vistas, mas teve o pedido negado por Torquato Jardim. Segundo ele, o pedido da reunião anterior tinha sido “coletivo”. “O regimento garante a todo conselheiro o direito de fazer um pedido de vistas e o CFP ainda não tinha feito o seu”, explica Clarissa, que adianta que a entidade vai tomar as medidas judiciais cabíveis contra a decisão. “Eles sabiam que tinham maioria e votaram goela abaixo, independente de qualquer argumentação”, diz ela.

Com o voto favorável de 16 dos 22 membros, o Conad aprovou a resolução de Terra, que afirma que a política deve considerar a abstinência como o pilar do tratamento. O coordenador de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde, Quirino Cordeiro, caracterizou a decisão como um “divisor de águas”. Ele, que é o conselheiro designado pela pasta no Conad, destacou que a “resolução marca definitivamente a posição do governo brasileiro contrário à legalização das drogas no país”.

Reunião do Conad: presença manipulada, debate sempre interrompido e a presença estridente do ministro Osmar Terra (Crédito: Isaac Amorim/MJ)

Dobradinha

Mesmo antes de apresentar sua proposta no Conad, Osmar Terra já havia defendido num evento promovido pela Comunidade Terapêutica Fazenda da Paz, no dia 9 de novembro no Piauí, que para enfrentar “a epidemia de dependência química” a sua pasta tinha que trabalhar em conjunto com os ministérios da Justiça e da Saúde.

Por sua vez, desde agosto, Quirino Cordeiro vinha defendendo que era preciso aumentar para 80% a taxa de ocupação de leitos para pacientes psiquiátricos em hospitais gerais (que estava em 20%) e que os CAPS, Centros de Atenção Psicossocial – implantados a partir de 2002 como estratégia de substituição da internação por um tratamento de base comunitária – não eram “produtivos” nem “efetivos”. Para Quirino, que assumiu o cargo em fevereiro sob aplausos de uma das entidades mais atuantes pela volta da abertura de serviços de internação, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), tinha chegado a hora da CIT, a comissão em que o governo federal se reúne com os secretários municipais e estaduais de saúde, mudar o rumo da política.

E isso aconteceu em 14 de dezembro, apenas cinco dias antes da investida de Osmar Terra no Conad. E, por ironia do destino (ou não), no mesmo mês em que se comemoraram os 30 anos do início da luta contra as internações em manicômios no país, marco do movimento que ficaria conhecido como “reforma psiquiátrica”.

O método usado pelo ministério para liderar a mudança na Política Nacional de Saúde Mental é muito parecido com a metodologia de “diálogo” de Osmar Terra. Dessa forma, uma política que começou a ser construída no fim dos anos 1980 a partir de conferências de saúde foi transformada, num espaço de cinco meses, sem levar em consideração a posição contrária do Conselho Nacional de Saúde (cujo presidente foi impedido de falar por Ricardo Barros na reunião da CIT, sob a justificativa de que sua manifestação não estava prevista no regimento), do Ministério Público Federal (que considerou na véspera a proposta inconstitucional), nem do Conselho Nacional de Direitos Humanos, nem de entidades que atuam na área, como a Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme). E, ainda, das duas mil pessoas que foram às ruas de Bauru protestar contra as mudanças no dia 8 de dezembro.

“A tendência vai ser confinar”

Ainda existem aproximadamente 25 mil leitos psiquiátricos no Brasil. O número, antes da lei da reforma psiquiátrica, de 2001, era de 54 mil leitos ocupados e 71 mil cadastrados. Isso aconteceu porque a orientação da política era apostar na reinserção social dos portadores de transtornos mentais, antes confinados, fechando definitivamente os leitos. As novas diretrizes, no entanto, colocam um fim a esse processo. Elas “vedam” a ampliação da capacidade instalada nos hospitais especializados, mas, com isso, congelam a quantidade de leitos existentes hoje. E fazem isso de acordo não com os leitos ocupados, mas com o número registrado no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, o CNES.

“A resolução tem características ambíguas. É provável que seja deliberadamente ambígua para que se possa afirmar que continua seguindo a lei”, observa Pedro Gabriel Delgado, professor da UFRJ e ex-coordenador de Saúde Mental no governo Lula. “Os hospitais que têm convênio com o SUS mantêm um estoque de leitos que não são os contratados. No campo da saúde mental, quando levamos em conta o total de leitos hospitalares, consideramos aqueles que estão sendo efetivamente utilizados. Quando dizem que não aumentarão a ‘capacidade instalada’, isso significa pouco mais do que nada. O registro [do CNES] vai falar o total de leitos, mas não os leitos usados”, explica.

Além disso, o ministério da Saúde aumentou a diária paga aos hospitais psiquiátricos, que passou de R$ 30 para R$ 70 – o que, segundo Barros, cobre metade do custo. O aumento representa uma despesa de R$ 60 milhões por ano. “Com a reforma psiquiátrica, esse segmento econômico perdeu a dimensão que tinha, mas pode estar se reorganizando”, diz Pedro Gabriel, que destaca que em um contexto de congelamento do orçamento da Saúde, o governo está tirando de algum lugar para investir em internações.

Seu palpite – a confirmar – é que o cobertor tenha sido tirado dos CAPS. Segundo ele, dados estaduais mostram que em 2017 o Ministério habilitou 14 CAPS. “Caso isso se confirme, trata-se de uma redução dramática do cadastramento de novos serviços. Desde 2002, a média histórica de cadastramento ficou acima de cem CAPS por ano. Então, se cadastrou só 14, pode ter sido um pouquinho mais, significa que o processo da reforma foi, de fato, paralisado”, observa. O Outra Saúde pediu essa informação para o ministério da Saúde, mas não obteve resposta até o fechamento da reportagem. Segundo o Conselho Nacional de Saúde, a pasta ainda não havia enviado a prestação de contas do terceiro quadrimestre de 2017, então ainda não dá para saber quanto foi investido nos CAPS e nos outros equipamentos da Rede de Atenção Psicossocial, a RAPs. “Todo mundo que trabalha em cenas de uso está lamentando o sucateamento da rede de atenção psicossocial como um todo. A fragilização dos consultórios na rua, que são serviços leves, móveis e que ampliam a capacidade de acolhimento das pessoas. E das políticas ligadas à assistência social”, observa Pedro Gabriel.

Nesse sentido, a decisão da CIT de criar um tipo de CAPS para tratamento de álcool e drogas cuja única diferença é o local de implantação – preferencialmente em “cracolândias” – é, na avaliação do professor da UFRJ, uma tentativa “grosseira” de produzir publicidade para desviar a atenção do sucateamento e gerar na população a sensação de que se está se fazendo alguma coisa. “Parece muito mais um serviço de contenção da população de rua e de encaminhamento para instituições de confinamento. Podem usar o nome CAPS, mas não tem a perspectiva de inclusão social que o Centro de Atenção Psicossocial deve ter”. Para Pedro Gabriel, o serviço vai servir de porta de entrada para comunidades terapêuticas. “A tendência vai ser confinar”.

As novas diretrizes da saúde mental preveem a integração que Osmar Terra antecipou lá em novembro. Um comitê gestor, envolvendo as pastas da Saúde, Desenvolvimento Social e Justiça, foi criado no dia 22 de dezembro. Caberá a ele definir “ações de prevenção, pesquisa, cuidados, formação de multiplicadores e reinserção social” no tema das drogas. E a prioridade anunciada do comitê é garantir a ampliação das vagas financiadas com dinheiro público nas comunidades terapêuticas.

“Vamos colocar 20 mil vagas para tratamento de dependentes químicos em comunidades terapêuticas, preferencialmente naquelas vinculadas a igrejas”, garantiu Ricardo Barros no dia 28 de fevereiro na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados. Segundo o ministério da Justiça, em 2017 a Senad financiou 4,2 mil vagas em 314 comunidades terapêuticas a um custo de mais de R$ 48 milhões. Fazendo um cálculo simples, seriam necessários, no mínimo, uns R$ 200 milhões para ampliar esse número de vagas para 20 mil. O Ministério da Saúde anunciou no dia 21 de dezembro que vai arcar com R$ 100 milhões dessa conta.

Lobbies e posições

Segundo o último (e único) dado quantitativo disponível, em 2009, existiam 1.963 comunidades terapêuticas no país. Juntas, ofertavam 83,6 mil vagas. Esse número representa pouco mais de 25% do que o governo, agora, pretende financiar. Um estudo divulgado no ano passado pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) mostrou que 82% das comunidades terapêuticas têm vínculos com igrejas ou organizações religiosas. Aquelas com orientação pentecostal somam 40% do total e oferecem 41% das vagas disponíveis. Em segundo lugar, estão as católicas (27% e 26%, respectivamente). Ainda segundo o Ipea, 55% dessas organizações admitem administrar medicamentos psiquiátricos nos internos, prática proibida pelo Conad.

Isolamento e abstinência são dois pilares do trabalho desenvolvido pelas comunidades terapêuticas no Brasil. Ao passo que a orientação do governo federal – inscrita anteriormente tanto na Política Nacional sobre Drogas, quando na Política Nacional de Saúde Mental – era de que o tratamento de usuários de substâncias psicoativas, e de portadores de transtornos mentais de uma forma geral, acontecesse em liberdade, de acordo com um plano terapêutico individual. Segundo esse pressuposto, a abstinência não deveria ser o único objetivo do cuidado à saúde. A noção de que nem sempre populações inseridas em contextos de extrema vulnerabilidade – como moradores de rua e encarcerados – conseguem parar de usar substâncias lícitas, como álcool, e ilícitas, como maconha, crack ou cocaína, é a base do conceito de redução de danos.

Para Osmar Terra, no entanto, a redução de danos é um “lobby pró-drogas” que “proíbe” a abstinência. “Nós estamos discutindo aqui, na verdade, se votamos a favor da lei que está aí, nos omitindo, prolongando com discussões intermináveis em busca de consensos que nunca vão existir nesse tipo de política porque tem questões ideológicas, políticas, partidárias, filosóficas; que sempre vai ter um setor querendo liberar drogas no Brasil, sempre vai ter um setor querendo controlar isso. E é uma discussão infindável. Esse conselho, se ele não votar hoje sobre essa resolução, ele está votando a outra posição que já está valendo, que é uma posição que proíbe abstinência”, discursou ele no dia da votação no Conad.

“Terra usa uma estratégia repleta de equívocos e deturpações”, observa Clarissa Guedes. “A abstinência faz parte da redução de danos. A gente não acredita que a abstinência deva ser um modelo imposto, como se todo mundo fosse parar de fazer uso de substâncias psicoativas de uma hora para outra. É irreal para a clínica das toxicomanias pensar nesse ideal porque as pessoas não fazem uso abusivo porque querem”, explica.

“O lado do Osmar Terra não quer sentar e discutir de uma forma ponderada. Porque a gente pode discordar de forma civilizada. Osmar Terra não está disposto a dialogar com ninguém. O que aconteceu no Conad é uma demonstração clara disso”, diz o psiquiatra Luís Fernando Tófoli, professor da Unicamp e membro da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, que denuncia desde dezembro as investidas do ministro sobre o conselho e se envolveu num duelo de posições com Terra no Poder 360. “É muita má-fé [o comentário do Osmar Terra sobre abstinência]”, diz ele, que explica que uma ala da psiquiatria, a qual Terra se alia, considera que o consumo de drogas afeta o cérebro. E, conclui que o melhor é que não se consuma nenhuma substância e que sua circulação seja proibida.

“Há toda uma controvérsia de como isso afeta o cérebro. Existem pessoas que param de usar problematicamente e conseguem voltar a usar drogas de uma forma controlada, mesmo tendo sido dependentes. Essa ideia de que é uma lesão cerebral que não tem volta não se aplica nesses casos. Para alguns pacientes, de fato, o melhor a fazer é ficar abstinente, mas isso nem de longe é como reverter diabetes. O cérebro se adapta e as alterações cerebrais estão sujeitas a uma série de fatores. E ainda que sejam, em alguns casos, lesões permanentes, elas só acontecem na maioria das vezes em cenários muito degradados na história de vida da pessoa.

Tem um monte de fatores sociais que são olimpicamente ignorados pela indústria da dependência química”, explica Luís Fernando. Para ele, o grande problema do grupo que tem Osmar Terra como seu grande porta-voz é transformar o debate científico e político num discurso monocórdico e moral. “É não entender que existem variações, que existem determinantes sociais. E que existem pessoas que não conseguem ficar abstinentes. E aí? O que a gente faz com elas?”, pergunta. Para ele, ignorar a redução de danos como uma forma de lidar com esse fato é “jogar as pessoas no lixo”.

Mas segundo o ministro, que taxa quem tem uma posição diferente da sua de lobista, mas passou novembro inteiro peregrinando por eventos promovidos por comunidades terapêuticas, a abstinência “é a única maneira que se encontrou no mundo, há cem anos, desde a criação dos alcoólicos anônimos, para minimamente devolver as pessoas a uma vida produtiva”. Também no dia da votação no Conad, ele emendou: “Sou contra a liberalização das drogas por uma convicção baseada em evidências. Vai perguntar para a China como é que ela trata traficante”.

Na reunião de 1º de fevereiro, Terra já tinha usado o conceito de redução de danos como cavalo de batalha contra a política adotada nos governos FHC, Lula e Dilma. O político citou o ex-coordenador de Saúde Mental do ministério da Saúde, Pedro Gabriel Delgado, e afirmou que quando era secretário estadual de saúde do Rio Grande do Sul, o procurou para saber o que poderia ser feito em relação à “epidemia de crack”. Teria recebido como resposta que era para “distribuir cachimbo de vidro para todo mundo”.

“Quando ele cita um diálogo como esse, é uma tentativa de desqualificar e ridicularizar a política. Não é impossível que em algum momento eu tenha feito referência à questão de insumos para redução de danos. Eu falava isso publicamente. Mas ele pega uma parte e usa para desqualificar o todo. O Ministério da Saúde nunca propôs distribuição de cachimbo nesse contexto que ele está falando. Aliás, no Brasil cachimbo de vidro nem é usado. Apenas o de madeira foi utilizado em algumas experiências, como na Bahia, onde era fabricado pelos próprios usuários. Ele pinça um exemplo que não tem a ver com a realidade brasileira e manipula a informação. É profissional nisso”, responde Pedro Gabriel, que deixou o cargo em 2010. O cachimbo é um recurso da redução de danos para diminuir as feridas labiais causadas pelo uso do crack.

Para ele, a persona pública de Terra não pode ser desvinculada do uso político e eleitoral da questão das drogas, que está na agenda desde o segundo governo Lula quando começou a se falar em uma “epidemia” de crack no país. “A droga fornecia uma interpretação da crise social brasileira. Era uma interpretação eficaz, mas absolutamente incorreta do ponto de vista epidemiológico. Tanto que levantamentos foram feitos e mostraram que nunca houve curvas que autorizassem dizer que o consumo do crack atingiu marcas epidêmicas. Mostraram, isso sim, evidências de grande vulnerabilidade social, que se relacionava a cenas públicas de uso de intensa degradação. Essas situações muito graves produziam um grande impacto no imaginário social, provocando solidariedade, mas ao mesmo tempo intolerância”, lembra Pedro Gabriel, citando a Pesquisa Nacional sobre o Crack, feita pela Fiocruz, que descobriu que os usuários da droga representavam menos de 1% da população brasileira.

Repressão às drogas é “popular”? O governo aposta que sim mas, segundo pesquisas de opinião, cresce o percentual dos que defendem legalizar (Crédito: Rovena Rosa/Agência Brasil)

Para Luís Fernando, se há algum lobby nessa história, ele vem das comunidades terapêuticas – que, não por acaso, se beneficiaram largamente da fabricação da “epidemia do crack”. O psiquiatra relembra que ainda na primeira gestão de Dilma Rousseff essas organizações forçaram a entrada no ministério da Saúde, que, diante de resistência interna e pressão externa, deu o aval para que elas entrassem na RAPs. Mas impôs algumas restrições. “Que não eram nada de muito complexo não. Mas quase nenhuma conseguiu atingir essas exigências”, diz.

Foi aí que, nas palavras dele, “elas correram para a Senad” no Ministério da Justiça. A Secretaria Nacional de Drogas conta com recursos além do orçamento federal, vindo de apreensões relacionadas ao tráfico. “Lá elas se albergaram. O governo Dilma dava dinheiro de uma forma muito indiscriminada sem a necessária fiscalização. E elas foram se fortalecendo politicamente, ganhado dinheiro, angariando votos porque, para o olho público, estamos falando de instituições religiosas que salvam vidas”. Muitas estão engajadas de verdade, sem oportunismo, acredita Luís Fernando. “Mas isso vai gerando um movimento que vai criando um tipo de mercado e onde há mercado e há dinheiro, há ganância”.

Para o psiquiatra, há três grandes problemas nessa história. Em primeiro lugar, as comunidades terapêuticas querem receber recursos públicos, mas não querem ser reguladas pelo Estado. “O marco regulatório decidido pelo Conad é frouxíssimo. Curiosamente, as entidades que as representam se queixam das comunidades ‘picarêuticas’”, diz. Na hora do vamos ver, não toparam regras mais severas. E, por isso, a maioria das comunidades não respeitam as regras do SUS, nem a autonomia e individualidade de cada pessoa que recebem. “Não dá para fazer pacote de tratamento, nem proselitismo religioso com dinheiro público”, critica.

O segundo problema é que, na verdade, o SUS não precisa das comunidades terapêuticas para dar conta da necessidade que algumas pessoas têm de ficarem abstinentes em espaços protegidos. Para isso, explica Luís Fernando, existem Unidades de Acolhimento (UAs), serviços públicos que, no entanto, tiveram implantação incipiente. Apenas seis UAs constavam no pacote de anúncios do ministério da Saúde em dezembro passado – e sem destaque. Foram anunciadas junto com mais de 400 serviços que somam um total de investimentos de R$ 70 milhões na RAPs (ao passo que, para as comunidades terapêuticas, o valor é de R$ 100 milhões).

Por fim, o último problema identificado por ele é que, graças ao lobby, as comunidades terapêuticas alcançaram o status de única alternativa terapêutica – quando em nenhum lugar do mundo é assim. “Com esse tipo de projeto em que se decide que só vale dar martelada, tudo que o que se vê pela frente é prego. Com isso quero dizer que a política de drogas precisa ser plural, não pode ser focada em um só instrumento. Nem só CAPS, nem só comunidade terapêutica, cujas evidências de efetividade, aliás, são sofríveis, na melhor das hipóteses”, nota Luís Fernando, para quem o Estado brasileiro não presta contas de quantos tratamentos financiados pela Senad tiveram resolução. “Quanto tempo os pacientes estão ficando internados? Qual é a taxa de abandono? Quem completa e fica abstinente – já que o objetivo único é a abstinência?”, pergunta.

“No Brasil, a gente conseguiu atingir a ‘datenocracia’, que é tomar decisões sobre políticas baseando-se na opinião pública formada pelos programas policiais vespertinos”

Já Pedro Gabriel lembra que Osmar Terra tem como secretário-executivo Alberto Beltrame. “É uma pessoa que tem ligações legítimas com as comunidades terapêuticas do Rio Grande do Sul. Dentro da saúde pública, defende o aumento da participação das instituições privadas e filantrópicas. Ao meu ver, ele foi para ministério do Desenvolvimento Social com a missão de fazer a ampliação das comunidades terapêuticas”, avalia. Beltrame também ocupou cargo-chave no ministério da Saúde nas gestões José Gomes Temporão e Marcelo Castro, durante os governos Lula e Dilma.

Jogando para a plateia

“Os defensores da proposta não escondem que a criminalização das drogas é uma pauta popular, que traz votos”, destaca Clarissa Guedes. No debate da semana passada no Conad, Osmar Terra quis fazer pouco das conferências de saúde contrapondo o número de pessoas que participaram ao número de eleitores que ele e outros deputados federais da bancada da bala, como Givaldo “Carimbão” (PHS-AL), tiveram nas últimas eleições. “Para nós, parece óbvio que Terra quis aprovar isso até abril, antes da sua descompatibilização do governo, de modo que tenha o que mostrar na sua campanha eleitoral. Era uma questão muito dele – que conseguiu atropelando o Conad”, afirma a representante do CFP.

A resolução tem mesmo um certo aroma populista. O texto diz que a orientação da política deve considerar a “posição majoritariamente contrária da população brasileira quanto a iniciativas de legalização de drogas”. Em seu discurso no Conad, Osmar Terra afirmou que “não tem uma pesquisa (…) que dê menos de dois terços da população contra a liberalização do uso de drogas”.

“No Brasil, a gente conseguiu atingir a ‘datenocracia’, que é tomar decisões sobre políticas baseando-se na opinião pública formada pelos programas policiais vespertinos”, critica Luís Fernando. Ele pondera que a população é exposta diariamente à associação direta entre drogas e violência e não tem acesso às informações disponíveis produzidas no campo da segurança pública. “A população brasileira tem uma posição, mas será que ela tem informação sobre os impactos do encarceramento em massa, por exemplo? É preciso saber que as facções criminosas nasceram dentro das prisões, não fora. O Estado teria que prender bem – e não prender mais”, defende.

Segundo ele, prender usuários e pequenos traficantes não violentos é uma forma de turbinar o poder das facções, já que, uma vez dentro do sistema prisional, são elas que dão as cartas – e oferecem vantagens para que mais pessoas se unam a elas. “A primeira coisa que acontece quando essas pessoas entram na prisão é receber papel higiênico da facção tal para se unir a ela porque nem papel higiênico o Estado dá. Querem aumentar as masmorras porque ‘bandido bom é bandido morto’ – ou bandido preso, pelo menos. E não percebem que, na verdade, está se alimentando o próprio crime organizado”.

Mas a verdade é que tem crescido o debate sobre o fracasso da guerra às drogas, inclusive no Brasil. Uma pesquisa do Datafolha divulgada em dezembro passado mostrou que, cada vez mais, os brasileiros são favoráveis à descriminalização da maconha: em 1995, eram 17%; em 2012, 20%; e, hoje, o número já chega a 32%. A posição aumenta entre os mais jovens (40%), os mais escolarizados (42%) e os mais ricos (53%). Entre entrevistados com ensino fundamental, a taxa cai para 24%. Entre os que ganham até dois salários mínimos, o número é de 26%.

Por isso, Luís Fernando considera que o argumento de Terra é falacioso porque passa a ideia de que a opinião pública é cristalizada, imutável ao longo do tempo. “Além disso, quando se trata de tomada de decisão pública, não se pode levar em conta somente o que a maioria acha. É importante lembrar que mesmo que algumas medidas não sejam corroboradas por posições majoritárias, elas servem para defender populações fragilizadas”, diz. A tragédia, pondera ele, é que no caso brasileiro os dados mostram que as populações fragilizadas são justamente aquelas que apoiam mudanças no sentido de restringir e proibir ainda mais, não percebendo que o efeito colateral é nas suas costas.

Mensagem circulou entre entidades que apoiam as mudanças, como Associação Brasileira de Psiquiatria e Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (Febract)

A mensagem de WhatsApp dos defensores da resolução do Conad que abre essa matéria também comemorou “a negativa à legalização das drogas em qualquer frente, recreação ou saúde”. Enquanto isso, avançam no mundo todo pesquisas sobre os efeitos terapêuticos da maconha, especialmente bem documentados no caso de doenças como esclerose múltipla e epilepsia.

Não está claro se a resolução terá rebatimentos na Anvisa, que tem atuado na regulação do uso medicinal de produtos à base de canabidiol e chegou a anunciar no ano passado que iria atualizar as normas sobre cultivo da Cannabis para pesquisas e produção de extratos ou futuros medicamentos. Isso porque o documento deve orientar as ações do Executivo federal. A Anvisa tem assento no Conad e votou com o governo. O Outra Saúde apresentou os questionamentos para a Agência, que não respondeu até a publicação da reportagem.

Depois do episódio de perseguição ao médico Elisaldo Carlini, há motivos para preocupação. O professor emérito da Unifesp, que se dedica há décadas à pesquisa do uso medicinal da maconha, recebeu em setembro do ano passado a notícia de que estava sendo investigado num inquérito policial. Seu crime? Organizar um simpósio científico sobre o tema. E ousar convidar Geraldo Antonio Baptista, criador da primeira igreja rastafári do Brasil, para uma mesa sobre maconha e religião. Baptista foi condenado a 14 anos de prisão por tráfico de drogas em 2013, pois acharam a planta na sede de sua igreja. Os rastafáris usam a maconha em diversos rituais. A promotora Rosemary Azevedo Porcelli da Silva, do Ministério Público Estadual de São Paulo viu no convite “fortes indícios de apologia ao crime”.

Em entrevista à BBC, Carlini apontou que é urgente mudar a Lei de Drogas no país: “Enquanto vários países vêm avançando neste tema, o Brasil ainda está na Idade Média. Temos que brigar para atualizar a lei, que é injusta e cruel, principalmente com jovens negros e pobres que são presos e mandados para uma sucursal do inferno”.

Nova vitrine, velha vidraça

Luiz Fernando Pezão assina o decreto que entrega a segurança pública do Rio ao Exército (Crédito: Beto Barata/PR)

Mas se depender do governo Temer – e dos candidatos conservadores à Presidência da República – ainda teremos que conviver com a “guerra às drogas” durante algum tempo. Os movimentos orquestrados no Conad e no Ministério da Saúde parecem frutos da nova vitrine do governo federal: a segurança pública. Segundo Osmar Terra, a aprovação da sua proposta “é importante no momento em que a gente está se preparando para enfrentar a violência” no país. “Nós estamos com a intervenção federal no Rio de Janeiro, a violência se propagando e acompanhando uma grande epidemia de drogas”, repetiu.

Nesse terreno, e com um pacote de segurança pública sendo votado no Congresso – a pauta “positiva” originalmente tinha sido ideia de Rodrigo Maia, presidente da Câmara, visando as eleições – crescem as chances de aprovação de propostas como a que Terra apresentou em 2013. O Projeto de Lei Complementar (PLC) 37 está pronto para ser votado no Senado. O texto aumenta a punição relacionada ao consumo e à distribuição das drogas. “Quem trabalha no campo das drogas pensa, na verdade, que os mecanismos devem ser flexibilizados. Mas Osmar Terra parece ser insensível ao fato de que o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. E que a maior parte das pessoas estão sendo presas por causa das drogas”, observa Pedro Gabriel.

Dados do último Levantamento Nacional de Informações Penitenciária, de junho de 2016, mostram que 28% da população carcerária está presa pelo crime de tráfico de drogas. Entre os homens, esse percentual é de 26%, mas, entre as mulheres, atinge 62%. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional, em 16 anos a quantidade de mulheres presas saltou 700%. Em 2000, eram 5.601 presas. Em 2016, o número saltou para 44.721.

Já de acordo com o Mapa da Violência 2016, o número de negros assassinados no Brasil cresceu 18% em 10 anos. No mesmo período, houve queda de 12% entre pessoas não negras. A cada 100 mil habitantes assassinados, 75% são negros. No Rio de Janeiro, onde acontece a intervenção federal do Exército, os jovens negros correm quatro vezes mais risco serem assassinados pela polícia do que os brancos.

Mas, segundo Osmar Terra, o “holocausto de nossa juventude” e os tristes recordes mundiais de homicídios do país não têm a ver com desigualdade social, nem violência policial seletiva. “Vivemos uma epidemia sem precedentes de violência, gestada no útero de outra epidemia, a de consumo de drogas no Brasil”, escreveu na Folha de S.Paulo. Segundo o ministro, a maioria dos 110 mil homicídios anuais no Brasil ocorre “por discussões banais, crimes passionais, latrocínio, violência doméstica, acidentes com veículos e suicídios”. E, tudo isso tem por “atrás uma mente alterada – e, numa alta proporção, alterada pelas drogas lícitas e ilícitas”.

Para Luís Fernando, as drogas são o novo bode expiatório da nação. “Essa é uma estratégia de pânico moral usada quando se precisa de um bode expiatório ou para dominar uma população ou, no caso, para fazer uma manobra política jogando ações populistas no colo da opinião pública. Ações que não vão resolver nada”, afirma.

“Tanto na Colômbia quanto no México mudaram a escala do confronto quando colocaram o Exército na função de polícia e os resultados foram catastróficos. No México, a questão é diferente, pois existem os cartéis. Aqui isso não existe, não somos produtores de drogas. Mas a entrada do Exército muda para pior a situação da violência, aumenta a escala. Então, essa intervenção no Rio tem, sim, motivos políticos, no sentido de aumentar a aprovação do governo em ano eleitoral. E tem o objetivo de militarização de um conflito social”, acredita Pedro Gabriel.

Também para Luís Fernando Tófoli, a resolução do Conad e a mudança na Política de Saúde Mental caminham na mesma direção da intervenção federal no Rio de Janeiro. “São decisões que reforçam umas às outras. A experiência da militarização no México só conseguiu causar mais mortes, mais prisões e não reduziu crime nenhum associado à droga. Ao contrário, aumentou. Estamos tomando um caminho já conhecido e que não funciona”, lamenta.

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Os ministérios do Desenvolvimento Social e Agrário e da Saúde foram procurados pelo Outra Saúde, mas não responderam os questionamentos trazidos pela reportagem.

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