O fim do Farmácia Popular?

O programa tem sua continuidade ameaçada por fechamento das unidades próprias e negociação dos valores pagos às farmácias credenciadas

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Por Luiz Felipe Stevarim na Radis

19 de fevereiro de 2018

Na folhinha do mês, dia 10 é sagrado para Sérgio Luiz Machado: na volta do trabalho, é quando ele estica a caminhada até a farmácia do bairro para retirar o remédio da hipertensão. A losartana potássica 50 mg, receitada por seu cardiologista, é um dos medicamentos distribuídos gratuitamente pelo programa “Aqui tem Farmácia Popular” nas drogarias comerciais, assim como outros remédios para hipertensão, asma e diabetes. Sérgio descobriu a doença por acaso, quando ia a uma consulta no posto de saúde do SUS no Engenho de Dentro, bairro da zona norte do Rio de Janeiro. Saiu de casa às 9 da manhã no sol quente e percorreu a pé os quase dois quilômetros até o posto. “Quando cheguei, respirando fundo, o médico meteu logo um aparelho de pressão e o pico estava 18 por 12″, conta o comerciário de 59 anos.

Desde então passou a retirar o remédio por meio do Farmácia Popular. “Eu teria condições de pagar, mas milhões de pessoas no Brasil não têm. E chega uma idade que não é só esse remédio, né?”, reflete. No fim de 2017, ele ouviu sobre o fechamento das unidades do programa mantidas pelo próprio Ministério da Saúde, que recebem o nome de “rede própria” — uma rede formada por 367 farmácias públicas geridas em parceria com prefeituras municipais e governos estaduais, através de um convênio com a Fiocruz. Embora ainda não tenha sido afetado diretamente, pois retira seu remédio nas farmácias comerciais credenciadas, ele teme mudanças que possam afetar o seu tratamento. “Deus me livre isso acabar! Ainda mais porque é uma doença crônica, que precisa de cuidados para toda a vida”, completa.

Como Sérgio, cerca de 9,8 milhões de brasileiros — segundo dados oficiais do próprio Ministério da Saúde — obtêm todos os meses medicamentos nas farmácias comerciais credenciadas no “Aqui tem Farmácia Popular” (ATFP). A partir de janeiro de 2018, essa passou a ser única vertente do Programa Farmácia Popular do Brasil (PFPB), criado em 2004, ainda no primeiro governo Lula: em meados de 2017, o Ministério da Saúde anunciou o fechamento, até dezembro, dos 367 estabelecimentos próprios, que haviam sido a origem do programa — a rede própria chegou a 517 unidades em 2016. De acordo com a pasta, foi analisado o impacto do encerramento dessas unidades e somente 20% do total dos R$ 100 milhões gastos com a iniciativa eram utilizados efetivamente na compra e distribuição de medicamentos aos pacientes.

Mas as mudanças também podem afetar as farmácias comerciais da rede credenciada, pois o governo negocia o valor repassado a esses estabelecimentos como compensação pela gratuidade ou descontos. Como informou à Radis, o Ministério da Saúde paga cerca de 30% a mais para as farmácias comerciais do que os preços praticados no mercado — a proposta do governo é que o setor aplique os valores comerciais. Implementada a partir de 2006, dois anos após a criação do programa, essa vertente de convênios com as farmácias particulares permite que as pessoas possam retirar medicamentos com descontos de até 90%, dentre os quais anticoncepcionais e remédios para asma, diabetes, dislipidemia, doença de Parkinson, glaucoma, hipertensão, osteoporose e rinite. Desde 2012, sob o slogan “Saúde não tem preço”, as pessoas também passaram a obter gratuitamente medicamentos para três doenças nas farmácias cadastradas no programa: asma, hipertensão e diabetes.

Ainda que possibilite o acesso a medicamentos gratuitos ou com desconto para uma parcela da população, o Programa Farmácia Popular passou a subvencionar o setor privado ao invés de investir em farmácias públicas, como apontam os pesquisadores da área de Assistência Farmacêutica ouvidos por Radis. Para a farmacêutica e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), Claudia Osorio de Castro, o programa se desvirtuou com a expansão dos convênios para as farmácias privadas. “A Farmácia Popular não pode ser uma substituição do SUS. Hoje em dia esse programa superfinancia o setor privado, sem qualquer monitoramento ou avaliação”, aponta. Segundo ela, existe um volume de recursos repassados às farmácias comerciais sem que seja medido o impacto sanitário que esta iniciativa possui.

Já para Rondineli Mendes, também farmacêutico, pesquisador da Ensp e autor de uma tese de doutorado sobre o programa “Aqui tem Farmácia Popular” (defendida em 2014 no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro — IMS/Uerj), a associação com o setor privado permitiu uma “explosão” do programa em termos de unidades conveniadas, porque ele passou a utilizar uma rede instalada de farmácias privadas. “Com essa vertente, o programa não precisa criar novas farmácias. As farmácias já existem, elas só se credenciam”, explica. A partir de dados levantados em sua pesquisa, ele aponta que o governo paga mais caro por um medicamento no “Aqui tem Farmácia Popular” do que nas farmácias do SUS. Tanto Rondineli quanto Claudia concordam que o Farmácia Popular aponta para contradições e desafios em relação ao acesso a medicamentos no Brasil.

Rede própria x privada

As diferenças entre a rede própria do Programa Farmácia Popular e a rede comercial credenciada no “Aqui tem Farmácia Popular” estão expressas nos números: enquanto havia 367 farmácias do próprio programa em 2017, os estabelecimentos comerciais cadastrados no ATFP chegavam a 31.048 em dezembro de 2017, de acordo com o Ministério da Saúde. Por outro lado, as farmácias comerciais disponibilizam 42 medicamentos e um insumo (fralda geriátrica) para os consumidores; já a rede própria, antes de ser fechada, contava com 112 produtos, além da distribuição de camisinhas.

De acordo com Claudia Osorio de Castro, o crescimento da vertente privada do programa desviou a prioridade de investimento que deveria se voltar para as farmácias presentes nas unidades do SUS. “A gente começou a ter substituição do SUS pela Farmácia Popular, com municípios que deixam de investir naquilo que eles são obrigados a prover, que são os medicamentos de Atenção Básica”, enfatiza. Na sua avaliação, o programa sofreu uma “subversão” ao contribuir para a desresponsabilização da gestão municipal e priorizar os recursos para as farmácias privadas. “Os municípios vão abandonando o fornecimento desses medicamentos porque eles têm lá a Farmácia Popular para fazer isso para eles”, completa, ao destacar que, quando se desvirtua uma política, são produzidos vícios no sistema.

Claudia também ressalta que o Ministério da Saúde repassa para as farmácias comerciais, em relação a determinados produtos, um valor acima do que é pago no SUS. “Existem medicamentos comprados pela Farmácia Popular a 1500% acima daquilo que é comprado e executado pelos governos municipais”, aponta. Segundo ela, não há transparência no programa quanto aos impactos reais na melhoria das condições de saúde da população. “Esse dinheiro é repassado para essas farmácias particulares em grande escala, de sorte que o governo federal financia o setor privado no Brasil, para os medicamentos de asma, hipertensão e diabetes”, considera.

“Quando o programa foi criado, em 2004, ele foi anunciado como uma novidade, uma nova experiência de acesso a medicamentos”, relembra. Para a pesquisadora, a proposta inicial não era substituir as farmácias já existentes no SUS, mas complementar e expandir o acesso a medicamentos com novas estratégias. A novidade era o chamado “copagamento”: a pessoa comprava o remédio, mesmo nas farmácias da rede própria, por um pequeno preço, com subvenção governamental que podia chegar a 90%. “A Farmácia Popular propunha uma contribuição do paciente, com custo baixo. Com isso ela pretendia tratar uma parcela da população que podia pagar, ainda que um preço muito módico”, explica.

Na visão de Claudia, o programa não trazia novidade apenas ao introduzir o copagamento, mas ao propor uma visão ampliada de acesso, que buscava garantir o uso racional e adequado dos medicamentos. “Além de pagar, as pessoas também receberiam cuidado farmacêutico na dispensação: uma orientação que era o diferencial desse programa”, destaca. Segundo a pesquisadora, o acesso a medicamento pressupõe uma série de condições, não só a oferta, mas requisitos como qualidade excelente, dispensação adequada e orientação para o uso racional. Porém, segundo ela, com o crescimento da vertente privada, o programa “desvirtuou” os seus propósitos. “A rede própria, essa que foi extinta, ‘não fazia mais água’ nesse contexto, já não dava conta de suas funções”, avalia.

O preço do popular

De acordo com o estudo realizado por Rondineli Mendes para sua tese de doutorado, em 2012, o preço pago pelo SUS, no Rio de Janeiro, foi menor do que o valor repassado pelo governo para as farmácias comercias credenciadas no “Aqui tem Farmácia Popular” em 20 dos 25 itens analisados. A pesquisa comparou os valores gastos nas compras da Secretaria Municipal de Saúde para suprir as farmácias do SUS com o chamado “valor de referência”, repassado pelo Ministério da Saúde aos estabelecimentos particulares cadastrados no programa. “Em locais onde tem uma boa estrutura de Assistência Farmacêutica, uma boa logística e uma boa compra de medicamentos, o modelo privado do Farmácia Popular é mais caro que o SUS”, ressalta.

Uma parte do estudo foi publicado em artigo na “Revista de Saúde Pública” em 2016, em parceria com a pesquisadora Rosângela Caetano, do IMS/Uerj, e revela que, se a mesma Secretaria Municipal de Saúde pagasse os valores do “Aqui Tem Farmácia Popular”, teria seus gastos com medicamentos aumentados de R$ 28 milhões para R$ 124 milhões. “O Ministério da Saúde paga para essas farmácias. É gratuito para o cidadão, mas tem um custo para a sociedade”, afirma o pesquisador à Radis. Rondineli ressalta que a comparação é favorável ao SUS principalmente em locais com bom investimento em organização, como nas capitais; mas que em áreas em que a Assistência Farmacêutica é deficitária, o programa pode ter sua importância. Mas ele também defende que esse tipo de estratégia não pode substituir o SUS. “Um elemento fundamental na gestão pública é um compromisso expresso das secretarias de saúde em garantir acesso a medicamentos para a população”, reflete.

Ao comparar a rede própria do programa — extinta em dezembro de 2017 — com as farmácias comerciais credenciadas, ele ressalta que a rede própria tinha um “elenco” muito maior de medicamentos. “A rede própria tinha também uma maior entrada em municípios da região Norte e Nordeste, além de oferecer mais de 100 produtos, cobrindo mais medicamentos e mais classes terapêuticas”, avalia. Segundo Rondineli, enquanto ocorreu a expansão da rede privada do programa, chegando a cerca de 25 mil estabelecimentos em 2012, as unidades próprias sofriam com a estagnação.

Outro aspecto importante da chamada rede própria seria, segundo ele, criar parâmetros para a Assistência Farmacêutica no Brasil. “Ela poderia servir de modelo de farmácia no Brasil, receber usuários, fazer um atendimento comunitário, como em outros países, um perfil mais de orientação sobre os medicamentos”, propõe. De acordo com Rondineli, o programa em sua vertente privada, com o ATFP, tem um papel social importante, ao garantir acesso a medicamentos com desconto ou gratuitos, porém deveria passar por uma reestruturação com base na análise dos preços pagos às farmácias. “Faz sentido o Ministério querer renegociar, porque há sobrepreço, quando comparado com as compras públicas que o SUS faz”, ressalta.

Com o fim da rede própria e a renegociação dos valores pagos às farmácias comerciais, Rondineli considera que pode haver maior sobrecarga nos gastos das famílias com remédios. “A principal via de acesso a medicamentos no Brasil é pela compra com o bolso das famílias, pela via do chamado ‘desembolso direto’. O que pode acontecer é as pessoas ficarem mais sobrecarregadas em comprar seus medicamentos, onerando mais as famílias”, pontua. Ele ainda lembra que o gasto em saúde, sobretudo com itens farmacêuticos, tem maior impacto principalmente entre os mais pobres.

Valores negociados

Desde meados de 2017, o Ministério da Saúde propôs a representantes do setor farmacêutico a revisão dos valores de referência pagos como reembolso às farmácias particulares do programa. De acordo com o consultor jurídico da Associação Brasileira do Comércio Farmacêutico (Abcfarma), Rafael Oliveira Espinhel, o setor varejista farmacêutico vê com grande preocupação a possibilidade de redução destes valores, frente às consequências para a continuidade do programa. “A simples análise de preços de mercado dos medicamentos, sem considerar os custos com serviços, energia e logística, somados aos índices de inflação, certamente impactará na viabilidade da permanência de muitas farmácias no programa”, aponta.

Segundo Rafael, o segmento de farmácias de pequeno porte representa a maior parcela dos pontos de venda no Brasil, principalmente nos municípios de menor porte — e seriam as mais prejudicadas pela mudança. “Essa situação coloca em contradição o próprio objetivo do programa de ampliar o acesso para um maior número de regiões e municípios, uma vez que os municípios de menor porte não contam com as grandes redes de varejo que têm mais chance de participarem do programa e obterem descontos maiores com os fornecedores”, afirma. Na avaliação da Abcfarma, a redução dos valores de referência pode ter um efeito inverso, aumentando ainda mais os gastos com saúde pública a partir do crescimento das internações decorrentes de pacientes com complicações de saúde. “Haverá, certamente, uma sobrecarga no atendimento feito nas unidades básicas de saúde do SUS”, destaca Rafael. Já de acordo com o Ministério da Saúde, a pasta pretende ampliar o acesso a medicamentos para a população e propõe que o setor aplique os preços praticados pelo mercado.

Unidades fechadas

No fim de 2017, ainda funcionavam as últimas 10 unidades da rede própria do Programa Farmácia Popular — três delas no Rio de Janeiro. A equipe de Radis foi a esses locais — na Penha, na Central do Brasil e na Praça 15 —, na segunda semana de janeiro, e encontrou as portas fechadas. Em audiência pública sobre o tema ocorrida na Câmara dos Deputados, em 5 de dezembro, o integrante do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e representante da Articulação Nacional de Luta contra a Aids (Anaids), Moysés Toniolo, denunciou que a população não foi informada com antecedência do fechamento dessas farmácias. “Simplesmente os pacientes chegaram às unidades da rede própria e encontraram as portas fechadas, sem ter qualquer tipo de informação sobre que alternativas poderiam buscar. As pessoas foram pegas de surpresa, numa atitude totalmente verticalizada, ditatorial, que rompeu com o programa”, afirmou.

Em maio (12/5/2017), o CNS já havia publicado uma recomendação que pedia ao Ministério da Saúde que interrompesse qualquer processo de desestruturação do Programa Farmácia Popular, em especial da modalidade rede própria. Segundo a defesa do Conselho, o fechamento das unidades próprias visa restringir os recursos e privilegiar os interesses do setor privado. Para o CNS, a desativação das unidades próprias do programa iria afetar “duramente a população em situação de vulnerabilidade social”. Como lembrou o conselheiro Moysés Toniolo na audiência pública, a mudança ocorreu sem debate social. “O fim da modalidade rede própria não foi debatido com a sociedade e o CNS é a instância máxima de deliberação para toda e qualquer política de saúde”, apontou. Segundo ele, o fechamento das unidades foi decidido apenas em reunião da Comissão Intergestores Tripartite (CIT) — formada por gestores do SUS das esferas federal, municipal e estadual.

“Foi alegado também uma estagnação da modalidade rede própria, mas nós sequer temos uma avaliação do próprio Ministério da Saúde sobre quais os dados que demonstram a estagnação do programa, quando a responsabilidade sobre a continuidade e expansão é dele próprio”, afirmou Toniolo. Segundo Marcos Krieger, vice-presidente de Produção e Inovação em Saúde da Fiocruz — instituição que era responsável pela gestão da rede própria —, esse era um programa vitorioso, que trouxe uma melhora na atenção à saúde no Brasil. “A população teve acesso aos remédios para as doenças com maior prevalência no país, melhorando a Assistência Farmacêutica”, destacou também na audiência pública da Câmara, ao lembrar que o funcionamento do Farmácia Popular na modalidade rede própria dependia da montagem de uma infraestrutura que garantia a distribuição de medicamentos importantes para doenças prevalentes, como diabetes e hipertensão.

De acordo com Claudia Osorio de Castro, os desafios da Assistência Farmacêutica no Brasil vão além da oferta de medicação: nos municípios mais pobres do país, as pessoas sequer chegam nas farmácias para pegar o medicamento, porque elas não têm acesso aos serviços de saúde — e para retirar o remédio pelo programa, é necessária a apresentação da receita médica. “Se o cidadão não consegue a prescrição, ele não vai chegar na farmácia nunca. Não adianta dar medicamento de graça sem orientação, sem ampliar o acesso à saúde e sem atingir as pessoas que realmente precisam”, pontua.

Segundo Rondineli, garantir “acesso” não é promover “excesso”. “Acesso a um medicamento não é só ele estar na prateleira. Acesso também é informar, é a pessoa saber tomar adequadamente seu remédio, o que envolve o conceito de uso racional”, aponta. De acordo com o pesquisador, o remédio não é um produto qualquer, mas um recurso que gera um benefício social intangível, que tem a capacidade de restaurar saúde e trazer bem-estar. Por isso, garantir acesso a ele tem a ver com a promoção de condições para que as pessoas se beneficiem da melhor maneira possível. “Não é só criar grandes programas e fazer grandes financiamentos. Não é aumentar o consumo de remédios, mas promover o uso adequado de qualquer medicamento”, esclarece.

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