Venenos sem limites: o que traz o PL dos agrotóxicos

Brasil aprovou 1.500 agrotóxicos nos últimos três anos, mas ruralistas querem mais: afastar órgãos sanitários e ambientais do controle de substâncias potencialmente perigosas. Projeto passou com folga na Câmara e segue para o Senado

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Por Giulia Granchi, na BBC Brasil

A Câmara dos Deputados aprovou na quarta-feira, dia 09/02, um projeto de lei que flexibiliza o controle e a aprovação de agrotóxicos no Brasil. A maioria dos deputados apoiou a mudança – 301 contra 150, além de duas abstenções. Em 2016, esse PL já havia sido aprovado, mas, por ter sofrido alterações recentes, terá agora de voltar ao Senado para uma nova avaliação.

O projeto é alvo de críticas por fragilizar ainda mais uma legislação já considerada fraca por especialistas. 

“O texto não cobre as lacunas de fiscalização, monitoramento e reavaliação de produtos, que já são precárias, e ainda retira o pouco de proteção que a população tinha”, avalia a engenheira agrônoma Marina Lacôrte, porta-voz de agricultura e alimentação do Greenpeace Brasil e mestre em ecologia.

Quais são os principais pontos da PL

O projeto de lei nº 6.299/2002 visa que o controle da autorização de novos agrotóxicos no Brasil seja uma missão do Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), tirando a atuação direta do Ministério da Saúde, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), do Ministério do Meio Ambiente e do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais) desse processo.

Se a proposta for aprovada, os órgãos ainda podem emitir pareceres e alertas de risco sobre as substâncias, mas a competência de multar empresas e institutos de pesquisa passaria a ser somente do Mapa.

Nesse caso, o Ministério da Saúde avaliaria questões como o risco contaminação de trabalhadores, da população geral e o nível de segurança sanitária, e os órgãos relacionados ao meio ambiente, a periculosidade dos produtos para a proteção ambiental. 

Mas os pareceres não são vetos, e podem ser ignorados. “O Mapa é quem avalia a eficiência da molécula do ponto de vista agronômico. Além disso, suas aprovações podem estar ligadas a interesses comerciais. Desde governos passados não temos políticos isentos no ministério, mas sim pessoas ligadas à bancada ruralista, que defendem esse modelo agrícola de commodities. É a raposa cuidando do galinheiro”, diz a porta-voz do Greenpeace.

Ela reforça que mesmo que fossem políticos que olhassem para a agricultura de forma conjunta à sociedade e ao meio ambiente, ainda é muito perigoso tirar a autonomia dos outros órgãos.

A BBC News Brasil entrou em contato com o MAPA para obter um posicionamento sobre a composição do ministério e a influência sobre o modelo agrícola e aguarda resposta. 

Mudanças recentes no texto

Apesar de a Constituição Federal categorizar esses produtos como “agrotóxicos”, o relator do texto, Luiz Nishimori (PL-PR), altera o termo na lei para “pesticidas”. O deputado justifica a mudança como um acompanhamento das tendências mundiais. 

“A nomenclatura científica mundial para os produtos é [a palavra em inglês] ‘pesticides’ e estamos adequando aos demais países. O agro não é tóxico, o que apresenta toxidade são os produtos para combater pestes, pragas e doenças nas plantas. Sem proteção, as ervas daninhas vão danificar as plantas e, sem isso, não temos alimento. O mundo todo utiliza este nome”, disse à BBC News Brasil. 

Quando utilizados em florestas e em ambientes hídricos, os agrotóxicos passam a ser chamados pelo texto de “produtos de controle ambiental”, e seu registro caberá ao Ibama. 

Na nova versão, a vedação da importação e produção de agrotóxicos restringe-se ao termo generalista de “riscos inaceitáveis”. Atualmente, a lei define a proibição para agrotóxicos que revelem características teratogênicas, carcinogênicas e mutagênicas, e que causem distúrbios hormonais e danos ao aparelho reprodutor. 

A matéria estipula prazos mais rápidos (de até dois anos) para os registros dos agrotóxicos pelos órgãos federais, o que poderia prejudicar estudos toxicológicos mais robustos. Quando não houver manifestação conclusiva dentro dos prazos estabelecidos, o agrotóxico receberá uma autorização temporária.

De acordo com Nishimori, a alteração serve para igualar o Brasil a outros países de mesma importância agrícola, que, segundo ele, costumam começar a usar os produtos com mais agilidade. “Para avançar cada vez mais, o Brasil precisa ser competitivo e estar nos mesmos patamares de acesso às tecnologias inovadoras no campo.”

Mudanças e riscos

O relator afirma que “quem vai ganhar com este projeto é o consumidor final e a sociedade brasileira”. No entanto, especialistas da área da saúde e do meio ambiente emitem opiniões contrárias, afirmando que a população geral – e o planeta como um todo – tendem a ser prejudicados. 

“A questão central dessa mudança no texto é que quem decide o que vai ou não ao mercado é o Ministério da Agricultura. Se a avaliação dos outros órgãos indica alta periculosidade, mas o Mapa decide que o produto é economicamente interessante, ele pode acabar passando”, indica Luiz Cláudio Meirelles, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.

Na opinião do cientista, a tendência é que os órgãos que ficariam com menos poder participem cada vez menos dos processos. “A Anvisa já tem agenda lotada na análise de outros produtos, como medicamentos e vacinas. Será que faz sentido continuar investindo seus esforços em uma área na qual não vai decidir mais nada?”, questiona.

Dessa maneira, avalia Meirelles, fica mais difícil de controlar os riscos à saúde que a população terá a longo prazo, assim como o impacto no meio ambiente. 

O Instituto Nacional do Câncer (Inca) aponta que toda a população está suscetível a exposições múltiplas a agrotóxico por meio de consumo de alimentos e água contaminados.

Entre os principais efeitos à saúde, o instituto lista os de nível agudo, como irritação na pele, desidratação, alergias, ardência do nariz e boca, tosse, coriza, dor no peito, dificuldade de respirar, irritação da boca e garganta, dor de estômago, náuseas, vômitos, diarreia, dor de cabeça, transpiração anormal, fraqueza e irritabilidade.

Já entre os efeitos crônicos, que aparecem após exposições repetidas a pequenas quantidades das substâncias por um período prolongado, são relatados os seguintes sintomas, de acordo com a Anvisa: dificuldade para dormir, esquecimento, aborto, impotência, depressão, problemas respiratórios graves, alteração do funcionamento do fígado e dos rins, anormalidade da produção de hormônios da tireoide, dos ovários e da próstata, incapacidade de gerar filhos, malformação e problemas no desenvolvimento intelectual e físico das crianças e risco aumentado para câncer (em determinados grupos de agrotóxicos).

O que significa isso na prática? 

Segundo Nishimori, o objetivo não é aumentar a variedade, mas sim que o Brasil autorize produtos modernos que combatem pragas e doenças de forma mais eficaz. “O produtor rural não tem interesse de estragar seu próprio negócio, portanto, os pesticidas utilizados são prescritos por um agrônomo que analisa a quantidade necessária para matar a praga e não oferecer risco à saúde humana.”

Para a porta-voz do Greenpeace, o discurso relacionado à modernidade não se sustenta. “Já temos uma velocidade enorme nas aprovações, mas nenhuma segurança nessas liberações e nenhuma molécula nova nem menos tóxica – estamos com o cardápio de sempre, de produtos já proibidos na Europa e que deveriam ser reavaliados aqui. Alimento seguro é sem agrotóxico, é comida que foi produzida de uma forma segura.”

Nos últimos três anos, o Brasil teve a aprovação de cerca de 1.500 agrotóxicos. “Em sua maioria, são substâncias que já foram proibidas em outros países, como o glifosato. Aqui, liberamos mais marcas, quando deveríamos estar trabalhando para uma retirada programada”, diz o pesquisador da Fiocruz. 

O glifosato, substância citada pelo professor e que está presente hoje na maioria dos alimentos, foi classificado pela OMS (Organização Mundial de Saúde) em 2015 como grau “A2”, o que o coloca na categoria de “comprovadamente cancerígeno para animais mamíferos e provavelmente cancerígeno para seres humanos”.

Os novos agrotóxicos que seriam aprovados, aponta Meirelles, também apresentam o agravante de registro por equivalência, ou seja, podem ser registrados por possuírem as mesmas substâncias de um outro agrotóxico. 

“Se eu e você fazemos um bolo com os mesmo ingredientes, eles podem não sair exatamente iguais. Química é isso. Dependendo da síntese das matérias primas, o resultado toxicológico pode ser bem diferente. A depender da pureza e de pequenas mudanças na concentração, a toxicidade da substância muda completamente. Por lidarmos com um produto tóxico, como o nome já diz, o cuidado precisa ser redobrado”, afirma.

“Quando eu falo de câncer, isso não entra na conta, mas é o Estado que paga. É uma tragédia pessoal para o paciente e um custo enorme para o Estado. O projeto de lei é o tipo de modelo que envenena tudo e não considera os custos para a sociedade”, diz o pesquisador.

A engenheira agrônoma também aponta que flexibilizar o uso de agrotóxicos tem priorizado a produção de commodities e de comida, mas não o combate à fome. “Temos recorde de safras e mesmo assim nosso país voltou ao mapa da fome.”

A conclusão de Meirelles é que o projeto não dá prioridade à vida. “Nenhum ser humano quer consumir de antemão algo que é naturalmente prejudicial à saúde. A pessoa não sabe que quando está comendo uma salada pode estar ingerindo dezenas de agrotóxicos diferentes, mesmo que em quantidade ínfimas.” 

Uma reportagem do veículo Brasil de Fato aponta que o deputado Nishimori recebeu R$ 380 mil de empresários e executivos do agronegócio na campanha que o levou à Câmara dos Deputados, em 2018. Embora o apoio esteja dentro da lei, a BBC News Brasil questionou o deputado se a tentativa de aprovação da lei está relacionada à pressão e relacionamento com esses apoiadores. 

“Não existe pressão de apoiadores. Sou do Estado do Paraná, forte em agricultura. Trabalho pelo desenvolvimento do setor agropecuário porque acredito que a vocação brasileira é a produção de alimentos. Trabalhamos pela aprovação de uma lei defasada há mais de 30 anos e que precisa colocar o Brasil em sintonia com os países competidores, com respeito às normas sanitárias, de saúde e meio ambiente”, respondeu ele. 

O que a população pode fazer?

“Nos sentimos impotentes e a sociedade tem se manifestado contra. Não sei para quem esses 301 deputados governam, por que não é para a sociedade”, diz Marina Lacôrte, que recomenda que quem é contra o projeto de lei continue manifestando sua insatisfação política. “Além disso, temos que votar para nossos representantes de forma consciente. Se você é contra, conheça quem votou para passar o texto e saiba quem merece seu voto.”

Embora não seja suficiente para mudar toda a estrutura de produção, Lacôrte também incentiva que a população ajude a promover outros sistemas alimentares e agrícolas, apoiar pequenos produtores de produtos orgânicos. “É muito positivo para sua própria saúde e para uma cadeia de produção mais sustentável.” 

Os alimentos orgânicos costumam ter valor mais alto nos supermercados, mas é possível conseguir um preço mais baixo comprando diretamente com quem os produz. O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) criou uma lista de feiras orgânicas pelas cidades do Brasil.

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