Uruguai: a crise hídrica e a geopolítica do clima

Enquanto falta d’água castiga dois terços dos uruguaios, corporações drenam 80% dos recursos do país. Google é nova ameaça de pegada ambiental e prática de greenwashing. Mas a revolta já se espalhou pelos muros de Montevidéu

Uruguaios protestam em repúdio às corporações, exigindo soluções urgentes do governo no contexto de uma crise hídrica em curso, no centro de Montevidéu, Uruguai. Foto: AP/Matilde Campodonico
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Por Natalia Viana, na Agência Pública

Durante mais de três meses, a água nas torneiras de Montevidéu veio salobra. E não se trata de um acidente de percurso ou fenômeno passageiro: a falta de água potável na maior cidade do país vizinho é a primeira consequência da emergência climática.

Há, sim, características anômalas na maior seca histórica em 74 anos no noroeste daquele país. Choveu metade do que devia no ano passado e, neste ano, vemos o fenômeno do El Niño que causou o julho mais quente em décadas no Brasil e temperaturas recordes no mundo. Mas sabemos que os fenômenos extremos devem acontecer cada vez mais e crises como essa devem se repetir.

O que ocorreu no Uruguai foi que a água da represa de Paso Severino, que abastece os 2 milhões de habitantes da capital – dois terços da população –, chegou a níveis baixíssimos, e o governo teve de misturar água potável com a água do rio da Prata, salgada.

O governo, então, recomendou àqueles que tivessem hipertensão ou problemas renais evitar tomar água da torneira, uma vez que ela continha duas vezes mais sódio e três vezes mais cloro que o normal. A mudança foi um choque no país pioneiro em inserir o direito à água na sua Constituição e onde beber da torneira sempre foi o habitual. Agora, a água trazia riscos à saúde. Restou aos moradores comprar água mineral em garrafas, se organizar nos bairros para encontrar novos poços ou, quando não havia mais jeito, ferver a água da pia de duas a três vezes para fazer o tradicional “mate”.

Mas, se não bastasse terem de lidar com a crise atual, os uruguaios começam agora a se organizar para combater um plano do Google que deve estressar ainda mais a demanda por água no país.

A corporação comprou um terreno de 29 hectares (cerca de 290.000 metros quadrados) para instalar ali um novo data center. “É um marco importante neste processo e reforça o compromisso do Google com o Uruguai e a América Latina e o desenvolvimento do ecossistema tecnológico local”, disse a empresa em uma daquelas matérias que parecem um release de assessoria de imprensa.

O problema é que data centers são prédios gigantescos com milhares de servidores que passam dia e noite processando os pedidos de pessoas como eu e você por informação, mais informação, mais fofoca e pelas fotos de nossos amigos e vizinhos; e, para manter essas máquinas resfriadas, é preciso um enorme gasto de água. Para manter frios os servidores, o Google evapora água para resfriar o ar ao redor das unidades de processamento empilhadas dentro dos data centers.

A estimativa do Ministério do Meio Ambiente do Uruguai, obtida por um pesquisador em uma ação judicial, é que o projeto deve consumir 7,6 milhões de litros de água por dia, provenientes da rede pública. Seria água suficiente para 55 mil pessoas.

A revolta já se espalhou pelos muros de Montevidéu, segundo o jornal The Guardian. Começam a aparecer pichações com o slogan “Não é seca, é roubo”, o mesmo adotado pelo movimento Comissão em Defesa da Água e da Vida. Em resposta às críticas, o Google afirmou que ainda está revendo os planos para o centro e que os números divulgados não são definitivos.

E, para sermos justas, o Google não está sozinho, claro. Mais de 80% da água daquele país é usada pelas indústrias, como as plantas de celulose e as plantações de soja. Apenas 20% são usados pela população.

Em junho, uma nova fábrica de celulose, da empresa finlandesa UPM, abriu no país. E ela deve usar 16 vezes mais água que o data center do Google: 129 milhões de litros por dia.

Mas, diferentemente da UPM, o Google tem usado sua presença aqui no Cone Sul para aliviar sua pegada ambiental. A big tech anunciou a meta, por exemplo, de “descarbonizar” a energia usada nos seus data centers.

E como ela tem feito isso? Enviando aos usuários um mapinha que mostra o quão limpa é a energia usada para manter cada um dos data centers. O data center do Brasil é um dos que têm a maior taxa de energia limpa, mais de 87% – obviamente, já que nossa energia é hidrelétrica. Só perde para Oregon, nos EUA, que tem 89% de energia “limpa”.

Mas o Google vai além e sugere que cada usuário pense bem onde quer guardar seus dados e aplicações na nuvem: “escolha uma região de baixo carbono para suas aplicações”, diz o site da empresa. Assim, qualquer empresa do mundo pode selecionar o Brasil como local para estocar seus dados, adicionando nas suas políticas que está sendo ambientalmente sustentável.

(Isso não diz nada sobre a quantidade de água usada para resfriar as máquinas, aliás.)

Ambas as iniciativas contam uma mesma história: estamos entrando na era da geopolítica do clima – e, nela, corporações podem mover-se de país para país, disseminando o impacto das suas atividades econômicas em locais onde as leis ambientais são mais frouxas ou onde possam fazer melhor seu “greenwashing”.

Já as populações – como os uruguaios que recebem uma água intragável – não têm para onde correr.

O que está acontecendo em Montevidéu me parece ser um prenúncio do futuro que estamos costurando para nós mesmos: um futuro seco, plataformizado e injusto.

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